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"Retábulo": e se descobríssemos em palco o que outros podem não ter visto?

Na nova peça de Miguel Castro Caldas, aborda-se uma noção filosófica sobre que é ou não visível aos nossos olhos, em palco ou no dia-a-dia. Em estreia esta quarta-feira no teatro São Luiz, em Lisboa.

Pedro Gil e Teresa Coutinho fazem parte do elenco do espectáculo, que integra também Mónica Garnel e Américo Silva
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Pedro Gil e Teresa Coutinho fazem parte do elenco do espectáculo, que integra também Mónica Garnel e Américo Silva

Estelle Valente/Teatro São Luiz

Pedro Gil e Teresa Coutinho fazem parte do elenco do espectáculo, que integra também Mónica Garnel e Américo Silva

Estelle Valente/Teatro São Luiz

Afinal de contas, o que é que vemos realmente em palco quando assistimos a um espetáculo? Será que vimos tudo o que nos foi mostrado? E será que tudo aquilo a que assistimos é real, mesmo sabendo que se trata de uma peça, escrita e encenada com esse efeito consciente de que o que vemos é apenas um simulacro? Podemos sempre colocar estas questões quando nos sentamos na plateia de um teatro. E perante todas estas, podemos sempre ficar na dúvida se vimos realmente aquilo que outro espetador, sentado ao nosso lado, viu. Em Retábulo, a nova peça de Miguel Castro Caldas, somos justamente confrontados com estas interrogações, num jogo entre aquilo que é visível e invisível aos nossos olhos. A criação estreia-se esta quarta-feira, dia 13 de março, no Teatro São Luiz, em Lisboa.

A premissa colocada pelo dramaturgo é milenar e reporta a uma cultura (expressivamente visual) sobre o poder de clarividência de uns perante os outros. Está bem presente desde logo na religião e na fé: “No cristianismo existe esta ideia de que há um homem, Jesus Cristo, que morre desaparece e que depois volta a aparecer, mas só perante alguns que têm a possibilidade de o ver”, explica Miguel Castro Caldas. Depois disso, acrescente-se, “é tudo uma questão de fé”. Mas podemos ir para lá da religião: tanto no quotidiano, como em muitas formas de expressão artística, facilmente entramos nesta disputa entre o que vemos e aquilo que só os outros veem.

Regressamos ao palco: num cenário aberto, com três plateias – e diferentes perspetivas do que se vai desenrolar – encontramos um retábulo. A estrutura em madeira (curiosamente muito ligada às igrejas) tem uma porta sem fundo. Ao longo de toda a peça, irá funcionar como um portal, como mecanismo de entrada e saída para diferentes contextos narrativos. Vera (interpretada por Teresa Coutinho) apresenta o espetáculo ao público e deixa o mote: “Nem toda a gente vai conseguir ver o que se vai passar aqui”. Apenas as pessoas legítimas, como Martinique (Mónica Garnel), a personagem que entra em cena, podem ter essa possibilidade.

Estelle Valente/Teatro São Luis

Do retábulo surge o elemento disruptivo: Armando (Américo Silva), um antigo namorado de Martinique, aparece e convida-a para deixar a vida que tem com o seu marido Fontana (Pedro Gil). A partir deste momento, toda a trama se gera entre os três e Vera mantém-se, de fora, como elemento marginal, mas em aparente controlo das diferentes situações que sucedem. No desenrolar, debatem-se escolhas de vida, a possibilidade de ainda se poder mudar o curso dos acontecimentos e a importância da nossa curiosidade, enquanto humanos, de ver para lá do que surge diante dos nossos olhos.

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Um retábulo inspirado em Cervantes

Em diálogo com esta farsa teatral de Miguel Castro Caldas está também uma outra peça, O Retábulo das Maravilhas, de Miguel de Cervantes (1615). Narra a história de dois saltimbancos que apresentam um espetáculo em que nada acontece, mas em que todos fingem ver o que lhe está a ser descrito. Foi o ponto de partida para abordar o tema do teatro como uma arte que demonstra algo que não é real. “Estes saltimbancos, na peça do Cervantes, dizem que o espetáculo que trazem à aldeia só pode ser visto pelas pessoas virtuosas e que as que estão em falha moral não conseguem ver. Como ninguém quer admitir que não vê, todos fingem”, explica o dramaturgo.

Por outro lado, diz Castro Caldas, Retábulo pode também ser vista como uma derivação da história de O Rei Vai Nu, de Hans Christian Andersen, em que o rei, vestido de vestes imaginárias, é aplaudido pela multidão sem que ninguém se atreva dizer que este está, na verdade, despido. Nas duas referências abre-se espaço para uma reflexão sobre o vazio de um palco e sobre aquilo que os espetadores conseguem ou não ver nele. Recorda-se aqui a premissa de Peter Brook: “Uma pessoa atravessa esse espaço vazio enquanto outra pessoa a observa – e nada mais é necessário para que ocorra um ato teatral” (O Espaço Vazio, 1968). Neste caso, temos vários intervenientes em palco e sabemos que podemos estar perante um embuste, mas aceitamos viver a experiência.

Estelle Valente/Teatro São Luis

“É como vender a banha da cobra, que é algo que também acontece na nossa peça”, realça o dramaturgo. Não deixa de ressoar no que é o teatro: “Temos atores e atrizes, um dispositivo montado, mas todos os que assistem aceitam viver aquela experiência”, completa. Se nos debruçarmos sobre as personagens que traz para palco, vemos como em todas, algures na narrativa, existe a dúvida sobre o que viram realmente. “E, sobretudo, vemos como ainda há muita falta de coragem em se dizer realmente o que é que se pensa sobre uma coisa que se viu”, sublinha.

A peça que agora chega ao palco do São Luiz assume por isso um lado mais filosófico, mas também um lado mais prático e tangível, que ecoa na atualidade. “O retábulo é um pretexto para falar de uma ideia profundamente ligada ao teatro clássico, mas ajuda-nos a refletir sobre a vida e a nossa existência”, salienta Castro Caldas. A nossa capacidade de fazer escolhas, de ter um pensamento próprio e de manter uma visão que não se deixa influenciar pelas demais são, certamente, as muitas pedras de toque que saltam à vista na peça e que vão para lá da mesma. “Estamos sempre a jogar este jogo de possibilidades e de termos uma porta de saída para as diferentes situações”, diz o dramaturgo.

Não sendo a toca do coelho de Alice no País das Maravilhas ou um portal de multiverso, no qual podemos (re)experienciar a mesma vida em diferentes versões, o Retábulo de Miguel Castro Caldas oferece-nos, no entanto, uma possibilidade de reflexão mais ascética sobre o que é a sociedade do espetáculo aos nossos olhos. E, no fim, podemos não ter a certeza do que vimos, ou se vimos realmente tudo o que os outros virão, mas não deixamos de perceber que existem sempre diferentes formas de olhar.

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