Estava mais do que anunciado. A primeira cerimónia solene do 25 de Novembro no Parlamento acabou por ficar inevitavelmente marcada pela polarização entre os partidos mais à direita e mais esquerda em torno de uma data que os primeiros sugerem ter sido determinante para a consolidação da democracia em Portugal e que os segundos defendem que só serve para tentar retirar importância ao 25 de Abril. Para lá da ausência do PCP e do protesto do Bloco de Esquerda, a cerimónia ficou também marcada pela saída de um grupo de deputados do PS enquanto André Ventura discursava.
Marcelo Rebelo de Sousa, o último a intervir na cerimónia, procurou, através de um longo discurso, fazer uma viagem pela história do 25 de Abril, desde os momentos que o antecederam até ao 25 de Novembro, passando pelo que se viveu durante o Processo Revolucionário em Curso (PREC). Nas entrelinhas, o Presidente da República tentou afastar visões simplistas da história, alimentada por aqueles que tentam resumir o momento a uma vitória da direita contra a esquerda ou, em alternativa, uma vitória dos saudosistas contra os democratas de Abril.
Apesar de tudo, o Presidente da República não deixou de responder àqueles que equiparam o 25 de Novembro com o 25 de Abril ou que classificam como o marco que consagrou a democracia em Portugal. “É mais rigoroso dizer que com o 25 de Abril se abre um caminho complexo e demorado para a liberdade e democracia. E que a 25 de Novembro se dá um passo muito importante nesse caminho”, começou por dizer.
Marcelo Rebelo de Sousa terminaria o seu discurso a dizer: “O 25 de Abril foi o primeiro momento e mais marcante. Sem ele, não haveria 25 de Novembro de 1975. Este segundo momento foi muito significativo. Sem ele o refluxo revolucionário teria sido mais demorado e mais agitado, e poderia ter provocado uma guerra civil. [Mas] não existe contradição entre o 25 de Abril e o evocar o 25 de Novembro de 1975″.
Aguiar-Branco tenta a reconciliação
Ao contrário de Marcelo Rebelo de Sousa, o presidente da Assembleia da República optou por uma intervenção menos histórica e mais pensada para o apelo a que não se abram feridas que os pais fundadores da democracia conseguiram, a muito custo, sarar. E mesmo dizendo que não ignora que há quem use o 25 de Novembro para tentar “desvalorizar” o 25 de Abril, Aguiar-Branco deixou uma mensagem clara: “O 25 de Abril não é desvalorizável, nem é substituível”.
Apesar de reconhecer esta polarização crescente e o “tom dramático” com que os partidos procuram, “pelo desejo fácil de mediatismo ou de afirmação”, afirmar as suas diferenças, o presidente da Assembleia da República lembrou que é a graças a Abril, mas também a Novembro, que hoje é possível discutir tudo abertamente, em democracia e com liberdade. “Podemos discordar em muitos assuntos e até exagerar as discordâncias para consumo mediático. Mas nenhum advoga que os seus adversários políticos sejam presos. E nem sempre foi assim.”
Recusando ter uma ideia “idealista” do que foi possível construir ao longo dos últimos 50 anos, Aguiar-Branco pediu a todos que não perdessem a perspetiva do que foi alcançado em democracia. “Vejam de onde viemos e reparem onde chegámos. Mudámos, evoluímos enquanto políticos e partidos. A grande conquista do 25 de Novembro é a reconciliação do país com o espírito da liberdade nascido a 25 de Abril.”
“O 25 de Novembro foi feito por militares, o 26 por políticos, com Mário Soares à cabeça. Soares foi fixe. A todos os que agiram com risco pessoal para que isto fosse possível, o nosso obrigado. A todos os que deram a vida pela liberdade em qualquer momento fundador da democracia e também antes deles, a mais profunda homenagem. Se somos felizes a eles o devemos. Depende de nós não o estragarmos”, despediu-se o presidente da Assembleia da República.
Direita falou em “derrotados”, socialistas saíram para não ouvir Ventura
Do lado dos partidos, o tom foi tudo menos conciliador ou virado para os consensos. Boa parte do tempo foi passada a discutir de quem é, afinal, o legado do 25 de Novembro e a identificar quem são os perdedores e os vencedores da data – e, com a tensão a aumentar durante a intervenção de André Ventura, um grupo de deputados do PS optou mesmo por abandonar a sala.
Logo de início, o promotor da iniciativa, o CDS, quis defender a importância da data – “com o 25 de Abril ganhámos a liberdade, com o 25 de Novembro evitámos que se perdesse”, começou o deputado Paulo Núncio – com farpas contra o PCP e a extrema-esquerda, que acusou de ter visto a sua “tentação de um novo autoritarismo” condenada ao fracasso. Depois, e inaugurando as muitas acusações de “apropriação” da data que se ouviriam ao longo da sessão, assegurou: “Novembro não se fez contra Abril, fez-se contra aqueles que se apropriaram de Abril”.
