O bispo Américo Aguiar, até agora bispo auxiliar de Lisboa e principal rosto da organização da Jornada Mundial da Juventude, foi esta quinta-feira nomeado bispo de Setúbal pelo Papa Francisco, confirmou a Conferência Episcopal Portuguesa em comunicado enviado aos meios de comunicação social.

A nomeação surge pouco mais de uma semana antes de Américo Aguiar, de 49 anos, ser formalmente elevado a cardeal pelo Papa Francisco, numa celebração agendada para o dia 30 de setembro, no Vaticano.

Américo Aguiar, um clérigo natural da diocese do Porto que era desde 2019 bispo auxiliar de Lisboa, vai agora ocupar uma sé que estava vaga desde o início de 2022, quando o anterior bispo, José Ornelas (que é também o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa), foi nomeado bispo de Leiria-Fátima, para substituir o cardeal António Marto, que renunciou ao cargo por razões de saúde.

Nos últimos quatro anos, Américo Aguiar tornou-se num dos mais conhecidos rostos da Igreja Católica em Portugal, sobretudo devido ao seu papel como presidente da Fundação JMJ — a entidade criada pelo patriarcado de Lisboa para organizar a Jornada Mundial da Juventude, que decorreu na capital portuguesa na primeira semana de agosto com a presença do Papa Francisco e de cerca de 1,5 milhões de jovens de todo o mundo.

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Essas funções catapultaram para o foco mediático o bispo Américo Aguiar, que nos últimos meses foi presença quase diária nos meios de comunicação social a promover o evento ao lados principais decisores políticos do país. Foi também sobre Aguiar que recaíram as responsabilidades de dar explicações ao país quando a organização da JMJ se viu envolvida em polémicas de natureza política — especialmente no caso dos elevados custos do altar-palco onde o Papa Francisco presidiu às celebrações de encerramento da JMJ.

No final, o Papa Francisco considerou a JMJ de Lisboa a “mais bem preparada” de todas aquelas em que já tinha participado — e não poupou nos elogios a Américo Aguiar, de quem se tornou muito próximo nos últimos quatro anos, numa carta pública que lhe dirigiu, na qual destacou como o bispo português foi “além do que se impunha” nos esforços de preparação do evento.

No início de julho deste ano, o Papa Francisco incluiu o nome de Américo Aguiar na lista dos novos cardeais que vão receber as insígnias cardinalícias no consistório agendado para 30 de setembro — uma decisão que surpreendeu muitos dentro da Igreja Católica, já que, para todos os efeitos, era um simples bispo auxiliar que ganhava, assim, lugar no Colégio Cardinalício.

Depois de alguma especulação sobre o futuro de Américo Aguiar na sequência da nomeação cardinalícia (chegou a falar-se da possibilidade de ser o próximo patriarca de Lisboa ou de ir para Roma ocupar um cargo de relevo na Cúria Romana), o Papa Francisco desfez as dúvidas e nomeou-o para bispo de Setúbal

Apesar de surpreendente, é uma nomeação, na verdade, em linha com os processos de reforma que o Papa Francisco tem levado a cabo nos últimos anos. Como o próprio José Ornelas referiu várias vezes durante o seu período como bispo da diocese sadina, Setúbal é uma das dioceses do país onde são mais visíveis os graves problemas sociais e a pobreza — e onde a Igreja Católica tem um papel de grande relevo na procura de soluções para estes problemas.

A nomeação de um bispo recentemente elevado à dignidade de cardeal para aquela diocese (numa altura em que, por exemplo, o novo patriarca de Lisboa ainda deverá esperar algum tempo para receber a mesma nomeação) alinha-se com a intenção que o Papa Francisco já tem deixado evidente noutros pontos do mundo de mais dar destaque a dioceses periféricas do que às grandes dioceses — ao mesmo tempo que diversifica a composição do Colégio Cardinalício, que atualmente já não é quase exclusivamente composto por cardeais que ocupam cargos elevados em Roma, mas em grande parte cardeais que trabalham no terreno em todos os lugares do mundo.

Novo bispo recorda relação de amizade com Manuel Martins, o “bispo vermelho”

Na sua primeira saudação à diocese de Setúbal, o bispo Américo Aguiar destacou as suas ligações com o bispo Manuel Martins, o primeiro bispo da diocese de Setúbal (fundada em 1975) e que ficou conhecido como “bispo vermelho” devido ao seu empenho nas lutas sociais na região. Tal como Américo Aguiar, Manuel Martins é natural de Leça do Balio — e foi uma figura de referência no discernimento vocacional de Aguiar, ainda durante o seminário.

“Neste momento, permitam-me que sublinhe a minha relação e amizade com D. Manuel Martins, o homem que assumiu a criação desta Diocese, um Bispo inquestionável na história da Igreja em Portugal, que se fez grande ao lado dos mais pequenos, dos mais pobres, dos mais esquecidos. Conversámos muitas vezes, eu um jovem seminarista e sacerdote e ele, um bispo experiente, forte, destemido, mas capaz de entender as fragilidades e os medos que todos enfrentamos, com mais ou menos defesas”, escreveu Américo Aguiar na sua primeira saudação aos setubalenses.

“Ao receber a notícia da minha nomeação, lembrei-me de imediato de procurar a sua primeira homilia ao chegar a Setúbal em 1975 e a afirmação que foi já citada centenas de vezes: ‘Nasci bispo em Setúbal, agora sou de Setúbal. Aqui anunciarei o Evangelho da libertação, na justiça e no amor. Aqui acompanharei, entusiasmado, todos os que trabalham e lutam para que o homem seja mais homem, numa sociedade justa. Aqui proclamarei o Cristo vivo – que veio e está no meio de nós – o único que pode alicerçar na fraternidade a sociedade justa que é a aspiração angustiante de todos nós'”, acrescentou. “Posso dizer que nasci cardeal em Setúbal (recebi o anúncio da nomeação num armazém da cidade sadina onde fazíamos a montagem dos kits da JMJ), agora sou de Setúbal…”

Numa mensagem que dirigiu não só ao clero de Setúbal (a começar pelos bispos que o antecederam e pelo padre José Lobato, que desde o início de 2022 tem administrado interinamente a diocese), mas também aos “jovens, famílias, pais e avós, filhos e netos, doentes e reclusos, habitantes, trabalhadores e empregadores, visitantes, irmãos do caminho ecuménico e do diálogo inter-religioso, mulheres e homens investidos de autoridade e responsabilidades autárquicas e governamentais, forças vivas do associativismo sadino e das demais instituições civis”, Américo Aguiar agradeceu o “trabalho, empenho e dedicação de cada um em prol do bem comum, da dignidade da pessoa humana, da caridade e da subsidiariedade”.

“A partir do momento em que disse o meu primeiro ‘sim’ a Jesus e à Sua – nossa – Igreja, percebi que este é um caminho que se faz todos os dias, mas sem olhar para trás. Aliás, é o próprio Jesus que o diz”, escreveu o novo bispo de Setúbal.

Na mensagem, Américo Aguiar recordou também os “verdadeiros mestres” que teve ao longo da sua vida, no Porto e em Lisboa, e recordou especialmente o cardeal Manuel Clemente — de quem se tornou braço-direito no Porto e por influência de quem acabaria por rumar a Lisboa.

“Aprendi a não fazer muitos planos, mas antes a predispor o coração e a cabeça para aquilo que o Senhor me pedisse, acreditando sempre que seria Ele a guiar os passos de quem me guia”, sublinhou.

“Disse sim à presidência do Conselho de Gerência da Rádio Renascença e acolhi o enorme desafio de organizar a nossa Jornada Mundial da Juventude, que aconteceu em Lisboa, no passado mês de agosto, mas que, na verdade, movimentou o país de norte a sul, do litoral ao interior, no continente e nas ilhas. Na agitação das últimas semanas de preparação deste encontro inesquecível fui surpreendido pela decisão do meu – do nosso – querido Papa Francisco, ao confiar na minha pessoa a responsabilidade do Cardinalato. Agora, recebo a notícia da sua decisão em relação à Diocese de Setúbal, que muito me honra”, sustentou.

Referindo-se ao bispo Manuel Martins, Américo Aguiar diz não ter “pretensão de ser capaz de tanto”, mas apenas “seguir este caminho de entrega, de fidelidade, de capacidade de levar o anúncio do Evangelho, acreditando de corpo e alma que a justiça e a paz são fruto da ação de Deus, sempre que os homens e mulheres de boa vontade assim o permitem”.

“Mas também reaprendi – e a JMJ Lisboa 2023 foi uma grande escola – que nada se consegue de forma isolada ou solitária. Conseguimos alcançar a meta quando vivemos uns com os outros e uns para os outros”, escreveu. “Venho para Setúbal de coração aberto, com os medos normais de quem se sabe frágil porque humano, mas cheio da Esperança que vem de Deus, que nos leva mais longe, que nos faz superar dificuldades e tropeços, que nos faz acreditar que é possível construir um mundo mais justo, mais fraterno, mais transparente.”

“Uma Diocese é uma imensa comunidade, cheia de homens e mulheres, de crianças e de jovens, todos diferentes, mas é igualmente uma comunidade cheia de sonhos e aspirações distintas, cheia de abundâncias e de carências. Conseguir chegar a todos, estar com todos e para todos é aquilo que o Papa Francisco me pede, é o que Deus espera deste vosso Bispo”, sublinhou Aguiar.

Programa pastoral de Américo Aguiar são as palavras do Papa na JMJ de Lisboa: “Todos, todos, todos”

Américo Aguiar diz ainda, na sua primeira mensagem à diocese de Setúbal, que não tem “um programa pastoral escrito, nem decisões  previamente tomadas”.

“Tenho sim, na memória do coração, muitas das palavras do Papa Francisco que escutámos naquela primeira semana do passado mês de agosto e tantas outras que o Papa não se cansa de repetir”, acrescentou, elencando várias das mensagens centrais deixadas pelo Papa Francisco durante a Jornada Mundial da Juventude de Lisboa, incluindo a ideia de que “a Igreja é de todos e para todos – todos, todos, todos”.

