Corria o mês de janeiro quando Lisboa recebeu oficiais norte-americanos para uma reunião discreta com dirigentes e autoridades nacionais — o tema seria a manutenção das tropas portuguesas na República Centro-Africana. Nessa altura, ainda não se previa uma rebelião do grupo Wagner na Rússia, muito menos a morte do seu líder, mas a atividade da milícia paramilitar em África — onde angaria múltiplos negócios e desenvolve atividades militares — esteve em cima da mesa. Para os EUA era fundamental poder continuar a contar com os portugueses, que estariam menos entusiasmados com ideia de prosseguir com a mesma força naquele cenário. Era um encontro em que estava muito em jogo.
Ainda que sem comentar a reunião de Lisboa, cuja existência o Observador confirmou, o porta-voz do Departamento de Estado norte-americano, o correspondente ao Ministério dos Negócios Estrangeiros em Portugal, garantiu esta semana, em resposta escrita, que os Estados Unidos “continuam a trabalhar com os parceiros portugueses, europeus e africanos para promover a estabilidade na República Centro-Africana [RCA]”.
De acordo com o que conseguiu apurar o jornal norte-americano Politico, que noticiou em primeira mão a existência desse encontro em Lisboa em janeiro de 2023, os dirigentes portugueses estariam a reconsiderar deixar, em abril, a missão de treino da União Europeia na República Centro-Africana, uma das três missões que Portugal integra, além da MINUSCA (da Organização das Nações Unidas) e da missão civil de aconselhamento e monitorização da União Europeia.
Além disso, segundo conta aquele jornal norte-americano, os dirigentes portugueses presentes na reunião manifestaram alguma apreensão com o facto de as tropas francesas terem saído no final de dezembro de 2022 da República Centro-Africana, deixando os militares portugueses numa posição mais vulnerável.
E se em janeiro a Wagner era já uma grande preocupação, os últimos acontecimentos — que culminaram com a morte do chef de Vladimir Putin — vieram adensar ainda mais os receios.
Contactado nos últimos dias pelo Observador, o Ministério dos Negócios Estrangeiros realçou que a “presença de contingentes militares portugueses é um sinal inequívoco da prioridade atribuída por Portugal para com a paz, segurança e estabilidade em África”, mas não deu qualquer resposta concreta sobre a reunião. Nem o Estado-Maior-General das Forças Armadas, que indicou, em resposta escrita ao Observador, o seguinte: “Tendo em consideração o atual empenhamento de militares portugueses no Teatro de Operações da República Centro-Africana, bem como sobretudo o âmbito classificado destas matérias de natureza operacional, não será possível realizar qualquer comentário”. O Observador questionou igualmente o Departamento de Estado norte-americano sobre a existência desta reunião. E o órgão liderado pelo secretário de Estado Antony Blinken esclarece que não “comenta discussões diplomáticas”, ainda que tenha ressalvado de forma subliminar que a “embaixada dos Estados Unidos em Lisboa mantém contactos estreitos com dirigentes portugueses em vários assuntos de importância”.
Certo é que, depois desta reunião, já no início de fevereiro de 2023, o primeiro-ministro, António Costa — juntamente com a ministra da Defesa Helena Carreiras —, deslocaram-se à República Centro-Africana. Em declarações à agência Lusa desde a capital do país africano Bangui, o chefe do executivo confirmou que a visita serviu para “avaliar as condições políticas para a manutenção” da operação da MINUSCA e destacou que, nos contactos que teve “oportunidade de manter” com o Presidente da RCA, Faustin-Archange Touadéra, evidenciou uma “grande vontade da República Centro-Africana em que Portugal [continuasse] a participar” nas missões.
“A pior coisa que podíamos fazer seria retirar do terreno as forças que existem e que deixariam exposta a República Centro-Africana”, prosseguiu o primeiro-ministro, que salientou o facto de os Estados Unidos terem apresentado “um projeto no sentido de reforçar o apoio à República Centro-Africana, de forma a não correr riscos de não ficar sob influências” externas. As “influências” a que António Costa se referia eram precisamente as da milícia paramilitar Wagner. “O esforço que está a ser feito é tornar desnecessária a presença da Wagner na República Centro-Africana”, diz logo a seguir.
