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Sem praças não há cidade

Este artigo tem mais de 6 meses

"As Praças na Cultura Urbana Portuguesa", de Manuel C. Teixeira, é um raro olhar panorâmico e uma obra de referência no tema em análise — porém, suscetível de nova edição melhorada.

A exposição solar ao longo de todo o dia é aproveitada na disposição da Praça do Giraldo, em Évora, um antigo terreiro que se tornou uma "verdadeira sala urbana" (p. 250), cuja "fachada virada a sudoeste, exposta ao sol mais forte da tarde, é protegida a todo o seu comprimento por arcadas no piso térreo"
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A exposição solar ao longo de todo o dia é aproveitada na disposição da Praça do Giraldo, em Évora, um antigo terreiro que se tornou uma "verdadeira sala urbana" (p. 250), cuja "fachada virada a sudoeste, exposta ao sol mais forte da tarde, é protegida a todo o seu comprimento por arcadas no piso térreo"

A exposição solar ao longo de todo o dia é aproveitada na disposição da Praça do Giraldo, em Évora, um antigo terreiro que se tornou uma "verdadeira sala urbana" (p. 250), cuja "fachada virada a sudoeste, exposta ao sol mais forte da tarde, é protegida a todo o seu comprimento por arcadas no piso térreo"

Tema deveras fascinante, a praça como lugar público e elemento estruturante do urbanismo citadino — aliás, como os rios, ou os grandes jardins, quando os há — diz muito das culturas nacionais entendidas como tal, e uma investigação como a que este coffee table book nos apresenta, com 32 “estudos de caso” em 23 cidades e vilas portuguesas, e um vasto preâmbulo académico sobre “as praças na Europa” (pp. 27-59) e “as praças ultramarinas”, incluindo as dos Estados Unidos da América ainda colónia britânica (pp. 62-109), constitui sem dúvida, entre nós, um raro olhar panorâmico. O livro acaba, aliás, de ser distinguido com o Prémio José de Figueiredo 2023, atribuído pela Academia Nacional de Belas-Artes.

Raro olhar panorâmico, disse e repito, porém pouco atualizado, pois seis densas colunas de bibliografia apenas registam sete referências posteriores a 2010 (e só duas delas portuguesas, sobre a cidade do Porto, e ambas de 2011). Não é preciso ser um oficial da matéria para se estar a par da existência de uma série de publicações recentes saídas em editoras de prestígio como Thames and Hudson ou Routledge, entre as quais Writing the City Square: on the history and the histories of city squares de Martin Zerlang (2023), Somewhere Over the Square: an aerial analysis of urban development de Catalin D. Constantin (Peter Lang, 2021), Urban Squares as Places, links and displays: sucesses and failures de Jon Lang e Nancy Marshall (2016), Urban Squares: spatio-temporal studies of design and everyday life in the Öresund region, editado por Mattias Kärrholm (Nordic Academic Press, 2015) ou Urban Spaces: plazas, squares and streetscapes de Chris van Uffelen (2012).

Jubilado, o professor catedrático Manuel C. Teixeira, de 73 anos — a quem o direito à preguiça também assiste, como é evidente — preferiu gerir o que viu, estudou, leu e escreveu ao longo duma vida académica dedicada à arquitetura e ao urbanismo portugueses, sem cuidar de fazer obra tão informada quanto possível, ou, sequer, como seria de esperar, referir quaisquer trabalhos seus diretamente relacionados com o tema. Apenas por inquérito rápido, refiro: “Os modelos urbanos portugueses da cidade brasileira”, incluído no volume que coordenou A Construção da Cidade Brasileira (Lisboa, 2004); um artigo na História da Cidade e do Urbanismo publicada pela UFRJ em 1997; o ensaio “Portuguese colonial settlements of the 15th-18th centuries. Vernacular and erudite models of urban structure in Brazil”, saído no volume coletivo Le ville européenne outre mers: un modèle conquérant? (Paris, 2000, pp. 15-26), ou “A evolução urbana de Vila Viçosa”, incluído em Monumentos (n.º 27, 2007), ausência esta tão mais inesperada quando o autor regista na bibliografia artigo seu na mesma publicação sobre a cidade de Silves (n.º 23, 2005)…


