Há um ano morria Paula Rego, a artista plástica portuguesa cuja obra alcançou a maior notoriedade internacional de sempre. Por esses dias ficou reforçada a ideia de que, apesar disto, era fraca a presença da pintora nas coleções de arte do Estado português e o próprio Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, chamou a atenção do Governo para a necessidade de serem adquiridas mais obras da pintora. É então que, no inicio deste ano, se faz a aquisição do quadro “O Impostor”, de 1964, uma peça ainda não dominada pela narração figurativa, mas pelas colagens, a escrita automática e reminiscências do Surrealismo.

Hoje, esta tela está pendurada numa das paredes do antigo Museu Berardo e marca a pré-abertura, antes da inauguração oficial a 28 de outubro, do Museu de Arte Contemporânea CCB. Mas marca também o fim de um ciclo, o ciclo de Joe Berardo, o empresário e colecionador agora a braços com a justiça e cujas obras colecionadas estão neste momento sob arresto judicial. Não deixa pois de ser uma ironia que a abertura do novo museu se faça sob o signo da impostura e Paula Rego, com o seu olho para as farsas políticas, sociais e familiares, não deixaria de achar graça a esta coincidência.

A mostra inaugurada esta segunda-feira junta obras pouco conhecidas de Paula Rego, do final da década de 50 até 1965

Questionado sobre se o Estado estaria a trocar um “impostor real” por um “impostor figurado”, Pedro Adão e Silva, ministro da Cultura, ainda esboçou um sorriso, mas rapidamente retomou a compostura e afirmou que não iria fazer “juízos de valor sobre qualquer um dos atores em causa”, preferindo destacar “o virar de página” que representa o novo museu. O ministro fez questão de reiterar que “as prioridades” do seu mandato são “os museus e o património” e que até agora o Estado já gastou mais de 100 milhões de euros na aquisição de obras de arte contemporânea, para que “Portugal possa ter uma coleção de nível europeu”.

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Paula Rego: “Pintar para dar uma face ao medo”

Quando o Governo e o CCB escolhem para abertura do novo museu uma obra de Paula Rego, uma das pintoras mais importantes num país que teve, durante séculos, poucas mulheres artistas — ou reconhecidas como tal —, estão certamente a tentar manter-se em sintonia com o ar do tempo: a escolha de uma mulher, mas também uma das artistas cuja obra movimenta mais milhões nos mercados de arte internacionais. O MAC-CCB quer mostrar-se forte e capaz de fazer uma coleção de arte tão boa ou melhor que a de Joe Berardo. A exibição, que abre ao público esta terça-feira, dia 20, intitula-se “Foco em Paula Rego” e, para lá da obra comprada pelo Estado, conta ainda com um tríptico e uma escultura emprestados pela Fundação Calouste Gulbenkian e mais três obras vindas de coleções privadas e quase desconhecidas do grande público.

Tríptico, colagem e óleo, de 1964 foi emprestado pela Fundação Calouste Gulbenkian

Como explicou o curador, Delfim Sardo, o objetivo era mostrar um período menos conhecido da artista, que vai do final dos anos 50 até 1965. É, pois, uma Paula Rego “orgiástica”, “política” e a falar de um “mundo sem hierarquias” que podemos encontrar nesta pequena mostra. Nas obras exibidas aparece várias vezes o número 1928, que remete para a data da chegada do general Carmona à Presidência da República e o consequente reforço do Estado Novo. São obras do final dos anos 50 e inicio da década de 60 através das quais a pintora experimentava grande liberdade criativa, usando recortes, colagens, pintura, nomes, datas criando assim uma constelação de imagens densamente simbólicas, que delegam no espectador a responsabilidade de as interpretar.

É já o cruzamento da pequena e da grande história que a pintora haveria de explorar durante toda a sua vida e, em especial, no seu trabalho a partir dos anos 80. Mas é também aquilo que ela mesma confessou ao poeta Alberto Lacerda: “Pinto para dar uma face ao medo”. A ideia do medo é muito poderosa nestas obras onde, como escreveu Pedro Lapa, “surgem figuras decompostas e reorganizadas por uma ordem pulsional”. Mas nelas podemos também encontrar aquilo que iriam ser algumas das linhas de força de Paula Rego, como mulher e como artista: rejeitar o idealismo e escolher episódios, histórias com um forte carácter político. Ao insistir em tocar sempre naqueles pontos em que o lado político, incómodo ou fora da norma se quer silenciado, a pintora incita-nos a falar, lembra-nos o nosso dever de falar.