Nas mesmas declarações à Lusa, António Costa revelava que a presença na missão da Organização das Nações Unidas (ONU) na República Centro-Africana se prolongaria por mais um ano, algo que ficou confirmado pela portaria 102/2023, assinada a 17 de fevereiro de 2023 por Helena Carreiras. O primeiro-ministro sinalizava também se tinha reunido com a alta representante do Secretário-Geral das Nações Unidas na República Centro-Africana, Valentine Sendanyoye Rugwabiza, que, de acordo com o chefe do executivo, “foi muito enfática sobre a necessidade de não só Portugal se manter, como reforçar a sua presença” no país africano.
A guerra na Ucrânia e o esforço dos Estados Unidos para sancionar o grupo Wagner
Em pleno inverno de 2023, altura em que ocorreu a reunião e em que António Costa foi à República Centro-Africana, a guerra na Ucrânia estava focada apenas num ponto: Bakhmut. Após conquistarem Soledar, os mercenários do grupo paramilitar Wagner tentavam controlar aquela localidade. Com atividades espalhadas por todo o globo, nomeadamente em África, a milícia começou mais do que nunca a atrair atenções. Tanto assim foi que os Estados Unidos classificaram-na como organização criminosa transnacional em janeiro — e estavam preocupados com a presença do grupo Wagner na República Centro-Africana.
Numa autêntica maratona diplomática, segundo o Politico, os dirigentes norte-americanos estiveram em Portugal, no Ruanda, na Bélgica, na Ucrânia e no Reino Unido para tentarem reduzir a influência do grupo Wagner na República Centro-Africana, ao mesmo tempo que aplicaram sanções aos principais cabecilhas da milícia. O motivo? De acordo com declarações do secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken no final de janeiro, estas decisões impediriam “o Kremlin de armar a sua máquina de guerra que está envolvida numa guerra de agressão contra a Ucrânia que causou mortes e destruição”.
Os EUA tentavam, por isso, enfraquecer o grupo Wagner e colocar “pressão” na indústria da Defesa de Moscovo, numa altura em que os esforços de guerra russos na Ucrânia eram encabeçados pela milícia. Assim, Washington considerava, em janeiro de 2023, que tinha de agir junto às formas de financiamento do grupo de mercenários. Na República Centro-Africana, os Wagner geriam, pelo menos desde 2020, a principal mina de ouro Ndassima (e única industrializada no país africano) na região de Bambari. E não é só ouro. Uma investigação elaborada recentemente denunciava o saque de diamantes pelos soldados do grupo Wagner naquele país africano.
Como explica o Politico, os Estados Unidos conseguiram apurar que, desde meados de 2022, a área da produção da mina se expandiu consideravelmente, o que poderia ainda aumentar a produção de ouro na região e enriquecer ainda mais o grupo paramilitar; na versão mais otimista, os lucros poderiam chegar a mil milhões de dólares (cerca de 922.400.000 mil euros). Para mais, o governo da República Centro-Africana parecia colaborar e apoiar a exploração da mina por parte da milícia Wagner, obstaculizando inclusive o trabalho das Nações Unidas.
Havia outra preocupação expressa por um dirigente norte-americano ao Politico: “A Wagner é um cancro. Não se fica apenas num país. É algo que se espalha a países adjacentes e do nada tem-se um problema maior”. Por isso, era necessário agir e perceber até que ponto as atividades da milícia paramilitar poderiam ser travadas em África. Mas havia algo que inquietava, na altura, os Estados Unidos: a saída das tropas francesas da República Centro-Africana no final de 2022.
Deste modo, entre dezembro de 2022 e janeiro de 2023, dirigentes dos Estados Unidos estiveram reunidos com representantes da MINUSCA, que sublinharam que a saída tropas francesas complicou a vida dos capacetes azuis e que a missão não poderia assegurar aquilo que o grupo Wagner estava a conseguir alcançar naquele momento: proteger as elites políticas da República Centro-Africana de ataques de forças extremistas ou de um possível golpe de Estado. Para tentar diminuir a influência da milícia no país africano, Washington multiplicou-se em esforços para tentar garantir a segurança do Presidente do país africano.