Título: “As Praças na Cultura Urbana Portuguesa”
Autor: Manuel C. Teixeira

Editora: Afrontamento
Páginas: 308, hard-cover

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Este livro apresenta-se também desatualizado — é possível dizer isto — por prescindir das perspetivas aéreas de alta definição hoje proporcionadas pela fotografia feita com drone, já bastante instituída em publicações e documentários que visam dar a ver algo da forma mais completa possível, de paisagens naturais a espaços de todo o tipo. Neste caso, aliás, entra pelos olhos adentro a parecença flagrante desses registos contemporâneos com os alçados, plantas e planos que são papéis do dia a dia de arquitetos e urbanistas. Tal campanha fotográfica, alargada à trintena de estudos de caso do livro representaria, sabe-se, um substancial encargo para o autor ou o editor (e depois também para o leitor, no contexto de tiragens muito reduzidas que é o nosso), mas teria sido a opção acertada face aos enormes progressos de clareza visual como novo patamar de exigência que editoras especializadas em arquitetura, como Dafne, há anos desenvolvem de modo exemplar. Segunda nota negativa: bastante rico em documentação antiga, colhida de bibliografia muito variada, o livro contém fotografias atuais de cidades e vilas portuguesas, todas de Manuel C. Teixeira, sem mérito algum e uma parte das quais imprudentemente feitas a horas tardias do dia, quando extensas manchas de sombra já obscurecem a maioria dos espaços (v. as pp. 160, 168, 192, 195, 228, 236, 238, 242, 246, 260, 270, 274, 282). E, por último, e podia ser primeiro, não se compreende nem aceita — desde logo como requisito académico, que se julgava caro ao autor — a ausência de índices de nomes, topónimos e assuntos; chaga que está muito longe de lhe ser exclusiva, mas que se faz notar e prejudica o alcance da obra, de design gráfico limpo e razoável. As coisas são o que são, e os livros também. É pena.

Escreve Teixeira na p. 25: “A preservação e a valorização das praças históricas, tornando-as locais privilegiados para o investimento na reabilitação urbana, incentivando o restauro dos edifícios envolventes, foi uma estratégia utilizada em várias cidades europeias” (p. 25). E na p. 9: “A recriação do papel simbólico e funcional das praças é uma tarefa essencial, devendo estas constituir o fulcro da necessária revitalização urbana e da criação de novas formas de urbanidade, desempenhando um papel central no desenho da cidade de hoje”. O sentido de pertença, segurança e até de felicidade que Aristóteles lhes atribuía na organização das cidades foi, ao longo dos séculos, sendo reinterpretado por um grande número de teóricos ocidentais e, desde finais do século XIX, as suas dimensões, proporções e funcionalidades têm sido objeto de revisitações históricas e de novas conceções urbanísticas, que o livro apresenta, avalia e discute em páginas que constituem o pano de cena contra o qual virá, páginas adiante, a abordagem da realidade portuguesa, tardia embora: “Em Portugal, um estudo pioneiro das praças foi o trabalho de José Tudela As Praças e os Largos de Lisboa, de 1977” (p. 21).

A Praça Luís de Camões, em Lisboa, espaço que articula com o Largo das Duas Igrejas e o Largo do Chiado

É, digamos assim, para todos os efeitos, uma generosa e erudita aula de largo espectro, um “estado da arte” como também se diz, mas sem cuidar da aderência direta a realidades nossas a que o título do livro aponta, desde logo a essencial explicação para todo o contraste com Espanha — a nossa falta de monumentalidade, a que se referiu Pinto Barbosa em 1983, as Praças Novas nossas e as Plazas Mayores deles —, num contexto de proximidade peninsular que tanto nos diz. Só no capítulo “As praças ultramarinas” tal contraste é abordado, a par do holandês, do francês e do inglês: “Nos séculos XVI e XVII as cidades coloniais espanholas eram as mais regulares de todas as cidades coloniais europeias. […] A influência deste modelo iria fazer-se sentir no urbanismo de outras potências coloniais europeias, aproximando as suas propostas” (p. 87). Desenhada pelo francês Charles l’Enfant a partir de 1791, Washington será “evidência da cultura urbana global que no século XVIII incorporava influências de diferentes origens e se refletia no urbanismo de diferentes nações. Traçados regulares e a proeminência de praças eram duas das suas características fundamentais. Existiam diferenças regionais, tanto na Europa como nas colónias, mas muito menos afirmadas que em séculos anteriores” (p. 109).

“O primeiro tratado de arquitetura português que se conhece é um tratado de arquitetura militar escrito entre 1576 e 1579, de autor anónimo mas atribuído ao engenheiro-mor António Rodrigues” (p. 44). “A produção teórica portuguesa esteve sempre fundamentalmente ligada às questões da fortificação e à prática da construção, nunca participando ativamente nas especulações sobre a cidade ideal, apesar de as conhecer e as referir nos seus escritos” (p. 43), exceção feita a José Figueiredo Seixas, cujo livro de 1762 Manuel C. Teixeira considera devedor do urbanismo colonial norte-americano — “e interessantes os paralelos que se podem estabelecer com as Land Ordinances de Thomas Jefferson para a estruturação do território americano, as quais só viriam a ser publicadas em 1785” (p. 44).

A Guerra da Restauração foi um período de intensa construção de fortificações em cidades de importância estratégica, o que “teve grande influência no desenho da cidade e na relação das praças com a malha urbana” (p. 52). Mas é em contexto colonial, ao tempo do Marquês de Pombal e em especial no Brasil, com Salvador, São Luís do Maranhão e Belém do Pará, que o nosso urbanismo ganha maior originalidade e modernidade — “a praça ortogonal localizada centralmente e geradora de malhas urbanas igualmente ortogonais torna-se o padrão de referência” (p. 73) —, revertendo daí para novos traçados metropolitanos: “o plano da cidade de Vila Real de Santo António apresenta semelhanças com o plano de Portalegre, construído no Brasil alguns anos antes”, “embora menos elaborado” (p. 77).

