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No mapa, a imagem que salta à vista é a de um Z. Ironia (ou não), os territórios ocupados pelos russos na Ucrânia — em valores mínimos desde o início da guerra — desenham a letra que se tornou um símbolo de apoio à campanha militar de Vladimir Putin. Só que este Z em nada favorece os objetivos russos, já que mostra o falhanço das duas primeiras fases da guerra: a queda (que não aconteceu) de Kiev e do governo de Volodymyr Zelensky, e o domínio total da bacia do rio Donets, Donbass, onde se encontram as regiões separatistas pró-russas.
Ali, os russos ganharam território no oblast de Lugansk, indo para lá das fronteiras que essa região separatista tinha antes da guerra, mas estão longe de conquistar a totalidade de Donetsk, a outra região que desde 2014 quer ser independente. Pelo caminho, no oblast vizinho, perderam Kharkiv e as forças ucranianas aproximam-se da fronteira com a Rússia. Junto ao mar, Mariupol está tomada, mas na fábrica de Azovstal a resistência manteve-se até ao último minuto, e os soldados gravaram-se a cantar a música com que a Ucrânia ganhou o festival da Eurovisão, como prova de vida. Só a 17 de maio, o Estado-Maior das Forças Armadas ucranianas revelou que a defesa da siderurgia “terminou”.
A leste de Kiev, nada de novo. Donbass prepara-se para a mãe de todas as batalhas
A batalha, se transformada em música para piano, está mais perto de um lento e suave adagio do que de um veloz prestissimo. Segundo os especialistas ouvidos pelo Observador, corre o risco de se manter assim, principalmente se russos e ucranianos fixarem posições com o rio a separá-los. Apesar disso, não será um conflito congelado. “Em Donbass, desde 2014, todos os dias se trocaram tiros”, argumentou Simon Schlegel, do think thank TheCrisisGroup, ao Observador. Daqui para a frente não deverá ser diferente, até porque, recorda o analista, Zelensky assumiu que não dará um centímetro do seu país à Rússia e “dessa posição é muito difícil recuar”.
A grande diferença em relação aos últimos oito anos serão as armas com que o Ocidente reforça o exército ucraniano e que, para Simon Schlegel, poderão trazer uma nova dinâmica à batalha pelo Donbass.
É também de armamento que fala Sean Bell, oficial aposentado da Força Aérea Real, o braço aéreo das forças armadas do Reino Unido. Na sua opinião, o Ocidente tem ficado chocado com a abordagem russa a esta guerra. “Estão a combater uma guerra do século XX no século XXI”, disse à Sky News. E, tal como Schlegel, Bell acredita que as armas enviadas à Ucrânia podem mudar o curso da guerra. No entanto, quando falou com o Observador, deixou um alerta: ganhar o Donbass pode ser apenas um meio para atingir o objetivo final de garantir a segurança do porto de Sebastopol. E, nesse caso, a Rússia só precisa de manter o Z no mapa, podendo esquecer Kharkiv e o norte da Ucrânia.
Também na Sky News, Forbes McKenzie, especialista em serviços de informações, aponta a lentidão com que tudo decorre no terreno quando as tropas russas tentam encher a zona em branco em Donbass. “Dois, três quilómetros por dia para um exército moderno é muito lento.”
Rússia: menos Ucrânia, mais Donbass
A 25 de março, a guerra levava 30 dias. No espaço de um mês, Kiev era uma batalha perdida para Putin, os filmes diários de Zelensky eram um hábito, e as tropas russas focavam-se em Mariupol. Apesar de a Rússia não ter motivos para gritar vitória, o Kremlin decretava a primeira fase da guerra como “praticamente concluída”.
O autor das palavras foi o coronel-general russo Sergey Rudskoy. O vice-chefe de Estado Maior das Forças Armadas deixou claro que Putin tinha alterado os seus planos: o objetivo principal não seria, afinal, fazer cair Kiev e Zelensky, mas antes a “libertação completa” do território de Donbass — formado pelas duas regiões separatistas reconhecidas como Estados independentes pela Rússia. Antes da guerra, um terço de Donetsk e de Lugansk era controlado pelas forças pró-russas. A 25 de março, Moscovo garantia que o domínio do território tinha subido para mais de metade (54%) na primeira região e era quase total (93%) na segunda.