Dando igualmente grande ênfase ao Ruanda, os Estados Unidos olhavam para Portugal como um maior aliado na República Centro-Africana, no momento em que as tropas francesas saíram. Eram o país europeu com o maior contingente da MINUSCA — e sobretudo tinham uma força de reação rápida que, integrada na missão das Nações Unidas, podiam fazer a diferença e competir com as capacidades do grupo Wagner, segundo o Politico.
Mas porque é que existe esta dependência da presidência da República Centro-Africana em relação ao grupo Wagner? Ao Observador, o major-general José Arnaut Moreira aponta, inicialmente, para uma “degradação muito rápida da situação da segurança em África”, principalmente na região do Sahel por conta da presença de forças extremistas — como o Al Qaeda ou o Daesh —, que aterrorizam a vida de civis e igualmente das elites políticas.
O grupo Wagner, enquanto braço armado do Kremlin, aproveita-se precisamente dessa situação de segurança precária, evocando igualmente “ressentimentos anti-ocidentais” e “anticoloniais” para se apresentar como garante da segurança das elites africanas: “A Federação Russa já se apercebeu que este é um ponto sensível em África: a questão colonial não está ultrapassada”. Ainda que Moscovo não obtenha dividendos “exagerademente grandes” de África, José Arnaut Moreira assinala que a Rússia possui uma “forte influência” do ponto de vista político-estratégico.
Lembrando ainda os tempos da Guerra Fria em que a União Soviética também desempenhava um papel semelhante em África, José Arnaut Moreira reforça que os governos dos países africanos veem no grupo Wagner uma forma de assegurarem a ordem interna — e manterem-se no poder, evitando golpes de Estado. Em troca de protegerem as elites, os líderes africanos fornecem “concessões para a exploração dos meios naturais” — como ouro ou os diamantes.
“Há uma delapidação dos recursos naturais destes países através de uma organização patrocinada pela Federação Russa”, expõe José Arnaut Moreira, que diz que há uma vantagem para o grupo Wagner. Se bem que as ligações ao Kremlin sejam claras, não há maneira de o provar — e “isso dá-lhes uma grande liberdade de ação”. “Todos os crimes que possam ser cometidos nunca acabam reportados e a Federação Russa acaba por não ser incriminada.”
É precisamente este esquema que os Estados Unidos queriam — e ainda querem — travar. Por um lado, querem diminuir as ações do grupo Wagner, impedindo uma organização de mercenários de explorarem recursos nos países africanos e de cometerem crimes pelos quais nunca serão responsabilizados; por outro, desfalcavam uma importante fonte de rendimentos que acabava (e acaba, mais que não seja de forma indireta) por financiar a agressão russa à Ucrânia.
Muda a conjuntura, mudam-se as vontades? Nem por isso
Sete meses depois, a conjuntura alterou-se profundamente. Em maio, a cidade de Bakhmut foi conquistada pelos mercenários, que deixaram de ser úteis ao Kremlin na Ucrânia. O Ministério da Defesa russo tentou absorver nas suas fileiras a milícia, o que irritou Yevgeny Prigozhin e deu origem à “marcha pela justiça” em junho, que chegou a cerca de 200 quilómetros de Moscovo. Numa situação indefinida após o motim, a diplomacia russa clarificou que o grupo Wagner podia, contudo, continuar a operar em África e na Bielorrússia. No dia 23 de agosto, dois meses depois da revolta, ocorre outro volte-face: o avião em que o líder dos mercenários seguia caiu e acabou por fazer dez vítimas mortais: entre elas estavam Yevgeny Prigozhin e o fundador do grupo Wagner, Dmitry Utkin.
Após a liderança da milícia ter saído naturalmente enfraquecida, será que a presença do grupo Wagner em África vai continuar a ser tão intensa? Ao Observador, o Departamento de Estado reconheceu que existem “incertezas na maneira como a morte de Prigohzin vai gerar impacto na presença do grupo Wagner” na República Centro-Africana, incluindo as consequências que poderá ter “em outras empresas privadas” semelhantes.
Não obstante, Washington garante que, mesmo após a morte do antigo líder da milícia paramilitar, as empresas ligadas ao grupo Wagner “continuam a explorar os recursos da República Centro-Africana e as suas forças continuam a perpetuar abusos”. “Continuamos a interagir com o governo da República Centro-Africana para encorajá-lo a ganhar a independência do grupo Wagner”, realça o Departamento de Estado.