Ao pequeno largo da Misericórdia, em Ponte da Barca, desce-se da rua estruturante da vila por uma monumental escadaria em leque que dá acesso à igreja e à antiga Casa da Irmandade, uma disposição "que não é frequente nas praças portuguesas" (p. 274)

Teixeira fará adiante o elogio da cidade portuguesa, em que “a componente erudita, em permanente mutação, articulava-se com a continuidade da cultura vernácula de entendimento do sítio e acomodação ao território”, “uma cidade que não contraria o sítio, antes tira partido dele e se constrói com ele, que não se cristaliza em modelos formais rígidos, que é generosamente aberta a adaptar-se a novas condicionantes ambientais e a novas circunstâncias funcionais e sociais” (pp. 124, 125). É por isso que o plano Santos-Mardel para a reconstrução da baixa de Lisboa no pós-1755 — várias vezes transformado durante a execução (p. 131) —, “apesar do seu geometrismo, era também o resultado de uma síntese do saber erudito com a experiência prática, nele se fazendo uma revisitação de alguns grandes temas do urbanismo português de diferentes épocas” (p. 126). E é essa plasticidade — “as praças são palimpsestos da história e da vida das cidades” (p. 152) — que explica “a diversidade de praças que encontramos em núcleos urbanos construídos em diferentes períodos e em vários contextos geográficos” (p. 132), também porque “a renovação dos espaços urbanos nas cidades portuguesas foi uma preocupação constante dos monarcas” (p. 134). Todavia, “os planos pombalinos para Lisboa são praticamente as últimas instâncias em que se observam elos de continuidade com a tradição urbana portuguesa.

Outros planos posteriores mostram-nos já uma menor aproximação ao território, uma menor predisposição para acomodar o plano à topografia ou explorar perspetivas interessantes a partir do ajustamento do traçado ao sítio” (p. 141). É o caso das pequenas praças “triangulares”, por exemplo em Barcelos, Vila do Conde e Vila Real, (v. p. 163). Ou a sucessão de praças, articulando vias e malhas urbanas, como na Praça Luís de Camões — Largo das Duas Igrejas — Largo do Chiado, em Lisboa, ou na Praça da República, em Valença (pp. 168-69), “cosendo” intra e extramuros, como em Nisa (p. 171), ou induzindo um percurso pedonal de proximidade entre edifícios religiosos e respetivos adros, como as igrejas da Madalena, Santo António e Sé de Lisboa (p. 214). Ou mesmo o Largo da Misericórdia, em Ponte da Barca (p. 192). A exposição solar ao longo de todo o dia é aproveitada na disposição da Praça do Giraldo, em Évora, um antigo terreiro que se tornou uma “verdadeira sala urbana” (p. 250), cuja “fachada virada a sudoeste, exposta ao sol mais forte da tarde, é protegida a todo o seu comprimento por arcadas no piso térreo”.

Todavia, o divórcio será completo por meados do século XX, em particular no novo bairro lisboeta de Alvalade, que “embora seja ainda nalguns sectores expressão do urbanismo de ruas e quarteirões, baseia-se fundamentalmente em referências internacionais”: “As praças não faziam parte do vocabulário modernista, cujas propostas formais eram distantes do urbanismo tradicional português” (p. 145). Bem longe disto está o Largo da Oliveira, centro simbólico de Guimarães: a sua “proporção equilibrada entre as dimensões em planta e as cérceas da envolvente transmitem uma confortável sensação de encerramento” (p. 186; v. tb. pp. 254-55). “Geometria, rigor, regularidade foram, até finais do Antigo regime, sinónimos de beleza urbana. A partir do século XIX, num novo contexto social e cultural, — diz Manuel C. Teixeira, — os critérios estéticos são distintos e já não existe uma identidade entre regularidade e beleza. A multiplicidade de promotores privados envolvidos na construção da cidade oitocentista, e a liberdade de acção por eles reivindicada, resultava na diversidade arquitetónica da cidade” (p. 202).

O último capítulo é dedicado aos “casos de estudo”, a que se fez referência no início. A denominação ‘praça da República’ não parece incomodar o autor, que omite as respetivas denominações anteriores, porventura centenárias. É este elenco é sobretudo a demonstração cabal da variedade de soluções e readaptações que da urbe medieval chegou aos nossos dias, sendo o caso de Campo Maior “peculiar no urbanismo português”, dada a sua “clara inspiração castelhana, construída à imagem das suas Praças Maiores” (p. 244). Ao pequeno largo da Misericórdia, em Ponte da Barca, desce-se da rua estruturante da vila por uma monumental escadaria em leque que dá acesso à igreja e à antiga Casa da Irmandade, uma disposição “que não é frequente nas praças portuguesas” (p. 274).

Sem dúvida, uma obra de referência no tema em análise — porém, suscetível de nova edição melhorada, assim o queiram a vontade do autor, o interesse dos primeiros leitores e o empenho da editora Afrontamento, cuja ação cultural merece ser mais atentamente observada na imprensa que temos.

 
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