Reportagem multimédia em Andriivka. Radiografia de uma aldeia sob ocupação russa durante 30 dias
Passaram-se mais 24 dias. A Rússia moveu tropas para a Bielorrússia, para reabastecer e reagrupar, segundo vários analistas militares, e o mundo preparava-se para a monumental batalha de Donbass. Aquilo que não foi visto em Kiev — e, na verdade, também não foi visto na parada militar do Dia da Vitória, alegadamente devido ao mau tempo — era esperado no novo alvo de Putin: o enorme poderio aéreo russo.
Nesse segundo mês de guerra, as forças russas abandonaram definitivamente Kiev e a Ucrânia recuperou grande parte dos territórios tomados no norte e no nordeste. Surgiram as primeiras imagens do massacre de Bucha e o rasto de morte de civis deixado pelos russos tornou-se evidente. Os ataques a Mariupol intensificaram-se e, a 18 de abril, Zelensky anunciou o começo da batalha por Donbass. A Rússia perdia território no país, mas encaminhava-se para o leste, onde o seu poder crescia.
“Começaram a apertar-nos com muita força a partir do sul e também a partir do norte. Tentam levar a cabo por todas as partes o plano de cercar as nossas forças”, dizia então Oleksiy Arestovich, conselheiro do chefe de gabinete de Zelensky. Para tentar quebrar as linhas ucranianas, os russos tentavam uma manobra de cerco desde Kharkiv (norte), Mariupol (sul) e Lugansk (leste).
O ataque monumental começou com uma batalha de três dias
A primeira a cair foi Kreminna. Uma cidade de 19 mil habitantes (um pouco menos do que a lotação máxima do Estádio do Restelo), onde existe um centro de treino para atletas olímpicos. Apesar de ser uma localidade pequena, a batalha pela cidade durou três dias. Serhiy Haidai, governador do oblast de Lugansk, anunciou a queda de Kreminna na manhã de 18 de abril. A ofensiva russa em Lugansk “é lenta, mas está seguramente a começar”, disse à Rádio Svoboda. “É impossível calcular o número de mortos entre a população civil. Temos estatísticas oficiais – cerca de 200 mortos – mas na realidade são muitos mais.”
Em Kreminna, no mesmo dia, o chefe da Administração Militar dava conta de que a batalha continuava na periferia e que o ataque dos russos tinha sido pesado. “Está completamente capturada. Existem apenas algumas unidades que mantêm as fronteiras para garantir o reagrupamento das tropas. Os russos tinham forças consideráveis: uma das unidades, que não é maior do que um pelotão, tinha até 43 blindados — tanques, veículos blindados, MT—LB”, disse, à mesma rádio, Oleksandr Dunets. Os MT-LB são blindados de transporte de tropas.
No seu relatório diário, o Instituto para o Estudo da Guerra (ISW) dava conta de uma nova fase ofensiva russa em larga escala no leste da Ucrânia, apontando ataques em Rubizhne, Popasna e Marinka com apoio de artilharia pesada, depois de ataques localizados ao longo da linha de contacto. Apesar disso, alertava que o passo podia ter sido maior do que a perna.
Análise do ISW. Rússia não fez a pausa necessária antes de entrar na nova fase da guerra
“É improvável que a ofensiva russa no leste seja dramaticamente mais bem sucedida do que as ofensivas russas anteriores, mas as forças russas podem ser capazes de desgastar os defensores ucranianos ou obter ganhos limitados. As forças russas não fizeram a pausa operacional que provavelmente era necessária para reconstituir e integrar adequadamente as unidades danificadas”, lia-se no relatório assinado pelos analistas Mason Clark, George Barros, Kateryna Stepanenko e Karolina Hird.
No dia seguinte, 19 de abril, quando a guerra levava 55 dias, é Sergei Lavrov quem fala. “A operação na Ucrânia oriental visa, como já anunciado, a libertação completa das repúblicas de Donetsk e Lugansk. Esta operação vai continuar, a próxima fase desta operação especial está a começar”, disse o chefe da diplomacia russa numa entrevista ao canal de televisão India Today. “Não vamos mudar o regime na Ucrânia, já falámos sobre isto muitas vezes. Queremos que os ucranianos decidam por si próprios como querem viver.”
