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Carlo Chatrian entre o futuro do cinema, a política e a despedida da Berlinale: "Berlim não é só um festival, é um mercado e uma celebração"

O diretor artístico comanda a sua última edição do Festival de Berlim, ao lado de Mariette Rissenbeek. Em entrevista, fala de cinema português, de extremismos políticos e dos filmes deste ano.

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"A decisão foi tomada sem que eu fosse notificado. Portanto, sim, fiquei surpreendido. Ainda acredito que o trabalho que fizemos foi bom e que podíamos continuar", diz Carlo Chatrian

Getty Images

"A decisão foi tomada sem que eu fosse notificado. Portanto, sim, fiquei surpreendido. Ainda acredito que o trabalho que fizemos foi bom e que podíamos continuar", diz Carlo Chatrian

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O Festival de Berlim, que começa esta quinta-feira a 74.ª edição, vive um dos seus momentos mais complexos. É o palco que em fevereiro lança luz sobre os filmes que vão marcar o ano — basta ver como Vidas Passadas, que passou pela Berlinale em 2023, conquistou salas (e nomeações) um pouco por todo mundo. Mas a par dos cortes de financiamento por parte do governo alemão, Mariette Rissenbee e Carlo Chatrian estão de malas aviadas da direção artística do festival, cargo que desempenhavam desde 2019. A decisão da nova ministra da Cultura, Claudia Roth, não foi pacífica. Nomes como Kleber Mendonça Filho, Miguel Gomes, Martin Scorsese ou Hong Sang-soo assinaram uma carta aberta a exigir a continuação do italiano à frente dos destinos da mostra. Mas a decisão está tomada e Tricia Tuttle é a nova diretora, sem co-protagonista, ela que já assumiu funções, estando a preparar a edição de 2025, depois de largar o departamento de Realização de Ficção na National Film and Teleivison School britânica e de amealhar anos na programação de tantos outros festivais. Pelo meio, houve pedidos de boicote à ida de deputados da AfD ao festival e manifestações marcadas durante o evento, dois realizadores iranianos, Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha (que concorrem este ano com O Meu Bolo Preferido) foram impedidos de viajar para a Alemanha pelo Irão, cartas na véspera do primeiro dia de festival para que a direção tomasse uma posição mais clara sobre o conflito na Faixa de Gaza e a guerra da Ucrânia, presente na programação e no seio do próprio júri da competição oficial.

A verdade é que os desafios desta co-direção não se ficam só por dar a cara por um cargo que vão agora deixar. Com um mundo cada vez mais polarizado politicamente, e numa altura em que Berlim tem sido palco quer de manifestações de extremistas, quer de protestos contra estes movimentos políticos, a Berlinale ficou em cheque depois de se ter sabido que deputados da Alternativa para a Alemanha, mais conhecida por AfD (partido de extrema direita) tinham sido convidados para a cerimónia de abertura do festival, que estreará Small Things Like These, o novo filme com Cillian Murphy (baseado no livro homónimo de Claire Keegan), por estes dias sobretudo conhecido (e distinguido) como protagonista de Oppenheimer, de Christopher Nolan. A 4 de fevereiro, surgiu uma publicação de Instagram na conta oficial da Berlinale a dar conta de que, mesmo que os “membros da AfD tenham posições profundamente antidemocráticas, foram democraticamente eleitos”. Quatro dias depois, afinal o convite caía por terra.

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Carlo Chatrian e Mariette Rissenbeek, a dupla que está de saída da direção do Festival de Berlim

dpa/picture alliance via Getty I

O alinhamento deste ano (de 15 a 25 de fevereiro) conta com produções como o novo filme de Adam Sandler, Spaceman, que se estreará na Netflix, ou Love Lies Bleeding, filme queer de Kristen Stewart apresentado no festival de Sundance deste ano; mas também com nomes sonantes ou até antigos do cinema europeu e mundial, que terão os seus filmes em Portugal, como Bruno Dumont, realizador francês que traz L’Empire, coprodução com países como Portugal ou Hong Sang-soo com A Traveler’s Need, com Isabelle Huppert. Mas há mais. O cineasta norte-americana Abel Ferrara traz o seu Turn in the Wound, filme poesia sobre os ecos das feridas da guerra, com a voz de Patti Smith, que terá uma exposição no CCB no próximo mês de maio. Ou mesmo palestras de Lupita N’yong, presidente do júri da competição oficial deste ano ou uma conversa com Martin Scorsese, que será homenageado na Berlinale em plena campanha pré-Óscares. É o momento certo para perceber o que vai na cabeça de quem programou o que vai acontecer entre esta quinta-feira, dia 15 de fevereiro, e o próximo dia 25 deste mês. E, antes do arranque, o Observador falou com Carlo Chantrain. Calmo, seguro e tranquilo, mas ainda surpreendido pela saída. “Tínhamos um acordo para continuar e houve uma alteração na decisão. Essa decisão foi tomada sem que eu fosse notificado. Portanto, sim, fiquei surpreendido. Ainda acredito que o trabalho que fizemos foi bom e que podíamos continuar”, revela.