Daí que os Estados Unidos continuem a querer garantir a “independência” das elites da República Centro-Africana face ao grupo Wagner. O historiador Bruno Cardoso Reis admite, ainda assim, que esta “crise” gerada na milícia após a indefinição na liderança do grupo paramilitar “pode abrir um caminho a que estes regimes africanos pensem que a aposta na Rússia não é assim tão segura e que a Rússia apresenta alguma instabilidade”.
Ainda assim, Bruno Cardoso Reis salvaguarda que as “elites africanas querem manter regimes ditatoriais”. Neste caso, nota o historiador, “parece evidente que apostar na Rússia ou na China é sempre mais seguro do que apostar no Ocidente, que coloca problemas, que coloca condições para a realização de eleições, que impõem direitos humanos e que quer o combate à corrupção”: “Criam muito mais chatices a estas elites do que propriamente a parceiros como a Rússia ou a China”.
Em consequência, Bruno Cardoso Reis tem “dúvidas” sobre as capacidades do Ocidente “ganhar terreno” nos países africanos onde está o grupo Wagner, principalmente no Mali e na República Centro-Africana: “Parece-me claro que o regime atual quer é ter um grupo armado que garanta a segurança da elite política. Eles consideram que este grupo Wagner dá muito mais alternativas do que o Ocidente”.
Em declarações à Deutsche Welle, Fidèle Gouandjika, conselheiro da presidência da República Centro-Africana, revelou precisamente isso: que a colaboração com o grupo Wagner era para continuar: “Temos um acordo de defesa com a Rússia e os paramilitares que estão connosco dizem que vão prosseguir o trabalho como antes. Eles vão encontrar outro chefe”. Adicionalmente, o responsável garantiu que, mesmo no que concerne à exploração de recursos na República Centro-Africana, “nada vai mudar”.
Tendo em conta estas circunstâncias, Bruno Cardoso Reis questiona se faz sentido “manter alguma presença militar ou influência” na República Centro-Africana por parte do Ocidente, uma vez que, “na prática, isso significa estar a proteger um regime alinhado com a Rússia”. “É uma opção difícil”, classifica. “Em países como os Estados Unidos, Portugal ou na Alemanha, parece apostar-se em manter alguma presença e influência”, ilustra, questionando-se todavia: “Consegue condicionar-se de forma positiva esses regimes, ou na prática estamos só a colaborar só com a Rússia?”.
Destacando que o vínculo da República Centro-Africana com a Rússia parece cada vez mais forte, Bruno Cardoso Reis é da opinião que talvez seja necessário Portugal repensar se faz sentido ou não continuar a participar em missões das Nações Unidas e da União Europeia: “Pode estar a fazer-se um esforço que depois não tem grandes retornos”.
Em relação à missão de treino da União Europeia, o jornal dedicado a assuntos europeus The Observer dá conta de um alegado relatório de abril que indica que a União Europeia se está inclinar para abandonar a República Centro-Africana “à medida que o grupo Wagner ganha influência em Bangui”. Para manter a hegemonia no país africano, denuncia esse documento, a milícia paramilitar controla uma rede de “conselheiros políticos, fábrica de trolls ativistas pró-russos” que “manipulam a opinião pública” no país.
Questionado pelo Observador sobre se a falta de liderança do grupo Wagner em África iria alterar as dinâmicas na República Centro-Africana e que impactos é que isso poderia ter junto às missões em que Portugal participa no país africano, o Ministério da Defesa não respondeu até à data da publicação deste artigo.
Por sua vez, o Ministério dos Negócios Estrangeiros sublinhou, em resposta escrita ao Observador, que Portugal honra “os compromissos do país no âmbito da sua política externa e correspondendo às solicitações dos parceiros africanos, incluindo na República Centro-Africana, onde o contributo das forças portuguesas é particularmente reconhecido”.
“Esta presença exige, contudo, uma análise em permanência da situação no terreno, a qual ocorre em estreito diálogo com as autoridades locais e com os demais parceiros europeus e internacionais”, prossegue o ministério liderado por João Gomes Cravinho, que assinala que a “análise inclui, evidentemente, a presença do Grupo Wagner e suas consequências, independentemente de quem esteja na sua liderança”.
