“Neste momento, o Óscar é uma boa memória”, diz-nos Juan José Campanella, argentino, realizador e coargumentista de O Segredo dos Seus Olhos, Óscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2010. Passaram-se 14 anos, desde então encontrou uma carreira nos Estados Unidos, sobretudo em séries, com créditos em produções como Lei & Ordem: Unidade Especial, Night Sky ou Halt & Catch Fire (o piloto desta última é dele, que esteve ligado à série durante toda a sua duração). Mais recentemente, assumiu o duplo cargo de realizador e produtor executivo de “Os Enviados”. O Óscar é uma boa memória, abriu-lhe portas, o trabalho nos Estados Unidos deu-lhe “um sentido de história, de estrutura”. “É algo ao qual se dá muito ênfase no mercado americano. No Lei & Ordem é tudo muito estruturado, isso é tudo. Gosto muito disso, mas quando faço algo mais meu, gosto de juntar à estrutura emoção e humor. Ter cenas que se sirvam só a si mesmas e não a uma estrutura.”

Os quatro primeiros episódios da segunda temporada de Os Enviados já estão disponíveis na plataforma SkyShowtime, com mais a chegarem em breve. Quem viu a primeira temporada sabe o que esperar — há aqui um combo perfeito de thriller e religião, com uma dupla de atores que combina lindamente. Miguel Ángel Silvestre e Luis Gerardo Méndez, ou seja, Simón e Pedro, fazem escorrer bem a ligeireza da coisa, são padres com humor, com uma dinâmica equilibrada que os permite fazer coisas em conjunto ou a solo. Nunca se questionam, não colocam em causa a validade de se embebedarem de corpo inteiro, ou de um momento para o outro começarem a sentir algo estranho que os leva a uma pista para descobrir o que realmente se passa.

“Os padres daquela idade, daquela geração, têm uma visão diferente do mundo. Esta dupla permite misturar géneros com facilidade, misturar vários ingredientes para se construir um thriller com humor, humanidade e mística.” A primeira temporada inspirava-se muito na tradição e na forma como se vive a religião no México. Mexia com ideias do além, no que existe para lá da morte, com exorcismo e uma série de rituais à mistura. Foi um fenómeno. A segunda temporada trabalha aspetos mais próximos da experiência religião que se vive, por exemplo, em Portugal. Em parte porque foi rodada na Península Ibérica, em A Guarda, Espanha, a menos de uma hora de Portugal (Campanella disse-nos, a dado momento, que vinham passar os fins de semana ao Porto). O cenário reconhece-se, a paisagem também e os problemas de A Guarda são de igual maneira facilmente reconhecíveis.

[o trailer de “Os Enviados”:]

O maior conflito nesta temporada acontece entre a presidente da Câmara Municipal e o resto da população. A autarca (Marta Etura) quer internacionalizar a cidade, ou seja, vendê-la aos estrangeiros, e para isso precisa que o sítio seja pacato, sem grandes movimentações, e que as festas da cidade aconteçam como têm de acontecer: precisamente em festa. Acontece que pouco antes das celebrações começarem, aquela pequena comunidade é abalada por um violento homicídio. A alcaide quer manter o crime escondido, continuar com as festas como se nada tivesse acontecido; a população não, acha que ignorar é esquecer os mortos, desrespeitar os que estão vivos e em perigo.

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Há ainda outro problema, um carácter religioso associado ao homicídio. O corpo foi encontrado numa igreja — uma igreja que no mundo real foi usada para queimar pessoas durante os tempos da Inquisição — e três freiras cegas chegaram-se à frente como responsáveis pelo crime. Sabe-se à partida que não foram elas, por isso, estarão a esconder o quê e quem? Até porque desde o início que a série lança flashbacks de um crime horrendo que aconteceu no mesmo local há décadas. A segunda temporada de Os Enviados junta tudo o que de bom já existia na ideia de “thriller místico” a uma vontade de mostrar uma sociedade em transição. “Modernidade vs. tradicionalismo, passar-se de uma sociedade fechada para uma aberta. Queríamos muito trabalhar isso nesta temporada”, conta Campanella quando comentamos o pânico tangível da personagem de Marta Etura.

Ao duo de protagonistas junta-se Emilia (Claudia Zie), personagem secundária na primeira temporada e que aqui assume um papel preponderante. Adiciona outras camadas à dinâmica do duo e alinha-se na química já existente. E, para lá do óbvio, de ser um contrapeso ao facto das figuras principais serem homens, cria uma dinâmica essencial nesta temporada, com raízes no policial clássico. O realizador cresceu a ler os livros de Agatha Christie e quis que esta temporada se diferenciasse da primeira pelo fator “quem é o culpado?”. Quem matou, mas também porquê e será que vai matar mais?

A Guarda serve então de cenário para uma segunda temporada mais terrena de Os Enviados. Sim, eles são padres, mas aqui também são detetives à moda antiga, com artimanhas próprias e consciência de que se mexem num thriller que não pode ser levado muito a sério: porque é ficção, brincam-se com os códigos do género e desmonta-se o formato para servir um propósito maior, o entretenimento. Esta segunda temporada junta a tal ideia de estrutura à necessidade de expor emoções, há muito sentido narrativo, mas está pronta a desviar-se a qualquer momento para mostrar tanto a casualidade como a causalidade da dinâmica de Pedro e Simón — e agora de Emilia.