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Não deixou nenhum conselho à sucessora e continua a defender que a Berlinale deve manter um registo abrangente que permita perpetuar a relevância do festival. Quanto ao cinema português, que este ano tem muito menos destaque do que do ano passado, depois do sucesso e da distinção do díptico Mal Viver/ Viver Mal de João Canijo, Carlo Chantrain só é capaz de deixar elogios, o que se percebe. Este ano, a par de três coproduções com países africanos e com França, a única grande concorrente nacional chama-se Margarida Gil, numa categoria secundária, a Encounters, com o seu Mãos do Fogo. “Claro que, este ano, estamos muito felizes com a vinda da Margarida Gil com um filme que é um tributo ao cinema. Um filme que passa na secção Encounters não é pior do que outro que passe na competição oficial. Essa secção serve para destacar o trabalho que pessoas como a Margarida fazem. Tenho muita admiração pelo cinema português. Creio que vamos ter mais e mais filmes portugueses por aqui”, refere.

[o trailer de “Mãos no Fogo”, de Margarida Gil:]

Entre as guerras do streaming e as greves dos guionistas e atores nos Estados Unidos da América, entre festivais como o de Veneza ou o de Locarno, qual o lugar da Berlinale agora?
É preciso não esquecer que o festival de Berlim, além de ser um festival de cinema e de ter um mercado forte, é também uma festa para o público em geral. Combinar estas vertentes todas é um grande desafio mas também é feito com o máximo de prazer. A minha visão de cinema é o mais abrangente possível. O meu objetivo em cada edição é o de ter o maior espectro de cinema possível. Grandes produções que celebrem estrelas de cinema, mas também produções pequenas independentes. Para que exista um certo tipo de filmes que possam competir entre secções e ser possível mostrar que podemos contar histórias de forma diferente. É claro que também é importante mostrar cinema com uma escala maior. Que possa apelar a uma audiência maior. Este tem sido o meu objetivo em cada ano. Não fazemos cinema, recebemo-lo. Portanto, sim, acredito que a Berlinale tem e continuará a ter um grande potencial de atrair grandes produções.

É o que acontece este ano?
Claro. Abrimos com o filme Small Things Like These, protagonizado pelo Cillian Murphy [nomeado para o Óscar de Melhor Ator]. Estamos a falar de alguém que é a estrela deste ano. Toda a gente está a falar dele. Também temos o Spaceman, com o Adam Sandler, que é da Netflix, e a Carrie Mulligan mais o Paul Dano. Todos vêm parar aqui este ano. A verdade é que o streaming tem-nos apoiado. Claro que o nosso alinhamento é diferente de outros festivais. Pode haver menos cinema norte-americano, por exemplo, menos cinema que queira concorrer aos Óscares, é certo, o que é normal. Mas isso não nos desqualifica. É uma oportunidade de ter mais liberdade para mostrar outro tipo de filmes. Ter filmes do Nepal, por exemplo, é um plus. Não subtrai à Berlinale. É um sinal de que o bom cinema pode vir de outros países.  Esperamos que o feedback que vamos receber, quer de quem participa a nível profissional, quer do público, seja bom, seja arrebatador. Para que possamos mostrar um cinema menos visto mas que, ainda assim, chega a cerca de dez mil pessoas. Este é sempre o melhor resultado que sai daqui.

Agora que está de saída do Festival, foi mais difícil trabalhar nesta edição ou mais fácil?
Não, não foi mais difícil desde o momento em que anunciei que já não estaria na direção do Festival de Berlim. Tive muito apoio de toda a gente, desde realizadores a empresas ligadas ao setor. Portanto, não, não foi mais difícil do que noutros anos desde que estou aqui. Na verdade, no período da pandemia de Covid-19, tivemos mais problemas para programar o Festival, para trabalhar os filmes que não estavam prontos a nível de produção. Acho que o alinhamento representa muito bem o trabalho que temos feito.  Acontece todos os anos termos filmes que ainda não estão prontos ou que são adiados, isso é um facto.  Ou estreias que não estão alinhadas com as datas do festival. Ainda assim, estou contente com esta edição e com outras. Representa bem o que foram estes últimos cinco anos.