Para mais, o Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas, Marcelo Rebelo de Sousa, apontou, numa conferência de imprensa ao lado de Volodymyr Zelensky um dia após a morte de Yevgeny Prigozhin, para a mesma ideia expressa pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros: Portugal tem experiência na “intervenção em missões internacionais, nomeadamente em África, que lhe permite acompanhar intervenções de grupos não africanos nessas sociedades, nesses Estados em que estamos a cumprir uma missão de estabilização política e humanitária”, referindo-se à República Centro-Africana e ao Mali, dois países onde o grupo Wagner tem uma forte implementação.
“Neste sentido, estamos atentos ao que se passa no mundo que tenha relação à presença das nossas Forças Armadas nesses Estados e nessas sociedades”, assegurou Marcelo Rebelo de Sousa em Kiev.
E, mais recentemente, o Ministério da Defesa aprovou, na portaria 400/2023 assinada a 17 de julho de 2023, os termos para a participação nacional na missão de treino da União Europeia na República Centro-Africana. Helena Carreiras autorizava um efetivo total “de até 19 militares em em atividades de aconselhamento e formação até outubro de 2023”. Contudo, a partir daquela data e até o final do ano, reduzir-se-á o “contingente nacional para até dez militares”.
Wagner em África: um papel mais forte ou mais frágil?
É inevitável que a morte de Yevgeny Prigozhin altere as dinâmicas de poder no grupo Wagner em África. O mercenário desempenhava um papel de destaque não só na parte militar, como também na parte da exploração de recursos. Ainda no vídeo gravado dois dias antes de morrer, o antigo chefe de Putin disse estar a “trabalhar” — e, de acordo com o conselheiro presidencial da República Centro-Africana, o chefe da milícia esteve mesmo em Bangui em meados de agosto.
Após o desaparecimento da liderança da milícia, há uma pergunta que se impõe: como é que vai funcionar o grupo Wagner em África após a gestão de Yevgeny Prigozhin? “Ainda não sabemos ainda. Tenho dúvidas que, ao nível da Rússia, as decisões já tenham sido todas tomadas e consideradas. Pareceu haver uma preferência, depois do golpe, para o Estado russo substituir o Grupo Wagner ou por relações Estado-Estado, mas não é claro que isso esteja a acontecer em todo o lado”, diz Bruno Cardoso Reis.
Apesar de ainda não haver respostas concretas, há vários cenários possíveis de serem traçados. Ao Observador, Theodor Neethling, diretor do departamento de estudos políticos na Universidade de Free State, na África do Sul, adjetiva como “difícil” tentar prever o futuro do grupo Wagner no continente africano, após a morte de Yevgeny Prigozhin. “Há várias opções que podem ocorrer”, indica, para logo depois dar o sua opinião: “Eu concordo com os analistas e observadores que argumentam que as tropas preparadas e experientes do grupo Wagner são demasiado valiosas para serem desintegradas”.
Um pensamento que está em linha com o de Luís Bernardino, coronel do Exército e professor no Instituto Universitário Militar (IUM) e na Universidade de Lisboa, que considera, em declarações ao Observador, que vai haver um “novo e mais potente alinhamento entre os interesses da Rússia em África e da presença de militares de empresas como a Wagner no espaço africano”. “A Rússia, tal como a China e outros países de menor expressão, têm posicionado as suas empresas de segurança privada como instrumentos da sua política externa e vetores de defesa dos interesses e objetivos.”
É neste caminho, prosseguiu Luís Bernardino, que o grupo Wagner se integra, assumindo-se como uma “das principais empresas de segurança em África”, convergindo com os “interesses da Rússia e dos privados que se aproveitam da debilidade governativa e da instabilidade nestes países”. Seria, por isso, um desperdício que a Rússia esgotasse tudo aquilo que a milícia paramilitar angariou nos últimos anos, desde pelo menos 2014, ano em que o grupo foi formado: “Conseguiu instalar-se em muitos Estados africanos e conseguiu o monopólio da gestão da conflitualidade e na proteção dessas elites e dos interesses da Federação Russa em África”.
“O Kremlin precisa de uma empresa militar privada para fazer o seu trabalho sujo”, vinca Theodor Neethling, que recorda que, durante os últimos anos, o “grupo Wagner foi demasiado útil para o Kremlin num contexto de política externa na medida em que parece diminuir o efeito negativo das operações militares russas”. “O grupo Wagner ajudou os militares russos a evitarem o envolvimento direto com outros militares estrangeiros de outros países, de forma aberta ou tradicional, reduzindo, consequentemente, o risco a nível político e provavelmente diminuindo as hipóteses de retaliações de outras potências”, explica.
