Na última página de Empúsio, uma nota da autora indica-nos que “todas as ideias misóginas sobre a mulher e o seu lugar no mundo são paráfrases de textos dos seguintes autores”, seguindo-se uma lista bastante extensa que inclui nomes como Joseph Conrad, Darwin, Freud, Platão, Tomás de Aquino ou Shakespeare. Há desde logo um problema na ideia de pôr no mesmo saco filósofos, cientistas, teólogos, psiquiatras e escritores. Quando os membros das quatro primeiras categorias se pronunciam sobre as mulheres, em princípio, estarão a verbalizar a sua opinião ou o consenso científico ou religioso acerca do assunto. Já um escritor ―e particularmente um dramaturgo, como Shakespeare ― quando escreve, dá voz a outras pessoas com as quais não é necessário que concorde.

Faz tanto sentido sugerir que Shakespeare ou Conrad são misóginos por haver comentários que assim podem ser interpretados nas suas obras como argumentar o mesmo acerca da própria Olga Tokarczuk, por lermos em Empúsio: “só tolero conviver espiritualmente com mulheres em pequenas doses. Mesmo que não seja uma rapariga tão tacanha como uma sufragista e tão insípida como as assim chamadas artistas” (p. 240). Shakespeare e Conrad até podem ser misóginos encartados, mas para provar isso não basta parafrasear frases machistas (por muitas que sejam) das suas obras. Aliás, é curioso notar como estes modelos objetivos de aferição de misoginia tendem a fazer ricochete, uma vez que se aplicássemos a Empúsio o Teste de Bechdel (que determina se uma obra é misógina consoante a ausência de diálogos entre personagens femininas sobre outros assuntos que não homens), Olga Tokarczuk chumbaria redondamente.

Hesitei em abrir esta recensão com um comentário político deste género por ser essa a maneira mais simplista de encarar uma obra de ficção e mais imediata para comprar a simpatia ou repúdio dos leitores. No entanto, decidi fazê-lo apenas para no final deste parágrafo poder dizer que, tal como as novelas gráficas de Alison Bechdel são extraordinárias, também Empúsio é um romance interessante, ainda que em muitos momentos três das personagens principais pareçam cabides sobre os quais a escritora deposita todas as ideias misóginas que lá consegue enfiar, tratando-os com tanta raiva e tão pouca empatia que se tornam inverosímeis.


Título: “Empúsio ― Romance de Terror Naturopático”
Autora: Olga Tokarczuk
Editora: Cavalo de Ferro

Tradução: Teresa Fernandes Swiatkiewicz 
Páginas: 344

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Empúsio é o primeiro romance de Olga Tokarczuk após ter recebido o Prémio Nobel em 2018, sendo de louvar que, ao contrário do habitual, a versão portuguesa esteja disponível antes de traduções em línguas como o inglês, o espanhol ou o francês. A ação decorre na Hospedaria para Cavalheiros de um sanatório em Görbersdorf, no Império Alemão, pouco antes do início da I Guerra Mundial, onde se encontram uma série de personagens que passam o tempo a denegrir mulheres e a beber um licor regional. Olga Tokarczuk parece ter desejado forçar o paralelo temático entre Mieczylaw Wojnicz e Hans Castorp, o protagonista de A Montanha Mágica, de Thomas Mann, ao fazer de Wojnicz um estudante de Engenharia forçado a passar uma longa temporada num sanatório no centro da Europa para curar uma tuberculose. Já o título do livro alude à figura mitológica de Empusa, referida em As Rãs, e ao Simpósio de Platão (uma obra que, aliás, serve de resposta à referida comédia de Aristófanes), parecendo-me que a alusão ao diálogo platónico não se deve tanto ao conceito de simpósio ou à passagem da obra referida na página 223 do romance, mas antes à discussão do mito de Andrógino inserida por Platão no discurso de Aristófanes.

