São “joias de humor, de observação, de recriação de atmosferas e personagens”, “retratos impressionistas, temperamentais” de “um autor literariamente feliz, contraditório, elegante, nostálgico, único na nossa literatura”.

As definições vêm dos escritores Urbano Tavares Rodrigues e Francisco José Viegas, separadas por mais de três décadas entre si, e têm em comum não só o reconhecimento do escritor Manuel Teixeira-Gomes (1860-1941) e do seu valor literário, mas também do homem livre, convictamente republicano, viajado, informado, culto, que foi diplomata, vice-presidente da Sociedade das Nações, 7.º Presidente da República Portuguesa, e que cumpriu no exílio, durante quase 20 anos, o seu “ofício de viver”.

A obra “Regressos”, publicada pela primeira vez em 1935 pela Seara Nova, volta agora às livrarias, seguindo a reedição de 1991 da Bertrand, há muito esgotada, com o prefácio de Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013) que então a acompanhou, e uma nova introdução do editor e escritor Francisco José Viegas, intitulada “Os Territórios de um Exilado”.

Com a chancela da Quetzal Editores, a nova edição recupera o texto dessa edição de há 33 anos, também fixado por Tavares Rodrigues, com a catedrática de Literatura Helena Carvalhão Buescu e o historiador Victor Wladimiro Ferreira (1934-2012).

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A capa da nova edição de “Regressos”, de Manuel Teixeira Gomes

“Regressos” é um livro raro na literatura portuguesa, que reúne temas e exercícios feitos de memória, conjugando o que Teixeira-Gomes viu, viveu, visitou e as impressões que reteve, anos antes, e a que regressa, já no exílio, sob um olhar irónico, por vezes caricatural, outras vezes nostálgico ou sentimental, mas sempre objetivo e claro, fazendo dele umas das obras “mais fascinantes” do autor de “Maria Adelaide” e “Novelas Eróticas”, como Tavares Rodrigues assinalou no prefácio de 1991.

“Tentaremos fixar essas recordações”, declara Teixeira-Gomes no texto sobre Alcobaça (esse “recinto silencioso, ainda respeitado pelos bárbaros”), neste regresso ao passado a partir do “muito suportável exílio” a que se impôs em 1925.

O portimonense Manuel Teixeira Gomes assumiu o cargo de Presidente da I República de 05 de outubro de 1923 a 11 de dezembro de 1925, quando voluntariamente renunciou e deixou o país, embarcado no cargueiro neerlandês Zeus em direção a Oran, na Argélia, onde se autoexilou, sem nunca mais regressar ao território português.

Francisco José Viegas recorda que Teixeira-Gomes iniciou este livro quando era embaixador em Londres, “sem saber que ia ser um livro”. “Évora”, “Alcobaça” e “Sintra” são alguns dos primeiros textos, escritos entre 1916 e 1917. O autor acabará por regressar ao projeto em 1928, já exilado na Argélia.

Todo o jogo de memória de “Regressos” remonta a viagens realizadas pelo autor antes de 1900. Numa delas dá conta do seu encontro com a rainha Amélia, numa feira em Lisboa. Para Viegas, esta é “uma das passagens maias divertidas e comoventes — ver um republicano seduzido por uma rainha da Casa de Orleães”.

A passagem pela capital portuguesa é também realçada por Tavares Rodrigues. “Especialmente os apontamentos de 1895, sobre Lisboa, fixados em rápido canevas [esboço] e depois ampliados, retocados, burilados estilisticamente, tornados em verdadeiras joias de humor, de observação, de recriação de atmosferas e personagens”.

Para Viegas, são “pinceladas brutais”. Essa Lisboa do final do século XIX surge perene na mão de Teixeira-Gomes, através da “reprodução de diálogos atrevidos e marialvas, às vezes pisando o risco do faceto, apreciações sem pudor (mesmo em relação a si próprio) e, até, uma deliciosa, mal dissimulada, atrevida e temerária paixoneta pela rainha Dona Amélia, que encontra numa barraquinha de feira e com quem troca palavras e cumplicidades”.

De todas as referências geográficas, o Algarve, onde Teixeira-Gomes nasceu, é um “território reservado”, como refere Viegas, dando como exemplo “uma passagem melancólica, curiosa e com um fundo de dor nostálgica” no capítulo que dedica a Lagos, quando, tendo zarpado de Ruão, em França, a bordo do vapor Ange Schiaffino, se aproximou da costa portuguesa e fixou “o caiado casario” e recorda “as horas luminosas [que] ali passara”.

“Regressos” teve, em 1935, duas edições, “quando outras obras de Teixeira-Gomes, mais ambiciosas e até de mais rica polpa, não lograram semelhante triunfo”, escreveu Urbano, que admite esse sucesso ao facto de o livro também poder ser visto como “uma espécie de guia artístico das belezas monumentais de Portugal”, do Porto a Coimbra ou Lagos, sem deixar de fora museus e lugares históricos, já que “pouco difere do tom geral do macrotexto gomesiano”.

No capítulo sobre Santiago de Compostela, o último da obra e o único além-fronteiras, que dedicou ao pedagogo e sociólogo António Sérgio (que coincidiu à frente do Ministério da Educação durante parte da Presidência de Teixeira-Gomes), escreveu o autor de “Sabina Freire”: “Vamos lá ver agora sozinho, nesta remota Bougie [na Argélia] de tão santas tradições muçulmanas, o que me acudirá à lembrança a respeito da católica e sagrada Santiago”.

Para Tavares Rodrigues, o escritor algarvio atinge, em “Regressos”, “o ponto de combustão, de refinamento da energia vital, da ironia transfiguradora, da admiração estética que operam a metamorfose dos seres e das coisas por ele vistos em formosas realidades verbais de uma pureza cristalina”.

Francisco José Viegas, por seu turno, realça que o livro reúne “retratos impressionistas, coloridos, temperamentais” de “um autor literariamente feliz, contraditório, elegante, nostálgico, único na nossa literatura. Único no seu país, a que nunca regressou senão através de um livro intitulado ‘Regressos'”.