Mais violenta seria a intervenção do Chega. “Sem esquecermos o 25 de Abril, este é o verdadeiro dia da liberdade”, atirou Ventura, falando em duas ameaças: na altura, a ameaça de uma “ditadura soviética”; agora, a de uma “imigração descontrolada” – chegou mesmo a relacionar o número de casos de violação contra mulheres com o aumento de imigrantes, o que levou a que um grupo de deputados do PS, incluindo António Mendonça Mendes, Eurico Brilhante Dias ou Isabel Moreira, saíssem do hemiciclo, recusando ouvir o resto da intervenção. Ventura aproveitou para lançar ataques à “bandidagem”, que associou aos bairros junto às cidades de Lisboa e do Porto, e à corrupção, concluindo: “Esta democracia não nos serve”. O líder do Chega fez ainda um gesto dirigido às bancadas mais à esquerda – a do PCP estava vazia, em protesto contra a comemoração, e na do Bloco de Esquerda só se sentava Joana Mortágua – garantindo que já começou a fazer uma “limpeza” na política portuguesa.
Ainda à direita, a Iniciativa Liberal também reservaria palavras duras para os partidos mais à esquerda, argumentando que Ramalho Eanes e Mário Soares também “não procuraram consensos com quem não amava a liberdade” e defendendo que esta cerimónia representou uma “nova derrota dos que foram derrotados no 25 de Novembro”, ou dos “totalitários”. O líder dos liberais lembrou os casos de saneamentos e censura durante o PREC e acabou a atacar o “wokismo”, uma nova “deriva totalitária”, antes de rematar: “Viva a liberdade! Fascismo e comunismo nunca mais!”.
Menos inflamada seria a intervenção do PSD, feita pelo deputado Miguel Guimarães, que de início quis destacar que o 25 de Novembro simboliza “o triunfo da moderação sobre o extremismo”. O antigo bastonário da Ordem dos Médicos argumentou que a data deve servir para “unir e não dividir” e não “apouca o 25 de Abril” – por isso, criticou a ausência do PCP e elogiou o papel desempenhado por Freitas do Amaral, Sá Carneiro e Mário Soares durante o PREC e o 25 de Novembro. “O 25 de Novembro cumpriu Abril”, acabou por rematar.
Esquerda usou cravos e acusou direita de “deturpação histórica”
À esquerda, a cerimónia tinha arrancado com os deputados a colocarem cravos na lapela (nesta cerimónia, que mimetizou os moldes da sessão do 25 de Abril, em vez de cravos vermelhos havia rosas brancas a decorar o hemiciclo). Joana Mortágua até chegou a oferecer uma das flores a Marcelo Rebelo de Sousa, que aceitou e agradeceu. E o destaque da maior parte das intervenções foi, como era de esperar, para uma celebração do 25 de Abril e uma série de acusações à direita por querer “deturpar” a História.
O PS discursou, desde logo, também para se justificar: tendo o partido votado contra a cerimónia desta segunda-feira, apesar de Mário Soares ser uma das figuras cujo papel é mais reconhecido no 25 de Novembro, o deputado Pedro Delgado Alves quis reclamar o legado desta data para os socialistas e homenagear Soares. Foi por isso que se dedicou a explicar que o 25 de Novembro foi uma “vitória” não da direita sobre a esquerda, mas da esquerda democrática contra “uma deriva radical e sectária”, e que a sua celebração deve acontecer, mas não ser equiparada à do 25 de Abril.
Durante o discurso, Delgado Alves frisou que Soares procurou que existisse uma “concórdia” à volta da data, acusando a direita de tentar “instrumentalizá-la por ganhos efémeros”. “Os elementos da direita extremista e radical que pretendiam aproveitar para erradicar parte da esquerda fazem inequivocamente parte dos derrotados”, frisou. E concluiu defendendo que esta cerimónia, equiparada ao 25 de Abril, representa um caminho de “abertura de feridas há muito saradas”.
As bancadas mais à esquerda estavam notoriamente mais vazias. Ao lado da bancada do ausente PCP sentava-se Joana Mortágua, do Bloco, que fez um dos discursos mais inflamados e que provocou mais reações, sobretudo na bancada do Chega. De novo, um discurso sobre a verdade histórica do 25 de Novembro, criticando quem repete a “ladainha” que diz que o 25 de Abril não trouxe a “verdadeira liberdade” – “bem pode vir a apresentar-se como herdeiro de novembro, mas é, na verdade, um derrotado de Abril.” E criticou a “mistificação” desta data, “manobra dos derrotados”, prometendo acabar com esta cerimónia assim que a esquerda voltar a ter maioria no Parlamento.
Sem surpresas, no Livre a deputada Filipa Pinto também recusou a “usurpação” da data pela “direita do século XXI” – quando a maior responsável por ela é a “esquerda democrática” –, recusando que uma História “adulterada” possa servir como “arma de arremesso”. E preferiu focar boa parte da sua intervenção no dia da Eliminação da Violência contra as Mulheres, que também se assinala esta segunda-feira.
No PAN, Inês Sousa Real lamentou que neste dia, como há 49 anos, os partidos estivessem divididos – hoje por “trincheiras fúteis que não honram a memória” de Abril. Mas a divisão estava mais do que confirmada.