A Transtejo quis avançar logo em 2019 com a compra de navios elétricos para renovar a frota e apresentou uma proposta nesse sentido, mas a tutela governamental de então preferiu a opção de navios movidos a gás natural liquefeito (GNL).

A informação foi avançada esta quarta-feira pela ex-presidente da operadora de transporte fluvial aos deputados da comissão de economia e obras públicas. Marina Ferreira foi chamada ao parlamento para explicar o contrato para compra de baterias para os navios elétricos que viu recusado o visto pelo Tribunal de Contas, o que precipitou a demissão da administração a que presidia.

A gestora, que foi presidente da Transtejo entre 2017 e março deste ano, recordou a trajetória do processo de decisão que levou à encomenda de 10 navios elétricos (dos quais apenas um já com bateria), indicando que a primeira proposta feita pela empresa ao Governo em 2018 era para adquirir uma frota híbrida a diesel e elétrica. Esta proposta foi recusada pelo Ministério do Ambiente, porque o objetivo era apresentar um projeto que pudesse ter acesso a financiamento comunitário no quadro da transição energética. O Governo agiu bem, defende Marina Ferreira, porque essa proposta não era a melhor, na medida em que estes navios iam produzir emissões de CO2.

A gestora revelou que logo em 2019 a Transtejo começou a trabalhar numa solução totalmente elétrica, na sequência dos contactos feitos com fornecedores internacionais e com empresas elétricas e de estudos e ensaios em tanque, que confirmaram a viabilidade desta opção. Já em 2019, havia navios em atividade e com bons resultados, o que permitiu propor a solução à tutela, sublinhou.

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Mas este processo foi interrompido em 2019, porque a tutela decidiu que a nova frota seria composta por navios movidos a gás natural liquefeito (GNL). A gestora não especificou quem na tutela deu essa indicação, sendo que nessa altura o ministro do Ambiente era João Matos Fernandes e o secretário de Estado com a responsabilidade dos transportes urbanos era José Mendes.

O concurso para os navios a GNL foi lançado em 2019, mas em dezembro foi declarado nulo devido à inexistência de candidatos. Marina Ferreira reconhece que os potenciais candidatos tiveram dificuldade em agrupar numa só proposta o fabrico dos navios e a manutenção. Houve também dificuldades em validar a capacidade técnica dos concorrentes e concluiu-se que os navios usados pela Transtejo tinham uma dimensão reduzida para os tanques de GNL, uma tecnologia usada para embarcações maiores.

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Questionada sobre se a mudança de opinião do Governo em relação ao tipo de frota contribuiu para o atraso na renovação da mesma — anunciada em 2018 e ainda sem data prevista para a entrada em operação dos novos navios — Marina Ferreira admite que “se calhar a interação com a empresa não era ideal” na opção pelo gás natural. “Eu teria avançado logo para os navios elétricos, mas quem define é a tutela. Se calhar podíamos ter avançado mais depressa se tivéssemos ido logo para os navios elétricos. Mas eles estão aí”.

Faltam as baterias, cuja adjudicação foi feita este mês, com atraso depois do contrato por ajuste direto ter sido recusado pelo Tribunal de Contas, e também os postos de carregamento nos cais cuja instalação está atrasada.

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Apesar da discordância neste ponto, a ex-presidente da Transtejo considerou que era competência da tutela decidir a tecnologia dos novos navios da empresa e sinalizou que o processo de compra de navios elétricos foi rapidamente lançado (anunciado no mesmo dia em que foi conhecida a anulação do primeiro concurso).

Já a separação da contratação entre os navios e as baterias foi uma opção da empresa e Marina Ferreira admite que a tutela alertou para o risco de um ajuste direto desta componente, mas indica que a Transtejo defendeu esta opção junto do Governo. O ministro Duarte Cordeiro também será chamado pelos deputados que esta quinta-feira vão ouvir a atual presidente da empresa.

Juntar barcos e baterias seria mais caro e arriscado

Numa longa intervenção inicial, a ex-presidente da Transtejo justificou as opções que  levaram a empresa a separar a contratação das baterias da construção dos navios. Juntar as duas componentes seria mais caro, teria mais riscos e seria mais demorado a executar, defende.

Para a empresa, existia o risco de deterioração da frota e das falhas no serviço público de transporte e do incumprimento dos prazos de financiamento comunitário, daí que se tenha optado por agilizar as regras de concurso, simplificando o modelo de seleção e avançando logo com a adjudicação da conceção e construção dos navios (e a contratação de uma bateria para 10 navios), deixando de fora as baterias cujo custo e características eram muito difíceis de definir antes de ter sido desenvolvido o protótipo do navio pedido pela empresa.

A gestora explicou que a opção foi apostar no renting das baterias, que passariam a ser um custo operacional e não um custo de investimento, mas esta via acabou por não se revelar viável face à derrapagem dos custos e preços por causa da pandemia e da guerra na Ucrânia. O objetivo era lançar um concurso público. “Para qualquer gestor é mais fácil o concurso público, mas nem sempre esta é a melhor solução do ponto de vista dos custos” e por isso é que o código da contratação permite outras hipóteses, como o ajuste direto. Daí ter-se realizado um contrato complementar, um aditamento ao contrato já aprovado e que foi chumbado, o que, admitiu Marina Ferreira, foi uma surpresa por se tratar de um complemento a um contrato já aprovado pelo Tribunal.

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Marina Ferreira lamentou também os termos invocados pelo acórdão conhecido em março que descreveu como tendo uma “linguagem jocosa,  irónica e inédita na jurisdição“. E até lhe “custa recordar a analogia ridícula e infantil mais própria das redes sociais” usada pelo juiz e que compara a contratação dos navios nestes temos com a compra de carros sem motor.

Falando em nome da administração da empresa que se demitiu e dos técnicos que trabalharam neste projeto, sublinhou: “Somos técnicos e não somos um grupo de ineptos, irresponsáveis e incompetentes. Somos pessoas responsáveis pela prestação de um serviço publico”.  Marina Ferreira admite que hoje não teria feito tudo igual, mas assinala que aquela opção era a adequada com base na informação que tinha à altura. E assume também a responsabilidade da gestão da empresa por esta opção. No entanto, nota, decidir tem riscos a equipa da qual fez parte “acreditou, contra ventos e marés, no futuro da Transtejo”. E defendeu também, apesar de todos os contratempos,  a qualidade do projeto da nova frota, garantindo que se trata de inovação e não experimentação.

A gestora deixou ainda desabafos sobre os constrangimentos da gestão de empresas públicas. “Os recursos são limitados as empresas vivem debaixo de um regime orçamental muitíssimo rígido, o que dificulta muito a gestão e traz dificuldades.” E afirmou que a “pior coisa para as empresas públicas é a incerteza sobre a execução e gestão dos orçamentos. Se o pais puder melhorar isso… O desgaste é brutal”. E lamentou ainda que, para quem está nestas funções, “o mais fácil é não fazer nada e deixar andar”, desculpando-se com a falta de recursos.

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