Enviado especial do Observador em Paris, França

Os Jogos terminam este domingo, a Aldeia Olímpica já começa antes a fazer a despedida. É certo que, até ao início da tarde, ainda estarão em disputa algumas medalhas em provas coletivas e individuais (logo à cabeça com Maria Martins, que pode tornar ainda mais dourada a presença do ciclismo de pista nacional em Paris melhorando o sétimo lugar de Tóquio) mas são muitos os atletas que vão partindo de mala feita rumos aos seus países com o sentimento de dever cumprido, realizando ou não as metas a que se tinham proposta. É assim em todas as edições, tal como a mudança de vida no local que recebe a grande maioria dos atletas que está em competição nas mais diversas modalidades. Agora, entramos na fase do “vale tudo”.

Durante um ciclo de três anos, os atletas trabalham para construirem uma plataforma de lançamento para a qualificação olímpica. Durante largos meses, sobretudo os que antecedem as provas, entram num regime que envolve ainda mais privações, cuidados, ainda mais ausências de casa. Quando acabam, à exceção daqueles que logo de seguida vão competir outra vez (e até esses têm os seus dias de desligar a “ficha”), há aquele último suspiro de final de desafio e momentos para maior descontração. As três esplanadas que estão mais ao pé da saída dos atletas estão agora sempre cheias. Não se vê muito álcool, quase nenhum até, mas cumprem uma espécie de férias dentro do possível antes de cerimónia de encerramento. Muitos já vão embora.

Há quem leve os sacos grandes em direção aos transportes, outros que têm carros da organização para isso. Quase todos têm um saco desportivo grande a fazer de mala mas sem rodinhas e uma mochila. Da Austrália, dos EUA, de delegações de países africanos. Cá fora, ainda há quem tente aproveitar os últimos cartuchos, seja naquela habitual troca de pins que em Paris não foi exceção (até em Tóquio, mesmo em “bolha”, ainda apareciam uns quantos), seja no pedido de autógrafos ao ponto de perguntar depois quem é e que desporto pratica. Também há encontros curiosos, como o de dois atletas chineses que iam falando com duas atletas checas em grande festa mas sem dominarem propriamente uma língua que os aproxime para isso.

Por essa entrada, depois lá dentro (o gradeamento que existe em torno da Aldeia tem uma proteção meio transparente que dá para perceber quem anda ali) e ainda mais em baixo na saída junto do Plaza, começam a passar atletas que por uma noite deixam as credenciais na mala, querem ser apenas pessoas “normais” e vão com roupa não desportiva em viaturas que vão sendo pedidas. Também existem casos de famílias que visitam a mãe na Aldeia Olímpica, passam umas horas e vão depois embora quando passa determinada hora e outros de casais que vão jantar fora até que um, neste caso o namorado de uma italiana, deixa a companheira na entrada, despede-se e combina coisas para segunda-feira. Se para os atletas a cerimónia de abertura é um momento que gostam de marcar presença, a de encerramento já não tem a mesma atração.

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Por esta hora, Rui Oliveira e Iúri Leitão ainda estavam a chegar à Aldeia Olímpica, tendo depois feito essa primeira refeição como campeões olímpicos. É verdade, não sendo do atletismo também é possível ganhar com as cores de Portugal – e esta tarde aconteceu isso pela primeira vez. Com o Centro de Imprensa fechado pelas horas mais tardias face ao estipulado, ainda há uma mesa e uma cadeira cedidas pela voluntária para ir adiantando trabalho enquanto se espera. A certa altura, o aparato é grande. Uma estrela estava a chegar, pela entrada mais na parte de baixo da Aldeia. Com alguns elementos da delegação, Imane Khelif, que se sagrara na véspera campeã dos -66kg de boxe, entra na zona de controlo do detetor de metais como uma heroína. Os seguranças conhecem-na e pedem uma fotografia, das voluntárias só uma sabia quem era mais todas tiram. Com um perfume que se sentia ainda longe, um cruzamento permite uma troca de palavras com a argelina que se tornou uma das histórias centrais desta edição. Diz que, agora, pode e merece ir às compras (em inglês). Leva numa mão um canudo com uma tela e na outra um saco de pano cheio até cima.

As próprias luzes dos principais edifícios que ficam mais próximos daquela zona começam a estar bem mais desligadas num fim de festa que já começou há alguns dias e que terá entre amanhã e segunda-feira o ponto mais alto. Começava a ficar tarde, é um facto, mas nota-se que existe muito menos agitação por ali. Só por volta das 00h50 é que Iúri Leitão e Rui Oliveira vêm ao exterior da Aldeia falar mais uma vez aos jornalistas. Tirando entrevistas de lançamento dos Jogos, provavelmente nunca terão falado num só dia do que em todos estes meses de provas. A comida foi a possível dentro do que havia, porque mesmo não sendo nada de muito extraordinário uma massa é sempre uma massa, a reação das pessoas mudou radicalmente perante dois campeões olímpicos de medalha ao peito. Nunca chegaram a “procurar” ninguém, hoje são procurados.

A cumplicidade entre ambos é notória, o brilho nos olhos mostram que nem precisam falar para perceberem o que cada um está a pensar. Cumprimentos, mais parabéns, conversa ainda de circunstância onde a brincar se dizem algumas verdades. “Se acompanhassem mais os Mundiais e os Europeus que fazemos sabiam que tínhamos feito mais vezes dupla no madison, não foi só agora”, recorda Rui Oliveira, recuando às provas que realizaram nos últimos Europeus. “Mas agora vai começando a mudar”, acrescenta. Partilham a felicidade da resposta de Ronaldo à celebração genuína feita uns segundos antes de subirem ao lugar mais alto do pódio, ficam visivelmente satisfeitos quando sabem que Pedro Pablo Pichardo viu o final deles na zona mista.

