Este artigo é da responsabilidade João Domingos, Senior Vice President Fujitsu Europa

Para aqueles que não prestaram atenção à catequese, evangelho ou gospel, significa “boas novas” ou “boas notícias” e por esse motivo encarei com alguma perplexidade as notícias recentes vindas do Médio Oriente sobre “The Gospel” a nova plataforma militar das forças de defesa israelita (IDF) que apoia na identificação e seleção de alvos militares.

Não é a primeira vez que Inteligência Artificial é utilizada para fins militares e definitivamente não será a última. As críticas à proporcionalidade da resposta israelita aos ataques do passado dia 7 de outubro, em particular elevado número de baixas civis, foram agudizadas pela crescente preocupação de que sistemas militares avançados, utilizando inteligência artificial, estavam a ter um papel decisivo.

O entusiasmo demonstrado por peritos militares do mundo inteiro contrasta com as preocupações da população e cidadãos em geral. De um lado um grupo que vê este momento como uma oportunidade de aprendizagem, do outro um sentimento legítimo de apreensão quanto às consequências em danos humanos e civis.

Já no passado preocupações semelhantes surgiram aquando das últimas intervenções militares americanas no Iraque e Afeganistão devido ao impacto de missões com voos tripulados remotamente. A guerra é um negócio feio, mas a guerra feita do conforto de uma cadeira de “gaming” a milhares de quilómetros de distância tem algo de obsceno.

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Um futuro distópico parece-me inevitável – voos pilotados por ninguém, deixarão armamento escolhido por ninguém em alvos que nenhum humano escolheu. Quase como deixar o seu computador a executar um download de um filme há uns anos. É ir dormir e amanhã ver se correu como esperado… terrível.

Este artigo não é para o preocupar e muito menos para acusar uma força armada ou outra por usar estes instrumentos. Não tenhamos dúvidas que qualquer força ou grupo armado na posse de tecnologia como esta vai utilizá-la. Foi assim no passado e assim continuará a ser.

Temos que discutir o impacto deste tipo de guerra, como antes se discutiram armas químicas ou armas nucleares. Não haverá soluções fáceis, mas é um caminho que como sociedade temos que inevitavelmente fazer.

Em Fevereiro do ano passado o governo americano lançou a “Declaração sobre Responsabilidade Militar no uso de Inteligência Artificial e Equipamentos Autónomos”. Os EUA dizem ter ambição de serem líderes mundiais no uso responsável de IA para fins militares. Esta declaração já assinada, entretanto por quase todos os estados norte-americanos procura definir os princípios base para teste e avaliação de IA em contexto militar. Um pequeno e importante passo, mas precisamos de mais.

A União Europeia já em Janeiro de 2021 tinha começado uma discussão sobre a preparação de estrutura legal para a criação de princípios éticos para a utilização de IA. Esse processo terminou no passado dia 13 de Março com a aprovação no Parlamento Europeu do Artificial Inteligencce Act (AI Act), contudo fora do âmbito deste documento encontram-se todos os sistemas de IA usados exclusivamente para fins militares, de defesa e de segurança nacional. Estamos de volta ao ponto de partida.

Não gostaria que pensasse que a utilização de IA em contexto militar só tem consequências negativas. Se lhe disser que a margem de erro num ataque militar aéreo pode ser significativamente reduzida pelo uso de IA ninguém ficará certamente indiferente. São muitas vidas inocentes que podem ser salvas.

Se algum dia eu tivesse a infelicidade de ter um filho envolvido numa guerra, não tenho dúvidas que preferia que estivesse remotamente a pilotar um avião do que a bordo do mesmo numa zona de guerra, sujeito a ser abatido a qualquer momento.

No fundo e para além das questões morais e éticas de uma guerra tipo jogo de computador, existe também a componente humana da aceitação do erro. Nós estamos mais dispostos a aceitar erros de um outro humano do que estamos a aceitar erros de um computador.

Não lhe desejo nada de mal, bem pelo contrário, mas se estiver a estacionar o seu carro num qualquer centro comercial e raspar num poste você ficará certamente aborrecido, culpará os filhos que fizeram muito barulho ou o seu companheiro de viagem que dá demasiados palpites ou até o stress causado pelo trabalho ou pelo seu Clube de Futebol. Se calhar ao longo da sua vida uma situação destas vai acontecer-lhe uma mão cheia de vezes, mas basta acontecer uma vez sentado num carro autónomo para você nunca mais querer ir num.

Voltemos ao início deste artigo e ao evangelho com que iniciámos esta pequena conversa. Infelizmente a guerra já não se decide à “moda antiga”, um guerreiro de cada lado, uma luta atá à morte e quem ganhar volta para casa. Seria muito mais fácil se assim pudesse ser na Ucrânia por exemplo onde muitos pagariam por um pay-per-view de Zelensky contra Putin.

A guerra tem e terá sempre inúmeras facetas incompreensíveis, mas temos que nos manter atentos ao desenvolvimento destes sistemas e à aplicação de IA. Este tema tem que ser uma prioridade para governos e empresas neste sector.