Para mais, lembra Bruno Cardoso Reis, ao estar no terreno, o Grupo Wagner “cria relações especiais e pessoais com vários destes líderes e isso é sempre muito importante em regimes personalistas e personalizados”. “Não é para mim evidente que a opção seja acabar com a Wagner para substituir com a relação Estado a Estado”, defende.
Isto, porque, ao prescindir do grupo Wagner, o Kremlin teria praticamente de recomeçar do zero, tendo de criar formas de conseguir estender a sua influência por outras vias — e isso levaria tempo e, sobretudo, poderia ser uma oportunidade quer para a China, quer para os Estados Unidos de ocupar o vácuo deixado pelos mercenários. “A recente morte de Prigozhin não deverá alterar a presença do grupo Wagner no continente africano e poderá contribuir para um reforço e um novo alinhamento com a política russa em África”, enfatiza Luís Bernardino.
Mas como vai funcionar o grupo Wagner?
Se a influência do grupo Wagner é demasiado valiosa para o Presidente russo livrar-se simplesmente dela, isso não significa que não ocorram mudanças. Após a rebelião de junho, Vladimir Putin permitiu que a milícia continuasse a operar em África (e se movesse para a Bielorrússia), uma primeira alteração que tinha como objetivo enfraquecer a presença dos paramilitares no território e evitar que ocorresse um novo motim.
Mas agora a situação é diferente. Entre junho e agosto, Yevgeny Prigozhin cumpriu com o pacto de parar com a rebelião em troca de ir para a Bielorrússia e manter os trabalhos em África, onde continuava empenhado em manter alguma independência em relação ao Estado russo. Segundo o que apurou o Washington Post, nos dias antes da sua morte, o mercenário esteve não apenas na República Centro-Africana, como também no Mali e no Sudão para revitalizar os seus negócios no continente. “Preciso de mais ouro”, disse o líder do grupo Wagner em território sudanês.
Sem uma liderança clara, como vai ocorrer a sucessão de Yevgeny Prigozhin e que dinâmicas se gerarão?. Relativamente à segunda questão, José Arnaut Moreira acredita que o grupo Wagner, enquanto ferramenta da política externa da Federação Russa, “vai continuar a existir” — mas poderá deixar de se chamar ‘grupo Wagner’ ou pode integrar-se noutra milícia.
“Se é sob a forma da organização Wagner ou outra? É uma questão que ainda estaremos a ver. Que a Federação Russa não vai abdicar de ter um instrumento cinzento que possa exercer influências entre as elites africanas no campo de segurança e da defesa, estou absolutamente convencido disso”, afirma José Arnaut Moreira.
Opinião idêntica expressa ao Observador Federica Saini Fasanotti, do Instituto Internacional de Ciências Políticas, localizado em Milão. Embora sendo “muito difícil” saber o que vai acontecer ao grupo Wagner, a especialista italiana aponta que a milícia “será desmantelada em favor de uma nova companhia de mercenários que sigam de forma mais fiel às necessidades do Kremlin”, ocupando “o vácuo deixado pelos assassinatos de Prigozhin e Utkin”.
“Há muitas dúvidas de que a existência do grupo Wagner como companhia privada prossiga“, continua a especialista italiana. Neste caso, a Rússia apenas reformaria o seu braço armado, uma espécie de readaptação que acolheria o legado da milícia de Yevgeny Prigozhin. Uma coisa é “certa” para Federica Saini Fasanotti: “Putin não vai permitir que ninguém faça o que Prigozhin fez”.
Por outras palavras, para a especialista, Vladimir Putin controlará mais de perto as empresas de mercenários. Aliás, após a morte do líder do grupo Wagner, o Presidente russo assinou um decreto que obriga membros de organizações paramilitares a prestar juramento à Rússia. Devem ainda jurar “fidelidade” e “lealdade” a Moscovo e “seguir rigorosamente as ordens dos seus comandantes e superiores”. Não haverá, portanto, qualquer espaço de manobra para “traidores”, designação que o Chefe de Estado russo deu aos soldados que participaram na rebelião encabeçada por Yevgeny Prigozhin.
