O Banco do Brasil (BB) foi esta quarta-feira notificado pelo Ministério Público Federal (MPF) da abertura de um inquérito civil inédito para apurar as ligações da instituição à escravatura e ao tráfico de pessoas negras no século XIX, à data da sua fundação.

A notícia foi avançada esta semana de forma exclusiva pela BBC Brasil e confirmada pelo próprio Banco do Brasil, à Folha de São Paulo. “O jurídico da instituição analisará o teor do documento e prestará as informações necessárias dentro do prazo previsto”, esclareceu o banco, em comunicado, revelando também que foram 20 os dias concedidos pela justiça brasileira para que a presidência providencie informação sobre financiamentos realizados e a sua relação com a escravatura e sobre a posição do banco a propósito do tráfico humano e da escravatura. “O BB afirma que comparecerá regularmente às reuniões com o MPF”, pode ler-se ainda no mesmo documento.

O primeiro desses encontros já está marcado, para o próximo dia 27 de outubro, e, para além de com os representantes do ministério público, contará também com a presença do grupo de 14 historiadores que deram início a todo este processo, exigindo não apenas um inquérito judicial mas também uma reparação histórica.

De acordo com a imprensa brasileira, este é um caso que pode, não apenas fazer jurisprudência, mas abrir a porta a uma série de processos idênticos e iniciar aquilo que a BBC Brasil define como “um movimento de cobrança por reparação histórica de grandes e centenárias instituições brasileiras – estatais e privadas – que de alguma forma tenham participado ou fomentado a escravidão no país”.

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Nova Iorque cria comissão para avaliar compensações pela escravatura

Em comunicado enviado a este órgão, já depois de a notícia ter sido tornado pública, esta quarta-feira, o Banco do Brasil não rejeitou essa responsabilidade — mas fez questão de recordar que já está a fazer a sua parte — e de forma voluntária —, nomeadamente através da assinatura, há cerca de dois meses, de um Protocolo de Intenções com o Ministério da Igualdade Racial, que visa combater a discriminação racial e de género, através da valorização das mulheres negras e da promoção da sua entrada no mercado de trabalho.

“O Banco do Brasil considera que a história do país e suas relações com a escravidão das comunidades negras precisam ser um processo de reflexão permanente. Em relação à reparação histórica, o BB entende que essa é uma responsabilidade de toda a sociedade”, pode ler-se no texto, publicado na íntegra pela BBC Brasil. “O Banco do Brasil tem sido uma das empresas brasileiras que mais tem contribuído nesse sentido.”

De acordo com os três procuradores responsáveis pelo inquérito, será preciso fazer mais, nomeadamente implementar, a partir do interior do BB,  “iniciativas com finalidades específicas de reparação em relação a esse período”.

“O debate sobre reparação está a acontecer no mundo inteiro. Da nossa parte, queremos aprofundar a discussão com o Banco do Brasil e com a sociedade para que essa história não continua a ser silenciada”, explicou Júlio Araújo, procurador regional dos direitos do cidadão do MPF, salientando que, por ser “diferente de uma investigação tradicional”, o mais provável seja que este inquérito possa terminar em acordo.

Recorde-se que, em junho deste ano, o parlamento de Nova Iorque criou uma comissão para avaliar a possibilidade de pagar compensações aos descendentes dos escravos; e que em março de 2021 Evanston, a norte de Chicago, se tornou a primeira cidade dos Estados Unidos a pagar reparações históricas aos descendentes de escravos.

No âmbito da banca, o Bank of England, fundado em 1694, não só reconheceu em 2020 ter sido “proprietário de centenas de escravos”, situação que considerou “inaceitável” e por que pediu desculpas públicas, como iniciou um processo de reparação financeira aos seus descendentes.

O português José Bernardino de Sá contrabandeou 20 mil escravos. Foi fundador e tinha 5.216 ações do Banco do Brasil

Apesar de entretanto ter sido “refundado” não por uma mas por três vezes, o Banco do Brasil assume, ainda hoje, como data da fundação o dia 12 de outubro de 1808, por carta régia, escassos meses após a chegada da corte portuguesa ao Brasil.

Explicaram à BBC os historiadores responsáveis pela investigação, desde o início, parte do dinheiro do banco, então privado, era obtido através de taxas cobradas a embarcações que faziam tráfico de escravos provenientes do continente africano: “A escravidão e o comércio negreiro financiavam a constituição do banco também de maneira indireta por meio de subscrições”.