O início da batalha por Donbass estava confirmado oficialmente, com 24 horas de diferença, pelos dois lados das trincheiras. Embora tenha começado com um grande ataque a Kreminna, com relatos de civis a serem mortos enquanto tentavam fugir, os dias seguintes, até ao final de abril, deram razão às previsões dos analistas do ISW. A ofensiva russa no leste não foi dramaticamente mais bem sucedida do que as ofensivas anteriores. O nível de destruição de cidades e de ataque a alvos civis manteve-se.
Depois de Kreminna, abril é um mês sem avanços, mas com muita destruição
Até ao final de abril, os relatórios diários do Instituto para o Estudo da Guerra divergem pouco. Os russos realizam intensos bombardeamentos de artilharia e aéreos em diversas zonas ao longo da linha de frente, de Izyum a Mykolaiv, mas poucas operações ofensivas terrestres. Os resultados? “Pouco significativos”, “pequenos”, “residuais”, “marginais”. O ISW usa adjetivos diferentes para dizer a mesma coisa: os russos, apesar de conquistarem pequenas cidades, não ganham território significativo.
Não é sinónimo de dizer que não deixaram uma marca de destruição por onde passaram. Em Mariupol, por exemplo, são encontradas três valas comuns, com milhares de mortos. A Rússia confirma estar a usar mísseis de alta precisão para atingir alvos ucranianos.
Borodyanka. As histórias de quem viveu o massacre que Zelensky denunciou ao parlamento português
É também nesta altura que ganha força a tese de que Vladimir Putin quer usar o feriado “sagrado”, como chama ao Dia da Vitória, para declarar que a Ucrânia foi desnazificada, logo, a guerra está ganha. Se não o puder fazer, antevia-se nas vésperas desse 9 de maio, a alternativa será usar a data em que celebra a capitulação nazi na Segunda Guerra Mundial para oficializar a guerra contra o país vizinho, deixando de chamá-la de “operação militar especial”. (Nenhuma das duas aconteceu.)
“O ritmo das operações russas continua a sugerir que o Presidente Vladimir Putin está a exigir uma ofensiva precipitada para atingir os seus objetivos declarados, possivelmente até ao Dia da Vitória em 9 de maio. A pressa e a preparação parcial do ataque russo provavelmente prejudicará a sua eficácia e pode comprometer o seu sucesso”, avisava o ISW.
A 21 de abril, quando a invasão entrou na sua 9.ª semana, o Kremlin declarou vitória na batalha de Mariupol, embora a resistência em Azovstal se mantivesse. Também em torno de Izyum, os ucranianos continuavam a travar o avanço russo.
“A ofensiva da Rússia no leste da Ucrânia continua a seguir o padrão das suas operações durante a guerra, usando pequenas unidades para realizar ataques dispersos em vários eixos, em vez de fazer as pausas necessárias para se preparar para operações decisivas. As forças russas continuaram a bombardear os defensores ucranianos restantes na fábrica de aço Azovstal de Mariupol e podem estar a preparar-se para novos ataques às instalações, o que provavelmente levaria a muitas baixas russas”, escrevem os analistas do ISW a 24 de abril.
O mês não chegou ao fim sem duas novidades: Aleksander Dvornikov, o “carniceiro da Síria”, é escolhido por Putin para coordenar as tropas na Ucrânia e o seu primeiro ato terá sido ordenar o ataque em Kramatorsk (Donetsk), onde mais de 50 pessoas, incluindo crianças, morreram durante o bombardeamento com mísseis de uma estação de comboios. “Eles estão a destruir cinicamente a população civil. Este é um mal que não tem limites. E se não for punido nunca vai parar”, reagiu Zelensky, considerando o ataque um crime de guerra.
A segunda novidade foi a ida da mais alta patente do exército russo à linha da frente do combate em Donbass. Valery Gerassimov, chefe do Estado-Maior do Exército russo, chegou a ser dado como morto, depois como ferido e, mais tarde, circulou informação de que já não estaria no local quando os ucranianos atacaram a sua posição. Desde então, não voltou a ser visto, nem sequer na parada militar do 9 de maio.
Na 11.ª semana de guerra, russos seguram Popasna
Foi a segunda grande vitória russa na região de Donbass. Quando Popasna caiu, 73 dias após a invasão, Zelensky comparou a cidade em ruínas a Lidice, uma cidade checa completamente destruída pela Alemanha nazi durante a Segunda Guerra Mundial. A maioria dos seus habitantes foi assassinada como vingança pela morte do comandante das SS, Reinhard Heydrich.
