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A balada de Waxahatchee

Com o novo "Tigers Blood", Katie Crutchfield encontrou um lugar particular que faz de Waxahatchee um nome maior de toda a música com afinidades country. Falta agora que o resto do mundo a encontre.

Katie apareceu-nos assim – ou reapareceu-nos assim – não em transição mas já como borboleta completamente formada, como quem se deita Soccer Mommy e acorda Lucinda Williams (ou Gillian Welch, para citar outra rainha do country)
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Katie apareceu-nos assim – ou reapareceu-nos assim – não em transição mas já como borboleta completamente formada, como quem se deita Soccer Mommy e acorda Lucinda Williams (ou Gillian Welch, para citar outra rainha do country)

Katie apareceu-nos assim – ou reapareceu-nos assim – não em transição mas já como borboleta completamente formada, como quem se deita Soccer Mommy e acorda Lucinda Williams (ou Gillian Welch, para citar outra rainha do country)

Durante anos, a música de Katie Crutchfield, mais conhecida por Waxahatchee, era um pequeno segredo contado ao ouvido, sussurrado pelas bocas dos amantes de indie-rock. Em 2020 deu-se uma inflexão: Crutchfield lançou Saint Cloud, um disco criado no meio do isolamento e de uma batalha contra o álcool, e a música tornou-se menos indie e mais country. Katie libertou a voz e foi ouvida – agora não como um segredo bem guardado, mas como uma herdeira da coroa country, que durante anos pertenceu a rainhas do calibre de Lucinda Wiiliams.

O rústico das canções assentava-lhe bem; a voz encontrava espaço para exprimir uma gravilha que não se limitava à simples melancolia. Katie deixava de ser cool e urbana, mas vestir jardineiras e lidar com os animais do campo só lhe fez bem, trouxe acima algo que existia ali naturalmente – uma ruralidade, uma frontalidade, uma combatividade que estava até então escondida da sua música.

Quando Right back to it, o quarto tema de Tigers Blood e single de avanço ao álbum, foi lançado tivemos por certeza que o caminho traçado em Saint Blood não tinha retorno: Katie não voltaria à urba, estava muito bem a tratar dos vitelos e a colher sala à mão. A faixa abre com um rendilhado de banjo dobrado pelo dedilhar de uma guitarra e a voz entra, cheia das inflexões da country, antes de ficar a pairar, esticando a última sílaba de cada compasso: demoramos uns vinte segundos a arrebatarmo-nos de amor por isto, e ainda nem sequer chegámos ao refrão, em dueto (com MJ Lenderman); a tarefa que nos cabe agora é apenas de escolher o adjetivo mais empolado: é uma faixa perfeita ou magnífica? Os arranjos são imaculados ou exatos?

[o álbum “Tigers Blood” na íntegra no Spotify:]

Ainda há melancolia por aqui, mas Katie já não se resigna só a isso: Ice cold, a faixa anterior, não foge às guitarras a bradar enquanto Crutchfield atira a sua voz aos agudos; Bored abre logo com um solo (de três notas), antes de uma progressão melódica (com slide-guitar em fundo) deixar água na boca para o refrão que abre os bracinhos para o sol pelo menos tanto quanto Katie abre as goelas, ao som de uma tarola viciada em marcar afincadamente o 4-por-4 da canção; e Crowbar recupera um pouco o lado indie nos arranjos de guitarra, mas de resto mantém-se no registo campestre que permite à senhorita Crutchfield passear a voz, desafinado aqui e ali como mandam as regras da country.

O que impressiona, seja a canção mais melódica, melancólica ou aguitarrada e barulhenta, é a segurança de Waxahatchee, o quão cheias, arranjadas as canções são, como cada peça (a slide-guitar, o banjo, as guitarras acústicas e elétricas, a voz) encaixa nas outras, revelando a maturidade e assertividade que por norma está reservada às rainhas, às veteranas, às mulheres que bateram muita terra com poeira e muito bar manhoso de fim de estrada antes de chegarem ao fim do mundo de onde nasce a melhor country. Como é que uma aspirante a semi-estrela indie chega a este estado de absoluto domínio da sua matéria-prima? Como é que se atinge o nível Lucinda Williams de “Quero-que-se-dane-esvaziei-todas-as-garrafas-agora-vou-cantar-o-que-me-apetece”?

[“Right Back To It”:]

Talvez tudo o que seja preciso para atingir este grau seja um pouco de lucidez – e por um pouco queremos dizer: toda a lucidez possível que advém da sobriedade. Em Bored, Katie canta “I get boooreeed” no refrão, mas quando anos antes sentou a escrever Saint Cloud ela estava tudo menos bored – estava a ressacar do álcool que deixara de beber; ou, por outra, talvez não estivesse a ressacar pela primeira vez em muitos anos. Muitos anos: uma década, talvez mais que isso, de constante bebedeira.

Os copos começaram durante a adolescência no Alabama, quando Katie começou a dedicar-se à música como mais que um mero passatempo; meia dúzia de bandas adolescentes depois, ela deu por si a gravar American Weekend, o primeiro disco enquanto Waxahatchee, munida apenas de uma guitarra acústica, a voz e muita bebida – por esses dias ela costumava acordar a beber e deitar-se a beber, reservando algum do seu tempo entre esses dois momentos para beber um pouco. Nos intervalos compunha.

[“Bored”:]

Uma das características mais proeminentes da vida de música é que é preciso ir para a estrada tocar as canções – a estrada, note-se, para a maioria dos músicos não é um mundo de conforto e aviões e catering de luxo, antes uma sequência de carrinhas a cair de podres, o ocasional motel e muitas entrevistas dadas sem dormir. Não raro a estrada potencia todo o tipo de abusos e Katie não foi exceção – o álcool tornou-se uma parte da sua vida.

Quando decidiu ir viver para o rancho do seu namorado (Kevin Morby, sim, esse), aproveitou para tirar um descanso e, já agora, deixar o álcool. Nem sempre essa decisão é levada de fio a pavio mas os efeitos estão à vista: Saint Cloud era um tremendo disco, um disco em que ela refletia sobre os seus dias de abuso: “I’ll put you through hell”, cantava ela em Hell. Mas havia encontrado qualquer coisa – um som, uma voz, uma forma de dizer as coisas, de falar sobre o mundo.

Tenho estado a chamar-lhe country mas não é exatamente country, ou pelo menos não é purista – está entre o country e o rockismo (no melhor sentido de rock clássico) e o folkismo, uma espécie de som universal, que toda a gente conhece e parece existir desde sempre, imutável, mesmo que a country tenha sido transformada e miscigenada mil vezes desde que no início do século passado começou a fazer-se ouvir, onda hertziana após onda hertziana após onda hertziana.

[“365”:]

Katie apareceu-nos assim – ou reapareceu-nos assim – não em transição mas já como borboleta completamente formada, como quem se deita Soccer Mommy e acorda Lucinda Williams (ou Gillian Welch, para citar outra rainha do country). Mas nada, nada, nos prepara para o que acontece em Tigers Blood, a canção que fecha o álbum com o mesmo título: ao fim de quase três  minutos de folk arrastada entra o coro a cantar “It might bring me something, it might weigh me down” e sentimos os pelos dos braços a eriçar e o coração falha uma sístole: que género de beleza é este que nos descompassa o corpo?

Os grandes discos podem abordar temas sensíveis e o que acontece em Tigers Blood pode, para muitos, parecer coisa banal: aceitar a vida, viver numa relação longa quando já se passou a fase da paixão assoberbante, um passeio no lago, as asneiras que se fizeram. Mas os grandes discos têm também outra característica: as letras podiam ser a receita de uma sopa de nabiças e soariam bem na mesma. Ou seja: qualquer que seja a perspetiva, um facto é indesmentível — este é um grande disco.

Katie Crutchfield encontrou o seu lugar na música e esse lugar faz hoje de Waxahatchee um nome maior de toda a música com afinidades country. Agora falta apenas que o resto do mundo encontre Waxahatchee.

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