“A sério? Que bom, não sabíamos”, dizem. O saltador que ganhou a prata depois do título olímpico alcançado em Tóquio tinha deixado Iúri Leitão a sonhar alto na véspera. Afinal, em caso de vitória no madison, podia igualar Carlos Lopes e Pichardo como atletas com melhores resultados em Jogos Olímpicos com uma nuance que é tudo menos pequena – se isso viesse a acontecer, seria o primeiro a ganhar mais do que uma medalha na mesma edição por Portugal. Pensou, sonhou, até chegou a admitir que pudesse não cumprir perante a falta de reação das pernas no início, alcançou um ouro histórico. Quando ainda está a tentar responder a todas as mensagens pela prata no omnium, eis que chegou nova remessa de mensagens.

“O que falámos quando saímos da Aldeia era aquilo que tinha dito na segunda-feira, podíamos estar a sair para discutir o top 10 como as medalhas. Sabíamos que estávamos numa forma excelente, ele está muito bem e eu também, que estávamos ao nível dos adversários e podíamos lutar pelas medalhas com a nossa tática”, contou Iúri Leitão. “Dificuldades iniciais do Iúri? Sim, ele disse-me logo no início nas duas primeiras vezes a pontuar, passado um pouco disse que estava um bocado cansado e eu disse para ele ter calma. O tempo para falar entre rendições é pouco mas mantivemos a nossa estratégia. Fizemos oito pontos, nas últimas 40 voltas é que foi sempre a pontuar. Ele queria arrancar um bocado mais cedo mas eu já o conheço, tive de travar um pouco… A estratégia foi excelente, estávamos com grandes pernas”, referiu Rui Oliveira.

“Trabalhamos a vida inteira para ter a oportunidade de estar nos Jogos Olímpicos e sermos reconhecidos pelos portugueses pelo nosso trabalho. Ter tanto apoio espectacular. Um dos nosso pontos principais, dos mais fortes, é mantermos sempre a calma. A meio da prova nem aparecíamos na classificação mas já estamos habituados a isso. Estamos habituados a deixar as coisas para o final, quando a fadiga já está instalada e fizemos a corrida perfeita. Esta é uma prova que vive muito do altruísmo, pensar no nosso colega. Se nós quisermos descansar mais, o nosso colega vai ter de fazer mais”, foram contando sobre a prova.

“Todos nos emocionámos com o hino, claro. É a nossa estreia olímpica, do ciclismo [masculino] nos Jogos e só o facto de já cá estar é excelente, correr para o diploma também, chegar às medalhas e ganhar… Depois subir, ouvir o hino com toda a família e amigos além dos portugueses lá em casa… É um sonho termos vivido tudo isso que vou guardar por muito tempo. Que continuem a apoiar, a ver que é uma modalidade muito bonita”, salientou Rui Oliveira. “O primeiro lugar é mesmo diferente, é inimaginável a diferença entre ficar em segundo ou em primeiro. Acabámos por surpreender toda a gente, só não a nós, ao nosso treinador e quem nos conhece de outras provas”, comentou Iúri Leitão, antes de falar da mensagem de Ronaldo.

“Para todos os desportistas e para a grande maioria dos portugueses, o Cristiano Ronaldo é o maior ídolo de toda a gente e chegarmos ao ponto mais alto dos Jogos Olímpicos e termos esse reconhecimento do nosso maior ídolo é sensacional. O festejo foi mesmo à última hora, antes de subirmos ao pódio, mas a ideia foi dele”, referiu depois Iúri a apontar para Rui Oliveira. “Sendo fã obviamente do Cristiano pensei logo nisso”, garantiu o companheiro. “História por serem duas medalhas numa só edição? Só soube desse facto depois da prova terminar, não sabia. Estrear-me desta forma é incrível. Estamos habituados a ver os nossos ídolos de infância nos Jogos Olímpicos e de alguma forma acabei por superá-los. O ciclismo é uma profissão como todas as outras, como tudo o que se sabe, mas no final não é diferente da vida de qualquer pessoa”.

Rui Oliveira continuava sem grandes palavras, Iúri Leitão continuava a encontrá-las com a mesma mestria com que vence medalhas na pista. O primeiro ainda acha que não irá dormir, o segundo admite que está a ficar com sono. Mais uma vez, impera a cumplicidade. Fechamos a noite já depois da 1h da manhã a saber com quem gostariam antes de ter tirado fotografias (agora não vale a pena, querem é tirar com eles) e quem eram os seus ídolos. Rui Oliveira diz logo Ronaldo, Iúri percebe que vai buscar uma pergunta anterior mais sobre os Jogos e, olhando para os portugueses, fala em Telma Monteiro e Nelson Évora. De fora, Michael Phelps e Usain Bolt, Rui recorda Simone Biles, nenhum esquece os britânicos do ciclismo de pista. E onde vai ficar a medalha durante a noite? “Vai ser no cabide outra vez”, brinca Rui Oliveira. “Não temos nenhum sítio especial. Eu não vim preparado para ganhar logo na estreia, nem eu nem quase ninguém…”, acrescenta Iúri Leitão. Uns passos em frente no regresso à Aldeia e mais uma fotografia com um polícia que fala português. A vida de ambos mudou e agora estamos apenas no início de todo esse processo mas também eles têm de fazer as malas porque não terão muito descanso no regresso à estrada. A história estava feita.