Uma questão de calçado

No início do romance, Wojnicz, a personagem principal, desce de um comboio sendo descrito apenas a partir dos seus sapatos. Logo a seguir, “uma das mãos, a direita, fechada como uma trompeta, elevar-se-á até à boca para receber um desfile de tosse curta e seca” (p.10). No capítulo seguinte, já depois de Klara Opitz ser descrita precisamente através dos seus botins, as personagens com que conviveremos no resto do romance são-nos apresentadas pelo calçado que se esconde debaixo da mesa, uma opção esclarecida deste modo: “Nós, porém, achamos que o mais interessante se encontra sempre na sombra, naquilo que não se vê” (p.45). Mais do que uma antecipação do final do romance e um piscar de olho à natureza plural da narradora da história, aponta-se aqui para a necessidade de um olhar novo, que fuja a uma perspetiva genericamente anonimizante e nos permita ver as coisas como se pela primeira vez.

Empúsio é em muitos momentos excessivamente longo, descontinuado e nebuloso, não se devendo isso, contudo, a uma falta de mestria da autora mas, pelo contrário, à tentativa de escrever um romance de terror naturopático que se passe num sanatório de onde nunca ninguém sai, envolto numa névoa parcialmente causada pelo licor que as personagens bebem compulsivamente e que leva a que Thilo pergunte a Wojnicz: “Não tens a impressão (…) de que andamos aqui todos muito confusos? Que não nos lembramos do que dissemos no dia anterior e do ponto onde ficámos? De que lado estávamos, quem era o nosso adversário na conversa e quem era o nosso aliado?” (p. 147) Enquanto leitores, sentimos vontade de concordar com Thilo, sendo a descrição do quadro de Herri met de Bles que o jovem artista roubou aos pais antes de sair de casa um resumo perfeito da intenção de Olga Tokarczuk: “A pintura transformara-se naquilo que, no fundo, era a sua essência ― manchas e tinta, pinceladas arrastadas, partículas que se formavam em grupos de formas vagas e imprecisas. E, quando a atenção do observador já estava suficientemente adormecida, então emergia da pintura uma nova vista” (p. 204). Aliás, o protagonista da história parece encarnar a névoa que se abate sobre Görbersdorf e que, ao esbater fronteiras, conduz à loucura os seus habitantes, conforme lhe explica o médico do sanatório, já perto do fim da história.

A vida bidimensional

O décimo romance da escritora polaca é também, em muitos momentos, uma reflexão sobre a atividade literária, apontando Olga Tokarczuk uma e outra vez para a natureza ficcional da sua construção. As várias iterações do pânico irracional (mais à frente explicado) que a ideia de ser espiado causa a Wojnicz apontam tanto para a narradora como para nós, leitores, que o vemos na intimidade do seu quarto e o acompanhamos para todo o lado sem que ele repare na nossa presença. Aliás, o debate entre August e Frommer acerca da possibilidade de existência de uma quarta dimensão não é mais do que um aceno da escritora aos leitores, uma vez que para provar essa possibilidade, August fala de seres a que chama “planóides” e que habitam um mundo bidimensional, sem fazerem ideia “de que nós, seres tridimensionais, existimos. Nós aparecemos-lhes unicamente quando cortamos o seu mundo bidimensional de folha de papel” (p.215). Ora, é impossível, ao lermos isto, não pensarmos que August é precisamente um dos planóides de que fala, por ser uma personagem de papel. E, ao notarmos nesse engano, vemo-nos forçados a ponderar se também nós não viveremos iludidos em relação ao que de facto somos.

Por fim, Olga Tokarczuk parece ainda empenhada em discutir a necessidade de ficção que nos é intrínseca, quando coloca Wojnicz a pensar na aldeia como um conto, para assim conseguir “pensar em tudo e não ter medo de que, em consequência, visse algo desagradável” (p.155) ou quando o protagonista foge dos seus compatriotas polacos para assim evitar que estes arrancassem “a imagem que cuidadosamente construíra de si mesmo, que se sente bem consigo mesmo e que está seguro de si» (p.188), para evitar que os seus concidadãos destruam a ficção tão compostinha que criara sobre si.

O regresso à ficção longa de Olga Tokarczuk, oito anos depois de Os Livros de Jacob (ainda por traduzir para português), é, então, entre muitas outras coisas, uma reflexão introspetiva e nebulosa sobre a nossa necessidade de uma narrativa que nos redima. Bem vistas as coisas, não espanta que seja um romance de terror.