O governador de Lugansk não fez comparações. “Está tudo completamente destruído. Portanto, os militares recuaram para posições mais fortes, que foram preparadas com antecedência”, disse Serhiy Haidai. Repetia-se a história de Kreminna: uma retirada tática para evitar o cerco. “Em Kreminna, percebemos que, se nos mantivermos agarrados ao terreno, morremos e o inimigo não sai ferido. Então, reagrupamos e partimos”, acrescentou Haidai, citado pela BBC.
Popasna é uma conquista relevante. Está localizada numa colina, ficando mais elevada do que Lysychansk e Severodonetsk (as últimas grandes cidades de Lugansk nas mãos da Ucrânia), Svetlodarsk (sul) ou Bakhmut (oeste). Todas elas ficam dentro de uma área de 30 quilómetros de distância, o alcance máximo do tanque de artilharia autopropulsada, o 2C19 “Msta-C”, equipado com um canhão. Severodonetsk é atualmente um dos principais palcos de conflito.
Além disso, é um ponto estratégico para atacar ou cercar Kramatorsk, a 70 quilómetros, que se tornou a capital da região, depois de os separatistas terem tomado a cidade de Donetsk em 2014. Na noite de 16 de maio, na cidade que está praticamente deserta, uma escola vazia foi atingida por um míssil russo, segundo os correspondentes da RTP e da SIC Notícias no local.
A contra-ofensiva de Kharkiv e o abandono de Mariupol
Como se os dois eventos estivessem ligados, com apenas 24 horas de diferença, a Ucrânia dá Kharkiv como recuperada e a defesa de Azovstal como terminada. Um a um, diria o marcador de um jogo de futebol. Mas quando se fala de estratégia de guerra, o valor será o mesmo?
“Os russos não estão a fazer grandes progressos, exceto em Popasna”, dizia Michael Clarke, a 11 de maio. “O mais interessante é a norte, onde os ucranianos estão a levar a cabo uma contraofensiva em Kharkiv, o que está a complicar as comunicações russas. Porque elas vêm de Belgorod, Rússia, através de Kharkiv, Izyum, que é a sua âncora do norte para esta grande ofensiva. E estes contra-ataques põem essa linha de comunicação dentro do alcance de artilharia”, explicava o analista militar na Sky News, referindo-se às rotas russas de abastecimento de soldados, mantimentos e armas.
Ao Observador, Simon Schlegel dizia que “Kharkiv está a assistir à primeira verdadeira contra ofensiva no leste”. A vantagem? A cidade fica longe o suficiente para os russos não conseguirem atingir a zona urbana com a sua artilharia, “o que é um grande alívio” para os ucranianos. Mas, ao contrário de Clarke, considera que esta vitória não afeta muito as linhas de abastecimento russas em Izyum, onde se localiza a principal força de batalha nesta parte do país. “Ainda há várias possibilidades de conseguir levar abastecimentos até lá e penso que a próxima jogada dos ucranianos será empurrar em direção a essas rotas.”
Assim, e muito embora nos mapas da guerra a posição russa quase não mexa, Sean Bell questiona se para os russos valeria mesmo a pena lutar pela cidade. “É Kharkiv importante para os russos? Não acho que seja. Izyum, sim”, diz ao Observador. Enquanto partilha o mapa da Ucrânia no ecrã do computador, durante a vídeo-chamada, o militar na reserva explica que a área de Izyum era muito mais branca do que agora. (No seu mapa, o território conquistado pelos russos está pincelado a rosa.)
“Izyum é agora domínio russo. Com a ligação de Izyum para Donetsk, isola-se todas as forças ucranianas nesta área. Se eu fosse a Rússia, importava-me com Kharkiv? Só me importaria se, de alguma forma, os ucranianos conseguissem cortar as minhas linhas de comunicação. Mas como a Rússia controla toda a fronteira, eles podem reforçar as posições de onde quiserem. Não precisam da área à volta de Kharkiv”, diz.
Na sua perspetiva, o verdadeiro interesse de Putin está em segurar o porto de Sebastopol, na Península da Crimeia — dois locais que o mundo já esqueceu quão importantes são para a Rússia, histórica e simbolicamente. “A Rússia é o maior país do mundo, mas está trancado a norte pelo gelo, tem uma fronteira com o Pacífico, mas que fica a milhares de quilómetros de onde a agricultura está, e 90% do comércio do mundo é feito via oceano. Qualquer superpotência global gostaria de ter alguma forma um porto naval para exportar os seus bens”, argumenta Sean Bell. Essa é a importância de Sebastopol, defende, “que dá acesso aos oceanos do mundo”. Perdê-lo seria “devastador para alguém como Putin”.