Dissolvido pela primeira vez em 1829 apenas para voltar a ser refundado quatro anos mais tarde, a atividade do banco acabou por não durar. Terá sido depois de 1853, ano em que um grupo de empresários se uniu para voltar a pôr a instituição bancária a funcionar, que as ligações do BB à escravatura se fortaleceram, descobriram agora os historiadores. Tudo porque, nesse grupo, perceberam, estariam alguns dos maiores traficantes de escravos do país, independente desde 1822.

E o maior deles seria o português José Bernardino de Sá, maior acionista do banco e um dos homens mais ricos do Império, proprietário de fazendas, inúmeros imóveis e até um teatro no Rio de Janeiro, mas que tinha no tráfico de escravos desde Angola a principal atividade.

“Esse era um mercado muito complexo e envolvia muitas pessoas dos dois lados do Atlântico. Mas também era extremamente lucrativo, porque, na época, um escravizado valia muito dinheiro. Uma única viagem de um navio negreiro podia enriquecer um traficante”, contextualizou em entrevista à BBC Brasil Thiago Campos Pessoa, historiador da Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro.

De acordo com o investigador, que apesar de se dedicar há anos à vida do contrabandista só muito recentemente lhe terá descoberto o nome na lista dos fundadores de 1853, estima-se que entre 1825 e 1851 José Bernardino de Sá tenha contrabandeado 20 mil africanos.

Terá sido num grande armazém de que era proprietário em Luanda que durante esses anos manteve cativos os milhares de pessoas que capturava, em Angola e nos países vizinhos, para depois os embarcar em navios negreiros rumo ao litoral de Rio de Janeiro e São Paulo. Uma vez em solo brasileiro, os escravos seriam mantidos nas suas fazendas, até finalmente os “negociar”.

A conta já chegou. São 20 biliões de dólares

Recorda Bruno Rodrigues de Lima, especialista na história da escravatura no Brasil, o “comércio transatlântico de pessoas” foi, por insistência da Inglaterra, considerado ilegal em 1930 — proibição que no Brasil “nunca pegou”, tendo sido assumida como uma “lei para inglês ver”, o que fez que, em apenas duas décadas, entre 1830 e 1850, tenham sido 753 mil os africanos trazidos à força e ilegalmente para o Brasil.

“Nessas duas décadas, o Brasil foi responsável pelo maior crime contra a humanidade do século XIX”, diz o historiador. “A lei assinada pelo imperador D. Pedro II tem efeito contrário. O tráfico torna-se massivo, em escala industrial. O Rio de Janeiro tornou-se a capital mundial da escravidão. E, para esse mercado dar certo, era preciso muito dinheiro, crédito, operações bancárias e documentos oficiais”, continua a explicar, para chegar a seguir a José Bernardino de Sá, dono na altura de 5.216 ações do Banco do Brasil. “Não era segredo o que ele fazia, ele era uma pessoa rica e conhecida, com muitos investimentos. Mas foi o tráfico que o enriqueceu. Esse ‘comércio ilegal’ era naturalizado, era conduzido pelo Estado e tinha o Estado como parceiro.”

Não seria caso único, garantem os historiadores: a família de João Pereira Darigue Faro, o vice-presidente do banco em 1855, tinha nada menos do que 540 escravos — “Era certamente dos maiores proprietários de escravos no Império”, cita a BBC Brasil, a partir do relatório que deu origem ao inquérito. Já Henrique Ulrich, diretor do banco entre 1854 e 1864, ter-se-á tornado famoso pelos piores motivos ainda em vida, quando o governo de Angola expôs a operação ilegal de tráfico humano que comandava em Luanda.

De acordo com os investigadores, as ligações do Banco do Brasil à escravatura não se resumem aos negócios paralelos dos seus administradores ou acionistas. “Era uma economia que tinha pouca moeda oficial a circular. Era um sistema baseado em títulos de créditos, hipotecas, letras de câmbio… Quem tinha muito dinheiro em caixa eram os traficantes. Então, foram eles que financiaram o Estado, os títulos da dívida e o capital societário dos bancos”, explicou Clemente Penna, investigador da Universidade Federal de Santa Catarina, garantindo que, à época, “todo o sistema financeiro dependia da escravatura”. Com escravos a chegarem mesmo a ser dados como garantia para o pagamento de empréstimos — frequentemente, com a conivência dos bancos.