Imaginem que estão com muita fome, vão na A24, a passar por Vila Real, e precisam comer. Saem da auto-estrada e, na primeira aldeia, veem uma placa a indicar um hotel com um restaurante.

O hotel parece daquelas quintas classificadas com quatro estrelas nos anos 1980. À entrada, enunciam-se os equipamentos:

Mini-golfe
Campo de ténis
Piscina

Estão no automóvel, parados num parque de estacionamento capaz de alojar autocarros de turismo, hesitantes. Parece perigoso. Parece o tipo de restaurante com tornedó e sopa de cebola de pacote.

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Avançam ou seguem viagem? Arriscam ou procuram o Top 10 do Tripadvisor?

Segui.

Subindo uns degraus, dei com um antigo paço remodelado, sólido e austero como um quartel. Num dos corredores, uma capela; em frente, os quartos. O restaurante ficava no piso debaixo, mas antes entrei em duas salas enormes e ruidosas com mulheres vestidas de cetim e crianças com gel no cabelo, apertadas em fatos cinzentos.

Lá fora, mais mesas, mais pessoas, mais um pavilhão pré-fabricado. Ou era um casamento ou era um baptizado ou eram ambos. Mesas e mais mesas e enfeites, música de feira e empregados aprumados de um lado para o outro, bandeja na mão, transmontanos com humor transmontano.

– Pode indicar-me onde é a casa de banho, por favor?
– Não temos. Tem de ir ao monte.

Ele não se riu e eu não me ri. Naquela altura, pensava na minha bexiga e no barrete que ia levar.

– Estava a brincar, é já aqui.

Aprendemos a gostar do humor transmontano. Mas demora.

Despachado o primeiro assunto, sentei-me no pátio e optei por jogar à defesa. O melhor seria despachar também o segundo assunto. “Era um prego no pão e uma imperial, por favor.”

O pátio ficou então mais bonito, chão de empedrado, por cima luzinhas de um lado ao outro, muito bonitas, como numa festa de aldeia. Beberiquei da cerveja e relaxei. Em fundo, atrás do pimba e da vozearia festiva, a passarada e o vale da aldeia de Arroios, que se estendia até às montanhas do Marão e do Alvão, ao longe.

Em menos de nada, tinha o prego na mesa. Foi dos pregos que melhor me souberam na vida. O pão fresco e leve, a carne tenra, saborosa. “É carne daqui, Maronesa”, disse-me o empregado. Olá.

Voltei à auto-estrada em meia-hora, mas fiquei com vontade de voltar.

Assim aconteceu. Meses depois, eis-me de novo na Quinta do Paço, desta feita com tempo e entusiasmo. Por esta altura, já sabia que o restaurante não era um catering manhoso, mas não sabia que era uma maravilha rara, numa região onde há boa comida, mas pouca restauração.

Na sala, ao jantar, a um dia de semana, não se viam hóspedes, só locais a encher as mesas, gente de Vila Real que reconhece comida de qualidade a bom preço, mesmo se for num hotel de casamentos, mesmo se não vier nos guias consagrados, nem estiver na agenda dos influencers.

Adriano, o empregado mais veterano, cumprimentava as pessoas pelo nome e tinha sempre tempo para uma simpatia e uma atenção, apesar da lotação esgotada. De resto, conhecia o que servia, coisa rara por estes dias.

– As alheiras são feitas para nós, por um produtor daqui.
– O que levam?
– Galinha, coelho e porco.
– A minha combinação favorita. Mas estamos no Verão. Há alheiras boas no Verão?
– Há, sim. Mas só aqui.

Tinha razão o Adriano. E continuaria a ter.

– E esta salada russa com filetes de pescada?
– A salada russa é feita com maionese caseira.
– De certeza?
– De certeza, venho todos os dias para aqui de manhã batê-la à mão. Olhe para este braço.
– Está a mangar comigo.
– A sério, é feita por nós.

E era.

Onde ainda há maionese caseira sem ser nos bistrôs de Lisboa e Porto, onde se cobram 60 euros por refeição? Não há.

Como não há bola de enchidos como a que acompanhou a refeição e também não há mousses de chocolate sem invenções, com aquela consistência sedosa e atmosférica tão difícil, tão genial — sem crumbles, sem cacau 200%. Uma belíssima mousse caseira, tão-só.

De tão bom que foi, faria ainda outra visita, no dia seguinte, ao almoço. O menu era um repositório de comidas deliciosas que precisavam ser testadas. Tripas? Belíssimas, limpíssimas, ainda por cima com mão de vaca, peça obrigatória em qualquer casa do Porto e acima do Porto, que é onde elas são melhores, a mão de vaca a encher o molho de colagénio e gelatina — e nós mais fortes dos ossos, mais brilhantes da pele e mais felizes de espírito.

E joelho de porca? O joelho das fêmeas é mais tenro, por regra — e assim aconteceu com este. Mas mesmo assim é preciso trabalhá-lo. Pele tostada e o músculo a desfazer-se, prova de que terá estado a assar desde que o galo da aldeia de Arroios começou a cantar.

Uma dose teria chegado para dois, como é óbvio, mas o problema é que queremos experimentar tudo.

E o bacalhau à Quinta do Paço, que vi passar numa travessa de barro? “Ao estilo Zé do Pipo”, uma posta alta como só no Minho e no Nordeste, e puré de batata do verdadeiro, claro. E a língua de vitela? E o cabritinho à serrana? E  o pudim?

No final, questionei-me sobre a qualidade inesperada do sítio. Adriano explicou que a superintender a cozinha, desde os anos 1990, estava uma senhora octogenária, mãe do dono do hotel e matriarca de uma família com experiência na restauração de Vila Real. O receituário era todo dela e ela continuava operacional e vigilante.

A Quinta do Paço foi uma lição contra preconceitos. Um hotel de casamentos pode muito bem ter um grande restaurante. Na zona de Vila Real, há tascas e tasquinhas mais rústicas e folclóricas, mas para comer bem, por 25€, poucos sítios servem como este.

Devida vénia. Ponham o traje de gala e vão lá.

Ex-jogador de ténis, Tomás Cruges foi também inspetor para a área alimentar. Hoje em dia, dedica-se a um doutoramento sobre a influência gastronómica do Califado de Córdoba. Nos tempos livres, faz a revisão de livros de culinária para uma grande editora.