Já está em paz com o facto de ter saído da direção da Berlinale?
Nunca estive em guerra com ninguém. Não é a minha forma de trabalhar. Ainda acredito que o trabalho que fizemos foi bom e que podíamos continuar. Por isso é que disse que gostava de ter continuado, mas a responsabilidade do que aconteceu, aliás, da estrutura que dirige este festival, é dos políticos. Se acham que existe outra que beneficie a Berlinale, tudo bem. Portanto, não fiquei chateado. Não estava em guerra. Só fiquei surpreendido. Mas volto a dizer que o alinhamento deste ano prova que fizemos um bom trabalho. Claro que há formas diferentes de trabalhar um festival, não sou presunçoso a esse ponto, de pensar que era o único que podia dirigir a Berlinale.

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Tricia Tuttle, a nova diretora da Berlinale

dpa/picture alliance via Getty I

Falemos da extrema direita e das mais recentes notícias a propósito da Berlinale. Noutros países da Europa foi recebido, com algum espanto, a notícia de que deputados da AfD teriam sido convidados a estar no festival. Este mundo polarizado deixa os festivais numa situação difícil?
Este é um assunto que diz respeito a todos. Quando alguém diz “tu não podes ir a este evento”, isto é uma decisão que diz mesmo respeito a todos. Quando alguém lança um argumento demagógico, por exemplo, uma proposta nesse sentido, para colocar um grupo contra o outro, é sempre mau. Não convidámos ninguém da extrema-direita. Esse convite veio das autoridades, ou seja, do governo alemão. Ou então das autoridades locais de Berlim. Quem foi democraticamente eleito, mesmo que não partilhe os mesmos valores do que eu, não pode ser encarado como uma vergonha se essas pessoas estiverem no festival. Não lhe estamos a dar palco. O que já dissemos é que para estar na Berlinale é preciso respeitar os nossos valores, o nosso código de conduta. Mesmo que seja um político. É preciso seguir as regras da casa e essas são pelo respeito por toda a gente. Toda a gente. Se alguém foi eleito democraticamente, estamos a olhar para mais básicas das leis de um Estado de direito. É impossível proibir alguém de entrar num festival, mesmo com regras. Seria difícil para a Berlinale não deixar entrar quem tenha sido democraticamente eleito. Esse era o desafio. Mas, ainda assim, repito: a decisão não estava do nosso lado. Não fomos nós que convidámos os deputados da AfD. A Berlinale serve para integrar pessoas desde que sigam as regras. Se alguém tiver um discurso anti-semita ou de ódio na passadeira vermelha, diremos que não é aqui o lugar para o ter. O que aconteceu entretanto é que houve atitudes e afirmações explicitamente anti-democráticas e acabámos por retirar o convite. Porque não podemos pactuar com esse tipo de atitudes.

Sei bem que não quererá interferir na nova direção artística que já está a trabalhar na próxima edição, mas quererá deixar algum conselho?
Não me parece que a Tricia Tuttle precise de conselhos, na verdade. Terá o seu tempo para pensar, fará o seu melhor e já está a trabalhar na Berlinale. Claro que espero discutir com ela o trabalho que tem de ser feito e que foi feito. No entanto, não é boa ideia dar conselhos neste momento. É melhor trocar ideias. O que lhe digo é que aproveite. Há muita responsabilidade, muitos desafios, mas é um prazer ter este cargo.

Sobre o cinema português: no ano passado o díptico de João Canijo, Viver Mal e Mal Viver, passou e foi premiado em Berlim. Este ano, a representação portuguesa é muito menos forte, com duas coproduções e um filme de Margarida Gil. O que aconteceu?
Depende sempre do espaço que existe e que esteja disponível. O ano passado tivemos esse grande projeto do João Canijo, foi uma grande surpresa para todos. Ficamos todos encantados. Claro que, este ano, estamos muito felizes com a vinda da Margarida Gil e o seu Mãos no Fogo, um filme que é um tributo ao cinema. Um filme que passa na secção Encounters não é pior do que outro que passe na competição oficial. Essa secção serve para destacar o trabalho que pessoas como a Margarida fazem. Tenho muita admiração pelo cinema português. Creio que vamos ter mais e mais filmes portugueses por aqui. Gostava só de dizer que avaliamos sempre os filmes que passam na Berlinale e não os que não chegaram. Esse julgamento é feito e fica difícil. Há outros que são invisíveis. Voltando ao filme da Margarida, é de destacar o nome de Acácio de Almeida, que representa uma grande parte do cinema português. Sente-se a grande arte do Manoel de Oliveira e todas as referências clássicas e modernas do cinema.

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