“Que nunca olhemos para ninguém de cima para baixo, a não ser para ajudarmos a levantar quem está caído; que sejamos capazes de correr riscos e corajosos a denunciar a pobreza, a injustiça, a mentira e tudo o que nos diminui enquanto humanidade; que lutemos por agir no concreto e estar próximos dos mais frágeis, dos doentes, dos idosos, dos presos, dos desempregados, dos migrantes e dos refugiados; que a construção da esperança seja uma realidade, onde todos estamos unidos à volta do ambiente, do futuro e da fraternidade; que o Sínodo sobre a Sinodalidade dê frutos abundantes, capazes de transformar a Igreja que somos e o tempo que vivemos; que sejamos determinados na tolerância zero a qualquer forma de abuso sobre menores e adultos vulneráveis; que queiramos efetivamente ouvir os jovens, dar-lhes espaço, capacidade de decidir, de optar, de construir a Igreja do presente e do futuro”, escreveu Américo Aguiar, recordando as palavras de Francisco.

“ Jovens tende a coragem de substituir os medos pelos sonhos… não sejais administradores de medos, mas empreendedores de sonhos”, acrescentou.

“As promessas cumprem-se, mais do que se fazem”, escreveu no final da mensagem. “No dia de hoje, não me sinto capaz de grandes promessas, mas comprometo-me a cumprir a sugestão que o Papa Francisco nos deixou numa das suas intervenções durante a visita ao Bairro da Serafina em Lisboa: ‘Continuai para diante e não desanimeis! E se desanimares, bebei um copo de água e segui para a frente!'”

A vocação nascida da banda desenhada

Américo Aguiar nasceu em 1973 em Leça do Baio, no concelho de Matosinhos, numa família que descreveu em entrevista ao Observador como “católica de batizados, casamentos e funerais”. A sua infância foi profundamente marcada pela ligação ao escutismo católico — onde se inscreveu por influência dos desenhos animados que via na RTP em criança, sobretudo as aventuras dos escuteiros Huguinho, Zezinho e Luisinho, os sobrinhos do Pato Donald.

Foi no escutismo que nasceu a sua vocação sacerdotal e também a sua ligação à defesa do ambiente — que se traduziria numa passagem pela vida política ativa. Entre 1993 e 1995, trabalhou na Câmara Municipal da Maia como “eco-conselheiro” do executivo e foi também deputado municipal na Assembleia Municipal de Matosinhos, além de membro da Assembleia de Freguesia de Leça do Balio, pelas listas do PS, lideradas por Narciso Miranda.

“Para alguns, sou um temível seguidor de Francisco. Assim seja.” Um dia com Américo Aguiar, o novo cardeal português

Acabaria por entrar no seminário em 1995, já com 22 anos de idade. Foi ordenado padre em 2001 e, durante cerca de duas décadas, exerceu vários cargos de relevo na diocese do Porto — incluindo o de chefe de gabinete de vários bispos. Foi nessas funções que conheceu o bispo Manuel Clemente, que mais tarde levaria Américo Aguiar, o seu braço-direito, para Lisboa, como bispo auxiliar.

Durante o seu sacerdócio, Américo Aguiar começou a dedicar-se aos estudos da comunicação social e rapidamente se tornou no homem forte da Igreja portuguesa para o setor dos media, sendo ainda hoje o presidente do Grupo Renascença Multimédia, o grande grupo de comunicação da Igreja em Portugal.

Conferência Episcopal: nomeação vai “ao encontro” das necessidades de Setúbal

Num comunicado enviado aos jornalistas, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa e antecessor de Américo Aguiar em Setúbal, José Ornelas, disse desejar que o ministério de Aguiar em Setúbal seja “fecundo”.

“O Papa Francisco nomeou hoje D. Américo Manuel Alves Aguiar como Bispo de Setúbal. Nesta ocasião, em nome da Conferência Episcopal Portuguesa saúdo D. Américo Aguiar e desejo que, à luz do caminho sinodal que a Igreja está a viver, o Espírito do Senhor acompanhe e torne fecundo o seu ministério junto do Povo de Deus, na península de Setúbal”, escreveu Ornelas.

“Certamente que os dons que Deus lhe concedeu, e que foram germinando ao longo do seu percurso enquanto sacerdote na Diocese de Porto, Bispo auxiliar de Lisboa e, nomeadamente, como coordenador da JMJ Lisboa 2023, estarão ao serviço da Igreja de Setúbal nos desafios com que esta se confronta”, acrescentou.

“Pessoalmente, como bispo emérito de Setúbal, dou graças a Deus e alegro- me por esta nomeação, que vem ao encontro da necessidade da Diocese, após este tempo de sede vacante. Felicito fraternamente D. Américo e imploro as abundantes bênçãos de Deus para o seu serviço episcopal à Igreja de Setúbal, contando com a participação sinodal de todo o seu povo”, disse ainda.