Tendo em conta estas movimentações, a opinião do professor universitário sul-africano é ligeiramente diferente: o grupo Wagner continua a existir, mas não enquanto “uma empresa privada militar quase independente”, como a que era gerida por Yevgeny Prigozhin — em que dispunha de um certo grau de autonomia. Assim sendo, diz Theodor Neethling, a milícia “tornar-se-á mais subordinada às forças armadas russas”.
Luís Bernardino subscreve a posição do docente da Universidade de Free State: “Penso que iremos assistir ao surgimento de uma nova liderança mais alinhada e orientada com a política externa russa”. “A nova liderança será mais pró-Kremlin e mais próxima dos interesses da Rússia no continente e com um maior controlo operacional e político”, acrescenta. Ainda que não seja o cenário que Federica Saini Fasanotti acredite que aconteça, a especialista italiana conjetura que até é “possível” que seja o próprio Vladimir Putin a eleger um novo líder, tendo em conta o “passado militar” e tendo em consideração a lealdade que tem ao regime russo.
Mas ainda fica uma pergunta no ar: quem será o eleito para substituir a liderança mediática de Yevgeny Prigozhin? Ainda não existe uma resposta, mas tudo aponta para dois nomes — um apoiado pelo Kremlin, outro pelos mercenários que ainda permanecem leais à antiga liderança. Para estes últimos, quem deve chefiar a milícia deverá ser Anton Yelizarov — uma das poucas altas figuras do grupo Wagner que não ia no avião que se despenhou, no passado dia 23 de agosto, na região de Kuzhenkino.
Conhecido pelo nome de código “Lotus”, Anton Yelizarov apoiou a rebelião do grupo Wagner e era um dos braços direitos de Yevgeny Prigozhin. “Ele esteve à frente do ataque sangrento da cidade de Soledar”, conta Theodor Neethling. “Diz-se que terá comandando as operações do grupo Wagner também em Bakhmut”, relata o docente universitário.
Devido ao sucesso que representou a tomada de Soledar e Bakhmumt, Anton Yelizarov goza de uma elevada reputação entre os mercenários. Mas o seu passado militar não se fica apenas pela Ucrânia — o homem nascido em 1981 em Rostov que trabalhou para a Força Aérea russa também “esteve na Síria”. E tem uma presença no continente africano, indica Theodor Neethling, principalmente na República Centro-Africana, país onde é “bem conhecido” e no qual treinou os soldados da milícia entre 2016 e 2017. “É, por conseguinte, um veterano do grupo Wagner.”
Sem embargo, tendo em conta as ligações com a liderança antiga, Vladmir Putin poderá querer afastar Anton Yelizarov. Para o Presidente russo, Andrei Troshev, conhecido por “Sedoi” — tradução em português para cabelo grisalho — deveria ser o nome que deveria chefiar a milícia paramilitar. Nascido em São Petersburgo, o homem fez parte do exército russo, foi comandante de uma força especial para “reação rápida”, tendo lutado no Afeganistão e na Chechénia. É, por conseguinte, um “veterano” que fez carreira nas forças armadas russas — e um nome que tranquiliza o Presidente russo pela sua alegada lealdade.
Andrei “cabelo grisalho” Troshev, o veterano que Putin queria pôr à frente do grupo Wagner
Entre um nome que assegura a liderança de Yevgeny Prigozhin e ainda alguém que parece leal ao regime russo, o Kremlin pode ainda optar por uma terceira via: confiar a liderança da milícia paramilitar às forças armadas ou ao Ministério da Defesa. Ainda que assegure o controlo do grupo, isso poderia levar a que as atividades dos paramilitares da Wagner se associassem diretamente à Rússia, algo que poderia levantar problemas à luz do direito internacional pela interferência em assuntos externos.
As decisões do Presidente russo em relação ao grupo Wagner estarão a ser ponderadas, mas há algo que parece praticamente confirmar-se: Vladimir Putin não vai prescindir da influência que a milícia conseguiu angariar em África, sendo praticamente certo que manterá o mesmo modus operandi que permitiu, de forma obscura, que Moscovo ganhasse influência junto das elites africanas. Simultaneamente, os EUA esforçam-se para combater esta influência russa no continente — e querem continuar a contar com Portugal para isso.