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"O Livro de Pantagruel": um banquete para canibais serve-se no teatro S. Luiz

Este artigo tem mais de 6 meses

Obra prima de Rabelais, este foi o ponto de partida para uma peça incivilizada, que explora tabus como o canibalismo, o incesto ou a perversidade das crianças, ao som da orquestra Metropolitana.

Sandra Faleiro dá corpo a esta personagem com muitas camadas de estilo, ironia e perversidade
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Sandra Faleiro dá corpo a esta personagem com muitas camadas de estilo, ironia e perversidade

Pedro Macedo

Sandra Faleiro dá corpo a esta personagem com muitas camadas de estilo, ironia e perversidade

Pedro Macedo

Antes de ser o livro de receitas culinárias mais vendido em Portugal, ou mesmo uma marca de chocolate para bolos, Pantagruel é um gigante grotesco, alarve e insano, filho de Gargântua e saído da mente genial de François Rebelais, em pleno século XVI. E, se o livro desafia todos os tempos e géneros literários, afirmando-se como um libelo pela liberdade de expressão, a peça de teatro que Ricardo Neves-Neves fez a partir dele, para o Teatro do Elétrico, não é menos desafiante, apostando numa controversa abordagem de um dos grandes tabus sociais — o canibalismo — para declarar que o teatro não pode abandonar o seu papel de “gerador de discussão”, “provocação” e “liberdade”.

A peça, que se estreia esta quinta-feira, 6 de junho, no teatro S. Luiz, em Lisboa, é uma montagem de referências culturais heterogéneas que vão desde os contos de fadas aos musicais americanos, passando pelo cinema de Tarantino, a literatura fantástica do século XIX, a musica pop, a televisão, a moda. Tal como Rabelais, o encenador Neves-Neves e o compositor Filipe Raposo recorrem também à força da cultura popular, à sua capacidade de erodir o divino em prol do corpo profano à mercê de todos os desejos, paixões, e instintos. Este Pantagruel, em versão feminina, “delicodoce” e kitsch, apresenta-se como um manual de incivilidade para tempos de triunfo do politicamente correto, decretando o fim dos bons sentimentos, dos bons modos e do bom gosto, tudo ao som da Orquestra Metropolitana de Lisboa. A peça fica em cena até 16 de junho, seguindo depois para o Cinetreatro Louletano onde estará nos dias 22 e 23.

Alta, loira, vestida com um tailleur peplum, estilo anos 80, um penteado digno de Yvanna Trump, desfazendo-se em sorrisos de apresentadora de televisão, esta Pantagruel (Sandra Faleiro) tem o seu próprio programa de culinária onde ensina a fazer “ervilhas com olhos escalfados”, “desossar bebés”, a “picar salsa na diagonal” e serve assada uma carne que suspeitamos ter pertencido a alguém. Os seus assistentes são um Frankenstein gangster e um Nosferatu obediente e servil.

"Pantagruel" tem uma forte componente musical, criada por Filipe Raposo e interpretada, ao vivo, pela orquestra Metropolitana de Lisboa

“Queríamos fazer uma comédia amarga, deselegante, mas onde pudéssemos explorar o universo infantil e todo o seu universo de perversidades, expostas desde logo nos contos de fadas, onde o canibalismo é uma constante desde o Capuchinho Vermelho, à Casinha de Chocolate. Pegámos então em Hansel e Gretel, em Pantagruel, de Rabelais, misturámos com desenhos animados japoneses, o cinema e a musica que marcaram as nossas infâncias e adolescências, mas também trouxemos ideias da biologia, da economia, da finança sempre em volta da ideia central da peça que é o canibalismo, seja ele real, mitológico como as mães que comiam os próprios filhos, religioso como a ideia de comer o outro para chegar ao conhecimento absoluto,  ou económico das grandes empresas que canibalizam e absorvem as mais pequenas”, explica o encenador Ricardo Neves-Neves.

Num outro ponto desta história temos então duas crianças, Hansel, um menino humilde e carente e Gretel, uma pequena assassina, vingativa e cruel, que fazem uma tarte de framboesa para melhor emboscarem um pai que os obriga a trabalhar e uma  mãe que cozinha as crianças da vizinhança. Presos como delinquentes, os meninos da floresta negra têm aqui outras armas que não os pedacinhos de pão. Eles são sedutores, incestuosos, violentos, abnegados, vampiros, mas nunca heróis convencionais. “Não acredito que o mundo se divida entre os bons e os maus. Todos somos monstros capazes de amar, capazes de ternura. Também não procurámos fazer desta peça uma comédia. São as personagens, no seu desequilíbrio e na sua estranheza que se tornam risíveis”, explica ainda Neves-Neves.

A musica é outro dos eixos fundamentais deste banquete. Criada por Filipe Raposo “numa parceria canibal” com o encenador, “a música “serve de contraponto ao texto num jogo de tensões ora dissonante, ora consonante, ora sublinhando o texto, ora criando caminhos novos, criando uma tensão subliminar”, explica o compositor. As cantoras de musical americano vão pontuando a história com canções que são avisos à maneira do coro grego. “A música nunca é mera ilustração da cena mas uma forma de influenciar o seu acontecer e a sua perceção”.

Desta galeria bizarra fazem também parte os fetos de uma grávida fumadora que vão passando a sua vida intra-uterina a analisar as taxas da Euribor e o valor das hipotecas bancárias, até ao momento que se enamoram e decidem que a única maneira que têm de ficarem juntos é um absorver o outro. Mas, porque aqui todas as histórias conhecidas são baralhadas, misturadas e retalhadas, dando origem a um ser tão monstruoso quanto Frankenstein, haverá para todas as personagens um inusitado final que não nos compete contar.

A atriz Sandra Faleiro, que ao longo de uma hora e meia, se transforma numa criatura simultaneamente aberrante e fascinante — quanto é Pantagruel — prefere fazer notar que, “ao brincar com tantos tabus, esta também é uma peça sobre os limites da arte” e que “o teatro não pode participar no fechamento cultural destes tempos”. “O Livro de Pantagruel” é sobre comer, canibalizar, vampirizar e, por isso também, “é uma metáfora da vida e do amor também eles cheios de manipulação”, diz ainda a atriz que nos deslumbra com o seu enorme talento.

"Gargântua e Pantagruel", de Rabelais, Volume 1, com tradução de Manuel de Freitas e edição da E-Primatur

Curiosamente, as obras de Rabelais acabam de ter uma nova tradução em Portugal feita pelo poeta Manuel de Freitas, numa bela edição da E-Primatur, com ilustrações de Gustave Doré. No primeiro volume reúnem-se os livros de Gargântua e Pantagruel, obras primas do Renascimento francês que nos oferecem uma “nova maneira de apreender a vida que se apodera do espiritual e do sensorial” e que apontam para um mundo já não cristão, mas sincrético, como explica o seu tradutor.

Do elenco desta peça fazem ainda parte: Andreia Valles, António Ignês, Célia Teixeira, Diogo Fernandes, Eliana Lima, Inês Cotrim, Juliana Campos, Rafael Gomes, Rita Carolina Silva, Ruben Madureira, Sandra Faleiro e Sissi Martins. As récitas têm lugar a partir desta quinta-feira, 6 de julho, e até dia 16, de quinta a sábado pelas 20 horas e domingo pelas 17h30.

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