O ex-provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa diz que a demora da auditoria urgente às operações internacionais da instituição provocou uma “asfixia financeira” às operações de expansão no Brasil que vai ter “graves consequências”, imediatas e no futuro.

Numa resposta enviada ao Observador na sequência da notícia que aponta indícios de práticas ilícitas nas operações internacionais da Santa Casa, Edmundo Martinho atira culpas para a atual gestão ao decidir, ainda antes da auditoria concluída, que “não seriam realizadas mais transferências de valores para as empresas participadas”, pelo que “abandonou-se e afundou-se todo o investimento e esforço realizado, sem cuidar de identificar as consequências de tal decisão”. Essa estratégia, entende, “tem graves consequências para a Santa Casa, quer imediatas, quer no futuro”.

Santa Casa. Auditoria encontra indícios de crime económico e práticas ilícitas no negócio brasileiro

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O antigo provedor aponta como exemplos a “perda significativa do valor de participação no Grupo AINIGMA” — uma empresa que detinha 61% da Nexlot, empresa à qual tinha sido atribuída a licença de exploração da lotaria Torito D’Oro no Peru — com “uma perda potencial de 10 milhões de euros, porque recusou investir 100.000€, reduzindo a participação societária da SCML de 26% para 4%”; ou a perda de receitas e capacidade de cumprimento das obrigações do contrato existente com a Loterj — a entidade pública brasileira que explora os jogos no Rio de Janeiro —, que reclama entre dívida, juros e penalizações mais de 6 milhões de euros (30 milhões de reais), segundo a imprensa brasileira. A decisão, segundo diz, deixou “sem pagamento” os trabalhadores das empresas no Brasil.

O ex-provedor refere, ainda, que dos 50 milhões de euros que têm sido apontados como perdas na internacionalização, 27 milhões “foram de investimento” e os restantes “surgem de compromissos não honrados”.

Edmundo Martinho também acusa a atual estratégia de retirar capacidade à Santa Casa de “iniciar um período de renegociação do valor pago pela participação no capital social da empresa MCE” (a empresa adquirida no Rio de Janeiro), o que pode, diz, resultar numa perda de mais de 5,8 milhões de euros pelo pagamento integral do valor do contrato, acrescido de uma indemnização por perdas e danos.

E entende que a nova administração “hipotecou a possibilidade de explorar, em conjunto com o Banco de Brasília, a lotaria daquele Estado”. “Não se pouparam 14 milhões (estes seriam pagos em 7 anos, só após o início do projeto). Perderam-se, isso sim, muitos milhões de receita futura“, atira. Segundo informação recolhida pelo Observador, este projeto não avançou — apesar de pressões para que a nova gestão da Santa Casa desse continuidade — porque o Tribunal de Contas federal considerou que exigiria uma mudança legislativa.

Para Edmundo Martinho, a mesa “desbaratou, por completo, o prestígio” da instituição no mercado e ignorou as propostas que lhe foram apresentadas para aquisição de parte, ou totalidade, do capital social das empresas participadas. “Mas infelizmente, todas estas decisões, ao contrário do que a atual provedora pretende fazer crer, não resultaram de qualquer avaliação, nem sequer são suportadas em resultados de uma auditoria que se tenha realizado com tal objetivo”, argumenta.

Edmundo Martinho diz-se vítima de “tratamento indigno” e acusa nova mesa de “cinismo”

O ex-provedor não poupa críticas à atuação da atual mesa, liderada por Ana Jorge, quanto ao processo de internacionalização e considera ter sido sujeito, em conjunto com outras pessoas com quem trabalhou de perto, a “tratamento indigno”. Acusa a nova administração de “desacreditar” e “denegrir” o trabalho que desenvolveu, de não ser “capaz de definir qualquer estratégia” para a instituição e de “manipular informação a diversos níveis”.

Mais: fala em “cinismo” da nova mesa quando estima um aumento de 9% das receitas com jogo social mas “finge-se grande preocupação com o vício dos jogadores, mantendo uma campanha para manter a boa imagem na opinião pública”.

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Sobre a intervenção da ministra Ana Mendes Godinho, reitera que a governante “soube sempre de tudo e até de forma pormenorizada” — a ministra tem garantido que não aprovou os investimentos concretos — e que a mesa anterior cumpriu o despacho ao informar sobre a estratégia e procurar assessoria por empresas de análise económica e financeira, jurídicas e técnicas.

“Varreu-se tudo, destruiu-se tudo, hipotecou-se tudo, sem fundamento, sem avaliação, sem análise prévia das consequências, mas com juízos de valor e achincalhamento em praça pública”, escreve.