É por isso que, em termos de estratégia militar, os russos têm muito a ganhar com a conquista total de Mariupol, e pouco a perder com o recuo de Kharkiv. “Da minha perspetiva militar, não acho que isto seja sobre Donbass. Acho que é sobre uma ponte terrestre para a Crimeia, para garantir que Sebastopol se mantém um porto russo e, idealmente — agora que tem Mariupol —, Odessa também. E assim o maior país do mundo teria mais do que um porto para poder fazer as suas exportações.”
O que aconteceu aos civis? “Ficaram para trás os mais vulneráveis”
“Um avião, e sabemos que são duas bombas. Se houve uma, haverá outra. Depois da primeira, caímos no chão, cobre-se a cabeça com as mãos, espera-se e pensa-se: onde, onde irá largá-la? Durante a primeira semana da guerra aprendemos a distinguir todos estes sons — o morteiro que bate, a saraivada. Mas o pior é o avião. É um horror animal, tudo dentro de nós treme, não se consegue mexer um braço, uma perna, fica-se apenas à espera da segunda bomba — e ela cairá.” A descrição é feita à BBC por Masha, de 42 anos, que vivia em Izyum, Kharkiv. Podia ser de qualquer outra ucraniana a viver num território ocupado pelos russos.
“Nada fica para trás.” João Godinho Martins, coordenador-geral da Médicos Sem Fronteira (MSF) na Ucrânia, fala dos edifícios. Das casas, dos hospitais, das escolas, dos teatros, dos tijolos. Quando falou com o Observador estava na zona de Kharkiv que, dia após dia, ia sendo libertada. “Aqui, na zona de Kharkiv, houve uma mudança muito forte na linha da frente, e estamos a tentar visitar as cidades que vão ficando desocupadas. O grau de destruição é enorme. Em Izyum, a situação ainda está muito ativa, há pouco acesso civil.”
Se nada fica para trás, quando se fala de pedras, o mesmo não se pode dizer das pessoas, como Masha. Em cada vila que a Médicos Sem Fronteira visita, vê o mesmo cenário: nos escombros das casas, nos bunkers escondidos, há quem não tenha conseguido fugir. São os mais velhos, os mais pobres, os mais frágeis. “Observamos muito isso nas zonas desocupadas ao longo de Kiev. Encontramos muita gente nesta condição. Tinham-se fechado em casa, com o pouco que tinham — são comunidades rurais. As pessoas com mais capacidade financeira fugiram”, conta João Godinho Martins.
As próprias famílias, diz, não têm capacidade para salvar todos. Os homens ficam para trás, “para guardar a casa ou entrar no esforço de guerra”, as mães fogem com as crianças. No caso de Masha, relatado pela BBC, a história segue por esse caminho. Vivia com o marido e a sogra, de 84 anos, num edifício de cinco andares. A água, o gás, a eletricidade, a comida, tudo desapareceu. O marido recusava deixar a mãe e Masha também ficou. A 10 de março tudo mudou. Masha ouviu falar em evacuação. Voltou a falar com o marido. “Masha, vá, vai ser melhor. Não estamos sozinhos, estamos com pessoas, não vou deixar a minha mãe. Vá, Masha.” E Masha foi. Agora, todos os dias sente culpa por ter partido.
“Há muita gente que fica para trás”, relata João Godinho Martins. “Pacientes que estão hospitalizados, pessoas idosas que não podem sair e que ficaram sem cuidados porque a família teve de fugir. Quem trabalha em lares de idosos também teve de fugir. Fica para trás toda esta população mais vulnerável, onde se incluem as pessoas com deficiência que, muitas vezes, viviam em residências.”
Por ter um grau de desenvolvimento elevado, em comparação com outros sítios do mundo onde a Médicos Sem Fronteiras atua, o que se vê também é diferente. “Não que a guerra seja mais intensa aqui, mas existem todos estes tipos de estruturas que funcionavam: hospitais, lares de idosos, instituições para pessoas com deficiência. Funcionavam, tinham pessoas institucionalizadas e quando as pessoas que trabalham nas instituições fugiram, ficaram muito mais fragilizadas.”
Em Donbass, conta, não há uma zona segura. É a zona mais quente em termos do conflito. “Em todos os sítios, em todas as cidades de Donbass, podem existir bombardeamentos todos os dias. Não sabemos, a população não sabe o que pode acontecer hoje ou amanhã e isso é um elemento de grande pressão para toda a gente. A incerteza que há e que se transforma na certeza quando há bombardeamentos”, explica o coordenador da operação na Ucrânia.
Por tudo isto, uma das principais necessidades de quem fica para trás são os cuidados de saúde mental, uma das prioridades da Médicos Sem Fronteiras. “Há idosos que não estão institucionalizados, que vivem nas suas casas, que não quiseram sair. E é compreensível: viveram toda a vida nestas áreas”, diz João Godinho Martins ao Observador. Muitas zonas são ocupadas pelo exército russo e, quando são libertadas, o que se encontra são seres humanos em estado desolador. “Encontramos toda esta população que esteve fechada em casa durante semanas, em condições muito complexas e que precisam de um pouco de humanidade, de cuidados de saúde e de saúde mental.”
Outra prioridade é ajudar os ucranianos a transformarem hospitais normais em hospitais de guerra, já que lidar com vítimas de um conflito armado não é o mesmo que gerir um serviço de urgências. “O que trazemos é algum conhecimento de apoio a vítimas de guerra”, conta João Godinho Martins. Neste ponto, é um trabalho entre colegas, de médicos para médicos, em que a organização passa aos ucranianos a experiência que adquiriu no terreno, operando em conflitos armados por todo o mundo.
Donbass. O que se segue?
Qual o futuro para a região de Donbass na cabeça de Putin? Todos os comentadores dizem o mesmo: é impossível entrar dentro da cabeça do Presidente russo e prever os seus planos, assim como é impossível saber até que ponto os ucranianos conseguem resistir à invasão.
Simon Schlegel fala na hipótese de vermos um conflito com poucos avanços e recuos, mas em que os ataques não param. “Há pouco espaço para discutir a paz. No fim de março, os ucranianos estavam prontos para discutir o estatuto da Crimeia e — talvez — um período de tempo durante o qual ele não seria alterado. Agora que provaram que podem alcançar algo militarmente, com a ajuda das armas do Ocidente, é mais provável um empate não negociado, em que as duas partes paralisem.” Ou seja, uma réplica do que aconteceu nas regiões separatistas desde 2014. “Vai ser o que vimos nos últimos oito anos, não há esperança de paz: nunca foi um conflito congelado, eram disparados tiros todos os dias.” A ajudar a travar a batalha poderá estar o rio, se funcionar como um escudo que paralisa posições.
“A frente da batalha [que se estende] de Kharkiv a Lugansk é quase toda ao longo do rio Donest. Em Izyum, os russos tem os dois lados do rio e, em Severodonetsk e Lysychansk, são os ucranianos que os têm. Se a linha da frente for apenas ao longo do rio, será muito difícil para os ucranianos contra atacar porque as pontes desapareceram, foram mandadas abaixo.” Nesse cenário, argumenta Simon Schlegel, a linha da frente passará a mover-se a um ritmo muito lento, podendo até ficar estática.
No momento atual, recusa a ideia de um empate. “Acho que é demasiado cedo. Os ucranianos estão a mordiscar, digamos assim, este grande arco que os russos têm na Ucrânia e mantêm a linha histórica à volta das zonas urbanas de Donbass, apesar do avanço em Popasna”, considera Simon Schlegel.
A norte, explica, há uma grande área urbana — formada pelas cidades de Lysychansk, Rubizhne e Severodonetsk — muito industrializada e muito defendida. “É um dos postos de comando dos ucranianos durante os últimos oito anos, quando Severodonetsk era a capital de facto do oblast Lugansk. São cidades muito bem defendidas e pode demorar algum tempo, mas os russos estão muito dispostos a tomar esses lugares porque isso poderia levá-los a clamar algum tipo de vitória.”
No curto prazo, o analista do Crisis Group acredita que vamos assistir a mais abastecimentos de armas vindas do Ocidente e que será possível ver esses sistemas de artilharia pesada, entregues pelos EUA e pela Polónia, a atacar posições russas. “Alguma dessa artilharia é de longo alcance e pode atingir as posições russas de longe, trazendo alguma dinâmica” ao conflito em Donbass. Já os russos vão continuar a tentar destruir infraestrutura crítica na Ucrânia — linhas de comboio, estradas —, tudo por onde possa chegar armamento vindo da Europa e dos Estados Unidos.
“Vão fazê-lo com ataques de mísseis, como fizeram em Odessa”, diz Simon Schlegel, que acredita ser provável que os russos tentem introduzir pseudo estados no sul, por exemplo, em Kherson, “onde tentarão ter a sua própria administração, fazer referendos e russificar a internet”.
No fim do dia, o analista admite que os russos pagaram um preço alto pelo que conseguiram. “Não é pouco território que têm, tem uma parte grande no sul, e não é uma terra sem significado — permite uma ponte para a Crimeia e para Dnipro, e é importante para fazer chegar água à Crimeia, mas não é o que eles esperavam no início. O que eles queriam era uma Ucrânia obediente, um país onde pudessem influenciar a política diretamente e mudar o regime. Tudo isto agora parece impossível de conseguir e tiveram de adaptar os seus objetivos a controlar Donbass.”
Sean Bell, através do olhar de um militar que passou por conflitos em Sarajevo, Kosovo, Bósnia, Iraque e Afeganistão, vê a realidade de outra forma. “Há uma guerra de informação no momento. E, embora os media do Ocidente digam que são neutros, não são. Temos simpatia pela Ucrânia e não gostamos da Rússia”, argumenta. Por isso, quando a Ucrânia está a contra atacar, quando repele invasores, saudamos como se fosse uma grande vitória.
“Na perspetiva militar, se não te estás a sair bem num sítio, sais, e levas as tuas tropas para outro lado. Os russos têm estado a ganhar terreno e se nos focarmos no que eles estão a tentar conquistar, a ponte terrestre, os mapas mostram que estão a avançar gradualmente, muito lentamente, e fazendo muitos erros”, diz o militar na reserva, que esta semana teve a oportunidade de falar com Zelensky, durante um evento da Chatham House, onde foi um dos 150 participantes.
Se olhar para os mesmos mapas, que mostram os russos parados, “através de lentes militares”, vê algo que “não vai ser resolvido hoje nem amanhã, talvez nem na próxima semana nem no próximo mês”. Tentar conquistar Odessa é algo que acredita que só acontecerá dentro de vários meses. Já o simples facto de Mariupol estar resolvido vai libertar milhares de soldados que podem ir para Donbass, esclarece. E se a Rússia conseguir esses reforços antes de a Ucrânia usar as armas enviadas pelo Ocidente, poderá fazer avanços significativos. Mas se as armas Ocidentais forem usadas, isso tem potencial para mudar a maré em Donbass, acredita Sean Bell, frisando que uma coisa é dar as armas, outra é saber usá-las.
“Penso que a Rússia ainda tem a maioria dos ‘ases'”, diz. Putin tem a oportunidade de capturar Donbass, como quer, se os russos souberem usar o ar e a terra e se o fizerem depressa, antes de a Ucrânia ter as suas armas novas. “A Rússia deverá jogar tudo o que tem em Donbass, agora que Mariupol acabou. Será interessante ver a Ucrânia dizer que está a contra atacar, mas estarão a conseguir impedir a Rússia de conseguir o que quer?”, interroga-se o militar. Interessante, diz Sean Bell, será ver a rapidez com que as armas do Ocidente chegam aos ucranianos e a diferença que o armamento moderno fará no decurso da guerra.
“Não ficaria surpreendido se virmos os russos a ter sucesso e, numa questão de dias, haver uma grande ofensiva ucraniana que os empurrasse para fora dos seus territórios.” Apesar disso, e ainda com as suas lentes militares colocadas, refere que é sempre importante questionar se a Ucrânia, em cada uma das batalhas travadas, expulsou com sucesso os russos ou se os russos decidiram que não precisam mais de lutar ali.
“Zelensky quer mostrar que os ucranianos estão a lutar e podem decidir lutar por territórios que eles sabem os russos não querem necessariamente manter porque conseguem uma vitória, não digo fácil, mas menos difícil. Do ponto de vista militar, temos de olhar sempre para qual é o nosso esforço de guerra principal e não nos deixarmos distrair”, conclui Sean Bell.