Enviado especial do Observador em Paris, França

Os dias de atletismo nestes Jogos tinham começado na véspera e com casa cheia nas duas sessões mas este sábado acabava por trazer uma cor diferente às bancadas também por ser fim de semana, com uma autêntica romaria de adeptos dos mais variados países a um Stade de France onde todos acabam por apoiar todos. Era mais uma manhã com o recinto lotado e com a polícia a ter a preocupação de fazer algumas paragens sempre que chegavam dois comboios à paragem mais próxima para que o grupo da frente pudesse ir escoando sem provocar grandes aglomerados. Aqui, tal como tínhamos visto no râguebi de sevens, a questão de segurança é um pouco mais apertado, com a primeira revista a ser feita ainda a uns 500 metros dos acessos. Sobrava um ambiente de festa, com espírito olímpico. Um ambiente bom de viver mas que não apaga realidades.

Dezenas e dezenas de atletas entravam nas provas para as quais se foram preparando ao longo de um ciclo mais curto mas também com isso mais duro por não haver aquele ano completo de maior descompressão a seguir aos Jogos. Aqui, tudo pode mesmo acontecer. O norueguês Paul Haugen Lillefosse foi um bom exemplo de como não se consegue controlar tudo e uma lesão ainda no aquecimento da qualificação do salto com vara (onde o português Pedro Buaró ficou nos 5,60) fez com que deixasse a pista numa cadeira de rodas para ser assistido. Muita tristeza, muitos aplausos de solidariedade que vinham das bancadas. Os mesmos que foram tentando servir de consolo ao moçambicano Steven Sabino, que com uma falsa partida acabou por não fazer a pré-eliminatória de acesso à primeira ronda da esperada competição dos 100 metros masculinos.

Foi neste ambiente que Flávia Maria de Lima fez a prova de repescagem dos 800 metros. A vida da atleta brasileira tem sido marcada nos últimos dias por tudo menos competição e, depois de não ter conseguido a qualificação direta para a fase seguinte, tinha uma oportunidade este sábado de fazer uma surpresa e ir um pouco mais longe nestes que são os segundos Jogos depois do Rio-2016. Durante cerca de dois minutos, foi ela, só ela e um teste a si própria. A partir de agora, voltarão os fantasmas que a têm assolado.

Através de um vídeo que deixou na sua página oficial no Instagram e de outros que faria para responder a meios brasileiros que tentavam entrar em contacto com a atleta já na Aldeia Olímpica, Flávia foi dando conta dos seus receios a propósito da filha depois de mais uma ação colocada pelo pai e ex-marido para ficar com a custódia de Vitória. Razão? “Abandono de criança”. Tudo porque, chegada ao momento das competições, a atleta fez aquilo que era suposto: rumou a Paris para representar o seu país. E foi esse peso que a brasileira de 31 anos foi carregando nos últimos dias, num caso que, ao contrário do que é normal em questões do foro mais pessoal, está expresso na própria página oficial feita pela organização dos Jogos Olímpicos.

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“Por incrível que pareça, a minha profissão é o ponto que está agora a ser julgado. Sim, as competições em que participei foram colocadas lá, alegando que abandonei a minha filha. No começo até fiquei aterrorizada, amedrontada, fiquei com medo de competir, de viajar, até pensei em desistir, mas com um acompanhamento psicológico e conversando com a minha mãe, que esteve sempre a apoiar-me todos os dias, resolvi lutar e procurar os meus sonhos, vir atrás de tudo aquilo que sempre sonhei”, explicou Flávia Maria de Lima, neste caso num vídeo que foi enviado para a delegação do Globoesporte do Paraná presente em Paris. “Os Jogos são o sonho de qualquer atleta, o ponto alto da carreira do atleta de alto rendimento. Estar pela segunda vez não tem preço, é um momento de gratidão porque é muito difícil lá chegar”, acrescentou.

A publicação explica que foi registado em junho um processo a envolver maus tratos que se encontra agora em segredo de Justiça por envolver uma criança. Flávio conheceu o antigo marido quando foi treinar para Campo Mourão, também no Paraná onde nasceu (Campo do Tenente), em 2010, engravidando de uma forma não planeada em 2018 e ficando um ano sem competir – e sem clube nem patrocínios, valendo-lhe apenas o que ainda recebia por ter estado no Rio-2016. Foi por isso que, enquanto regressava, falhando Tóquio-2020, foi começando a fazer trabalhos de croché. Agora, além do regresso às corridas, estuda Nutrição em Campo Mourão e é terceira sargenta do exército brasileiro. Tinha a vida estabilizada. Até ao último ano.

Flávia avançou com o processo de divórcio do agora ex-marido e voltou ao Campo do Tenente, onde nasceu, para ficar mais perto da família e ter esse apoio com a filha, nomeadamente dos pais. Em paralelo, tentou ir fazendo todas as provas nacionais e internacionais possíveis, não só pela qualificação para os Jogos mas para manter as bolsas de apoio e os patrocínios. No entanto, essas saídas acabaram por ser utilizadas na disputa da custódia da pequena Vitória e Paris abriu mais uma frente na guerra que vai travando nos tribunais.

“O que quero nestes Jogos é mostrar a todas as mulheres que, mesmo num mundo em que o machismo está a predominar, elas não precisam ficar reféns. Estou a representar toda uma classe de mulheres que lutam pelos seus direitos, para mostrar que podemos, que temos resistência e que existe liberdade fora de um relacionamento abusivo. Mulheres, sejam fortes. Não desistam de vocês. Continuem a luta, continuem a a vossa carreira sem deixar de lado os cuidados que têm com os vossos filhos e não desistam. Nunca, nunca, desistam. Sejam resilientes, sejam fiéis a vocês mesmas. Tudo isso vai passar, vão encontrar a verdadeira felicidade e vão ter a justiça do vosso lado”, destacou num longo vídeo publicado na conta do Instagram.

Foi também aí que Flávia Maria explicou o “beco” em que se encontrava. Se não viesse a Paris e ficasse com a filha, tiraria argumentos ao marido na questão da luta pela custódia mas perderia também apoios que são importantes em termos financeiros para sustentar a família; vindo, cumpre essa parte mas volta a viver o pesadelo da luta em tribunal. E foi com todo esse contexto que voltou a entrar na pista do Stade de France para as repescagens dos 800 metros. Não conseguiu a qualificação, fazendo até um tempo ligeiramente acima do que fizera na véspera, mas mostrou-se agradada com a experiência. “Foi bom, aprendi com este novo modelo de competição. Foi uma nova chance de fazer resultados bons porque precisamos de cinco por ano. Achei a pista sensacional. Traz uma sensação diferente, mexe com sentimentos”, referiu no final.

Sobre a custódia da filha, nem uma palavra. Antes de passar pela zona mista, o assessor de imprensa do Brasil para o atletismo tinha pedido para que não fossem feitas questões sobre o assunto porque as mesmas não seriam respondidas, quebrando aquilo que tinham sido dias seguidos de declarações através das redes sociais. Todos perceberam o quanto o tema foi mexendo com a atleta e a sua preparação, sendo que qualquer palavra mal dita ou tirada do contexto poderia ser prejudicial para a guerra que enfrenta e vai continuar a enfrentar. As corridas de meio fundo acabaram para Flávia nos Jogos mas não fora das pistas.