Parece Lisboa às peças. Terceiro andar sem elevador é um livro cujo género literário fica por descobrir. A autora começou por escrever pequenos textos no jornal Mensagem de Lisboa, que agora são publicados numa versão maior neste volume. São vinte e tocam, essencialmente, no quotidiano aparentemente volátil que faz a vida de uma cidade.

Regressada de Londres, Moreira Marques relata ter vivido em quatro apartamentos em Lisboa. Por casualidade, eram todos num terceiro andar, todos sem elevador. É a imagem da janela, do que passa lá em baixo, que vai em grande parte descrevendo, num movimento que parece, em concomitância, participante e não-participante; de narradora e de personagem. O livro é um conjunto de mosaicos imprevisíveis, e está longe de compor um todo. Os textos unem-se pelo fio de uma aparente casualidade – a dos dias –, e o que daí vem é uma espécie de relação afectiva com a cidade, que apanha e cristaliza a volatilidade do tempo:

Pequenas coisas que são agora a minha vista: o vaso de cravos do senhor idoso de um prédio em frente; o frenesim com que a rapariga toxicodependente, já de barriga, explora o contentor de doações da junta de freguesia na esquina de trás; o abandono cheio de ambição dos rapazes que partilham um apartamento e costumam fumar na varanda; o polícia a patrulhar o edifício do Banco de Portugal” (p. 13)

É nos momentos em que aparece uma imagem cristalizada que a autora voa, seja por um lugar ressignificado pela ligação às filhas, seja pela recordação perene de um amor passado. A vida sobrevive enfim nos lugares, no fio invisível entre passado e presente. Finda a viagem temporal, o leitor dá por si de novo no lugar de partida, observando a Lisboa contemporânea com parte do que tem para trás. Como a escrita é fragmentária, cada texto é um momento, uma hipótese, uma redoma – uma janela para um momento da vida. São breves notas, breves comentários ao sabor do vento, do ritmo de um fim de tarde, e o leitor vai sendo apanhado desprevenido por uma cirúrgica capacidade de observação, que lhe é trazida por uma prosa fina, elegante, direta, ao mesmo tempo que surpreendido pela aparente discricionariedade dos elementos que constituem a prosa.

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Título: “Terceiro andar sem elevador”
Autora: Susana Moreira Marques
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 136

Nascida no Porto, a autora vai pondo a caneta em lugares que vão tendo a marca do afeto sobre uma cidade que não a criou, mas virou sua. Tendo-lhe criado as filhas, não será dela para sempre? Vê-se, ao longo das várias referências, que a descendência fez com que a relação à cidade se tornasse indelével, e a cidade aparece como parte de quem escreve e não como paisagem. Assim, não existe a procura do que é estanque, ainda que haja a sugestão, volta e meia, de uma observação não participante. Em vez disso, há o confluir constante de uma urbe que é também, e principalmente, a vida de todos os dias. E, como a vida de todos os dias tem o seu quê de inesperado, o livro também o vai tendo, partindo de uma ideia para uma memória, partindo do quotidiano volátil para o seu registo em texto.

No meio disto, não se passa ao lado da coetaneidade. Ao invés de procurar uma ideia estanque, a autora busca o movimento e, em simultâneo, a impressão do zeitgeist:

Estamos na nossa cidade e estamos noutras cidades nos nossos ecrãs. Estamos numa praia, de férias. E continuamos a acompanhar o que se passa nas nossas ruas.

Fantasiamos com viagens no tempo, com a invisibilidade, com velocidades extraordinárias que um dia serão alcançadas, mas talvez o dom que estamos mais perto de atingir seja o da ubiquidade.” (p. 71)

A prosa, limpa e cirúrgica, parece saber para onde vai do ponto de vista técnico, mas, no que toca à composição formal, há um quê de fluidez que se assemelha à vida, e que foge por isto à rigidez de estruturas formais. Finda o livro, Lisboa, rua a rua, continua esta coisa incompleta, que ainda tem o desplante de estar em movimento.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia