É a segunda vez que não lhe vejo os olhos. Não consigo ver para lá das lágrimas que lhe enchem as órbitas, que aguenta como barragens inquebráveis contra a maior das inundações. Manuela está ao meu lado, à frente do volante, o carro trabalha o motor. Estamos parados à porta do meu hotel. Acabou de recordar a mãe, a que lhe deu tudo que foi pouco, porque ela saiu da Cedofeita, no Porto, para ir passar umas férias a Paris. Foi há 34 anos, Manuela tinha 18. Leva as mãos à cara, torna-as esponjas para guardarem o que os olhos mal aguentam. Parece não se perdoar: “Fiquei cá para ajudá-la, não sei se ajudei”. Não há postura que consiga, ou deva, manter quando se lembra da “pior coisa” das décadas que leva vividas nesta cidade. O momento em que lhe ligaram de Portugal e lhe disseram que uma leucemia dava mais dois anos de vida à mãe.
É o fim da noite de uma sexta-feira. A final do Europeu está a menos de dois dias. Acabámos de jantar, Manuela dobrou a boleia que já me dera há umas horas. Não sei o que lhe diga. Sei que tudo o que se passou antes nesse dia passa a interessar muito menos, quase nada.
Há um bar que está vazio enquanto a manhã termina. Quase nem as moscas o visitam. As colunas tocam música eletrónica, um house descontraído, desenquadrado com tudo. Há um senhor com mais idade ao balcão, calado, calvo na cabeça, bebe uma cerveja Superbock. Ruiva. Parece estar no intervalo de um almoço antecipado. Acaba a primeira, pede a segunda, volta à posição de cotovelos apoiados no balcão corrido. Um gato aparece, malhado, com tons escuros no pelo, salta para o balcão e deita-se. Podia parecer uma versão moderna de um bar de cowboys da América, sobretudo pelo que aqui se passou há meses. Procuro o proprietário, ele não fala, não quer, está farto. Não me diz como se chama, só sei o que vejo à frente: um senhor nos seus quarenta, barba por fazer, ritmo elétrico apesar da calma que enche as mais de três dezenas de mesas do bar.
Diz que “há que seguir em frente”. Insiste na ideia, compreende o trabalho de quem aparece para lhe perguntar coisas — “Respeito a tua profissão, não me leves a mal”. Pede que eu entenda a posição dele, de “não deixar câmaras ou fotografias entrar aqui desde 13 de novembro”. A primeira coisa que diz é que está “desolée” com tudo o que se tem passado desde o ataque que ali matou 15 pessoas das 130 que morreram nos atentados. Nem lhe consigo perguntar sobre o Europeu, o que seja, sobre futebol e a cidade. Nem sinto que deva. Ele lamenta os “clientes que nunca mais apareceram”, ferida que lhe dói talvez por, do outro lado da rua, o restaurante estar cheio. À pinha. Houve tiroteio em ambos os sítios naquele dia, apenas um parece ter emagrecido com as balas, as notícias e a atenção que veio com a tragédia. “Vá, aprecia o jogo no domingo, vieste cá para isso, com certeza”, despede-se. Fá-lo com um sorriso.
O restaurante do lado oposto da rua enche-se de cheiros asiáticos. A especialidade é comida do Cambodja. Os franceses gostam, até com pauzinhos devoram as refeições. Há mesas corridas, quase uma dezena, que estão repletas. Aqui as pessoas sentam-se, algum empregado chega, entrega-lhes a ementa numa folha de papel, só retorna quando a escolha está escrita por quem a vai comer. Não há qualquer alusão a futebol neste espaço. Uma das empregadas, que além do francês fala inglês e espanhol, dá uma garantia por todos os que ali trabalham: “Aqui ninguém vai querer falar. Eu não estava cá na altura, mas foi um dia muito traumático. As pessoas não gostam de falar disso”. Pronto, o restaurante apanha boleia do bar e nada me dizem sobre nada. Os atentados não saem debaixo das pedras que os pisam. É impossível saber o peso que o que aconteceu há meses tem sobre a forma como se encara o que vai acontecer no domingo.
Em Lognes é diferente. Fica nos arredores, a 28 quilómetros do centro de Paris, que um comboio faz em cerca de 20 minutos. É longe que fica o Centro de Cooperação Policial Internacional. Está alojado num edifício do Ministério do Interior francês e um portão é guardado por dois oficiais do país. Perguntam ao que vou, explico-me, e brincam com a final que aí vem. Dizem que vai ser Portugal a ganhar, riem-se e mostram-se despreocupados com o assunto durante os escassos segundos que Luís Simões tarda a chegar. Entramos. Tenho à frente o superintendente da PSP que vai com um mês contado em França a chefiar uma delegação com oito agentes. Numa frase, o trabalho deles é cooperar com as autoridades francesas. Mas, numa conversa, cabe muito mais do que isso.
A função de Luís e dos restantes oficiais é, a cada jogo, garantirem que os portugueses são os bons da fita. Estão ali para estarem no meio, entre os adeptos e o futebol. Foram às cidades onde a seleção parou e viram das bancadas os jogos que jogou. Os colegas das delegações dos outros 23 países fizeram o mesmo, agora restam eles e os franceses. “Foram-se embora à medida que iam sendo eliminados, agora houve uma razia, o que para nós é muito bom sinal. É estilo o elo mais fraco, adeus”, conta, sorridente, quando já estamos sentados na entrada do centro. Luís está fardado, tem vestido o uniforme que usa em Portugal. Tem reuniões com a UEFA, encontros com os prefeitos das cidades onde a seleção vai, diálogos com as autarquias, conversas com oficiais franceses. Mas foi a prática que lhe deu mais coisas para contar.
Ainda não viu problemas nem conflitos. Num jogo foram chamados para junto de um pai, português, que se exaltou com um funcionário do bar do estádio, chateado por este ter servido mal um hambúrguer ao filho. “Estavam para ali a discutir e vieram-nos chamar. Lá tivemos que ir resolver a questão”, resume. Lembra-se de um adepto que, por um problema, estava a ser levado para fora do recinto “de forma violenta” pelos assistentes de segurança do estádio. “E nós não permitimos que os assistentes do estádio ultrapassassem a linha do que é normal. De facto, havia motivos para o adepto ser retirado. Mas com calma, sem violência”, defende. Lamenta o adepto, nos seus quarenta, que não teve antídoto contra o calor do jogo e atirou uma garrafa de plástico, já quase sem água, para o relvado, exasperado por um penálti não assinalado.
O senhor “foi detetado e detido. Ainda passou duas noites na polícia em Lyon e levou pena suspensa de um mês de prisão”. Luís Simões falou-lhe, percebeu que era um tipo calmo e tranquilo, levado por um segundo irrefletido. “É daquelas coisas que nos custam mais, não podemos fazer nada. A polícia francesa está a cumprir o seu papel”, admite. Há também as que custam menos, ou quase nada. Como o momento em que adeptos de claques que, em Portugal, não lhes falam, os foram cumprimentar aqui em França — “Até fiquei boquiaberto. Mas eles reconhecem que estamos cá para colaborar e permitir que eles desfrutem dos jogos e da seleção”. Muitos mais virão para o fazer. Porque o superintendente sabe que a federação “cedeu bilhetes aos Super Dragões, à Juve Leo, aos tipos do Braga, do Leixões, do Paços de Ferreira, do Famalicão, do Estoril, etc. No domingo vão ser mais alguns”, garante.
Estão aqui para isso e para “mediar muitos pequenos conflitos” e impedir que escalem para algo maior. Era bom que tudo fosse assim, feito de episódios tímidos e sem alarmes. Mas não. No arranque do Europeu, um casal de polícias franceses foi assassinado nos arredores de Paris, em casa, por suspeitos com “alegadas ligações ao Estado Islâmico”. Os portugueses preocuparam-se, como todos. Na cabeça fica o pensamento que qualquer agente pode ser um potencial alvo e regressa a memória do que se passou no país em novembro do ano passado. Ouvir um petardo a rebentar na rua, longe, fá-los pensar duas vezes no que poderá ser, conta. “Obviamente que estamos mais preocupados com a violência entre adeptos, mas estamos atentos a esse tipo de sinais”, confessa. O exemplo que dá a seguir aconteceu num dia em que a seleção estava prestes a chegar a um hotel. Viu um carro com uma matrícula esquisita e lembrou-se “logo, claro”. Falou com os colegas franceses, “eles rapidamente identificaram o condutor” e retiraram o carro dali.
Luís Simões é o superintendente da PSP que chefia uma delegação portuguesa com oito oficiais. Chegaram a 6 de junho a França e por lá ficam até 12 de julho. Conviveram com “colegas” dos restantes 23 países que participaram no Campeonato da Europa.
Não espera ataques, explosões, bombas ou atentados, diz que não há quaisquer indícios de que isso possa acontecer. Aliás, até está a aguardar por um: “Espero que o grande atentado seja roubarmos a taça à França, que eles estão convencidos que já a têm”. Ri-se de novo, a conversa pode seguir. Vai parar à final de domingo que Luís Simões e a delegação portuguesa começam a preparar no sábado, embora sem grandes trabalhos, por culpa dos portugueses. “Os nossos adeptos, ao contrário dos outros, muitas vezes só aparecem no estádio à hora do jogo. Penso que se deve a muitos serem emigrantes, fazem a viagem no próprio dia. Por um lado é bom, porque não nos suscita grandes problemas ou preocupações, por outro, é complicado planear alguma coisa. Mas pronto, tem corrido bem. Já os que vêm de Portugal costumam chegar no próprio dia do jogo e nós sabemos os locais onde se devem concentrar”, resume, sem ter algo mais a dizer.
Despedimo-nos enquanto me explica o caminho de volta à estação. O comboio rebobina a viagem até Paris. Há tempo para um desvio, já no centro, puxado pelo nome do destino. Vou à Avenue des Portugais. Chego lá e só podem estar a brincar.
Primeiro, é uma avenida que nem 50 metros tem. A um canto estão lugares a menos para motas a mais, estacionadas como tostas mistas, apertadas. Há um anúncio ou uma cena de filme a ser gravada no outro canto, do mesmo lado da rua. Um rapaz pede que me desvie, que não passe por ali quando faço a curva para chegar à rua. Do lado oposto está um hotel de cinco estrelas. Há uma limusine à porta, é a rainha que manda em outros carros de alta cilindrada. É um hotel onde comer um brunch fica por 130 euros. É também vizinho de uma loja de roupa de alta-costura. Na rua batizada de avenida e assim nomeada como homenagem aos combatentes portugueses na Primeira Guerra Mundial não há nada para ver. Há mais estrangeiros e turistas do que franceses, quanto mais portugueses. Se Paris fosse esta rua, o Europeu nunca teria passado por aqui.
Despacho-me, há que retornar ao hotel, tenho uma hora combinada para jantar. A companhia é Manuela Rodrigues. Encontro-a num livro, descubro-a numa rede social e falo-lhe por telefone, porque ela assim o permite. Combinamos um jantar para conversarmos e a senhora insiste, não desarma, para que não nos encontremos no sítio e haja uma boleia da sua parte. Sou obrigado a aceitar.
Os dias em Paris são teimosos, tardam a dar espaço à noite. Manuela apanha-me de óculos escuros, com um sorriso maior que o carro descapotável que conduz. Fala muito e alto, muito pelo som que sai do rádio e a faz, por instinto, aumentar também os decibéis. Vai olhando para o telemóvel que tem o GPS que lhe vai apontando o caminho. Às tantas sabe onde está e demoramos uns 15 minutos a estacionar o carro. Estamos a metros do Atlântico, um restaurante português, cheio de portugueses simpáticos e amigáveis, todos emigrantes. É ali, entre uma refeição, que quero falar com Manuela Rodrigues, uma porteira parisiense, sobre como é viver nesta cidade enquanto a seleção brilhou no Europeu de futebol.
Mas o porquê de esta portuguesa estar ali derruba qualquer intenção minha. É a história que ela me conta.
Umas férias. A família era humilde, ela diz que era pobre, modesta. Nunca lhe faltou nada, fome não passava da porta, viviam com o que podiam, que não era muito, mas chegava. Até que um dia houve uma possibilidade. Podia ir passar um mês longe, ir gozar dias ao estrangeiro, a Paris, onde morava uma tia e com ela a hipótese de respirar outros ares. “Telefonei para a minha mãe. Disse-lhe para me deixar ir de férias, que me pagava o bilhete”. A mãe, lutadora, apenas com dois braços, um trabalho e com dias só com 24 horas para cuidar de três filhos, “não tinha dinheiro” para lhes dar férias. Olhou para Manuela, achou boa ideia, mas fê-la pensar. A filha tinha 18 anos e Paris tinha tudo.
Manuela chegou a Paris com 18 anos, em 1982. Não chegou à cidade para ser porteira, muito menos para trabalhar. Mas as férias tornaram-se numa oportunidade para ganhar dinheiro e ajudar a mãe, que ficou em Portugal. E Manuela foi ficando em França.
Era grande, cheia de gente, prédios, trânsito, vida, liberdade, confusão e uma língua diferente. A rapariga cá andou a ver e a descobrir e a aproveitar até que a tia fê-la ver a opção de as férias passarem a ser definitivas. “Pensei que podia ficar um ano, inscrever-me na Alliance Française, aprender francês, voltava para Portugal, ia ao Instituto Francês e tentava arranjar trabalho”, pensou Manuela, pôs o plano na cabeça.
Contou à mãe, que não pôs travão nem carregou no acelerador. Apenas pediu prudência, desceu a temperatura do sangue que entra na cabeça que pensa. Queria que a filha tivesse certezas, que estivesse segura quanto à intenção de domar o francês para um dia dar aulas a ensiná-lo. Manuela não queria Paris, embora também não se importasse de tentar. Mas um ano é muito tempo e nesses 365 dias aconteceram “muitas coisas”. A primeira foi conhecer e gostar do primo direito que entretanto passou a marido — “Ninguém é perfeito nesta vida, não é?”. Eram novos, os dois bonitos, a experimentarem sentimentos que não se controlam, a atearem “uma chama”. Tinha aterrado em Paris há três meses quando o primeiro trabalho precisou dela. A Madame Andreau tinha duas gémeas, pequeninas, e uma casa que precisava de limpeza de alguém que não a deixasse sozinha com as crianças. “E eu não sabia fazer nada. Até a minha mãe dizia que eu nunca seria uma dona de casa. Nem cozinhar sabia”, conta. Mas foi, tentou, esforçou-se e arriscou, porque precisava do dinheiro e o dinheiro era mais preciso para ajudar a mãe.
Não sabia como se fazia, então fez tudo. Limpou as coisas todas que viu e, no primeiro dia, a senhora voltou a casa e “disse que até os muros estavam limpos”. Ganhou-lhe a confiança. Contou “dois ou três anitos” a trabalhar nesta casa, a vida de trabalho em Paris começava, e com ela “o lado cómico” que faz Manuela sorrir e rir até mais não de pormenores que tanta história junta lhe faz lembrar. Uma das gémeas de quem tomava conta “era afilhada do Alain Delon”, ator e uma das caras bonitas do cinema francês, com apogeu vivido nos anos 60 e 70. A portuguesa não sabia quem era, nem o francês queria já algo com ela quando, um dia, ele bateu à porta de casa. A patroa perguntou-lhe se o conhecia, Manuela disse que não e tão pouco arredou pé “para lhe mostrar que não abria a porta a toda a gente e que ninguém entrava ali”. A cara que um país conhecia de caras era a mesma que a portuguesa a dar os primeiros passos em França desconhecia.
Manuela casou-se grávida do filho que hoje tem com 29 anos e teve a filha que tem agora 25. Nunca matou nem roubou, honrou o que a mãe lhe ensinou e por isso não tem vergonha de nada do que fez. “Sinto-me é orgulhosa.” Guardou na cabeça uma das primeiras coisas que lhe entraram pelos ouvidos em França, onde a avisaram que não chegara “para ser menina bonita”. Chegou para trabalhar. Acercou-se das pessoas para se aproximar do francês e inscreveu-se numa agência de emprego. Apresentou-se à “menina da receção”, disse-lhe que tinha um diploma, que era “uma semana grátis”, o único que podia dar. “Eu vou, se gostam ficam comigo, se não, a primeira semana é grátis”, resume. A diretora da agência, com ouvido ou curiosidade, saiu do escritório. Aproximou-se, falou para ambas escutarem: “Deixe estar, eu ocupo-me desta menina”. Arrastou Manuela para o escritório, confessou-lhe ter sido conquistada pelo diploma da portuguesa. Deu-lhe uma oportunidade só pela vontade que Manuela demonstrou e o primeiro trabalho foi como decoradora numa loja de chocolates.
A semana grátis virou um mês de trabalho, pago com 10.000 francos de salário, o que na altura a deixou “toda contente”. Comprou chocolates para toda a gente. De lá foi para o Hotel Ritz, trabalhou no jardim. Passou a vendedora antes de tentar a sorte num banco. Conseguiu, umas semanas volvidas, quando a carta de motivação que lá deixara foi útil mal o banco precisou de alguém. Foi rececionista numa sucursal e, quando passou para outra agência, conheceu “alguém”. Essa pessoa apresentou-a à senhora que vagou o lugar que hoje Manuela ocupa — a de porteira. “Fui substituí-la. Quando vi a casa, o sítio, as pessoas, disse: ‘Eu quero’. A maior parte dos apartamentos são pequeninos, aquele era e é grande”, conta. O tempo passou devagar, parecia abrandado pelas “muitas vezes que a porteira meteu baixa” e adiava a vontade que dizia ter de voltar para Portugal. Mas Manuela não podia abusar, tinha de treinar a paciência e não se esquecer: é a porteira que sai quem escolhe a porteira que entra. Até que a substituiu.
Morava fora de Paris e passou a ser vizinha dos Champs Elysées. Convenceu os proprietários do prédio e o condomínio. Gostaram logo dela. Teve sorte, não com isto, mas com o que a senhora que substituiu queria que Manuela tivesse pago. “Antes, quando se dava uma casa de porteira a alguém, as pessoas pediam dinheiro. Para não dizerem que estavam a vender a profissão, diziam que era pelos móveis que estavam dentro da casa”. Manuela não pagou nada porque a tal senhora ficou mal vista, foi-se embora e desapareceu. Está quase há 19 anos a tratar de “um prédio muito bom e cheio de paz e alegria”.
É a sua voz portuguesa, de 52 anos, que passa lá os dias, a cantar quando lhe apetece, a limpar os pátios por regra, a tomar café, a ser convidada a beber champanhe em casa dos proprietários. É uma vida exigente, como Manuela sempre foi. Com personalidade, sem desviar da linha que ao início lhe pediram para manter reta. Coisas simples, como não deixar algum conhecido ou amigo de quem ali viva estacionar o carro dentro do prédio. Alguns até oferecem dinheiro. “Mas eu nunca quis, a mim ninguém me compra”, diz. Manuela pôs regras e fez cumprir as que já havia. Está em cima das obras que se fazem no prédio. Até houve um proprietário, em tempos, que lhe bateu à porta e lhe quis oferecer a nota de 100 euros que segurava na mão em troca de um “beijo na boca”. Rejeitou e disse-lhe que ficava com o dinheiro “enquanto o metia na prisão”, história que hoje lhe dá uma gargalhada. Manuela leva muito a sério a área de jurisdição que lhe pertence, literalmente.
Estava no primeiro ano de porteira, em casa, e ouviu um alarme a tocar. Subiu. Encontrou a chave que tem de todos os apartamentos antes de reparar que a porta estava aberta. Foi arrombada. Teve medo, o alarme não se calava. Chamou a polícia e o prédio ficou apinhado de agentes, até nos telhados andavam. Tudo quanto era saída ficou bloqueada. Mas o suposto ladrão não aparecia, passaram horas, então a polícia foi-se embora. Às tantas tocou o alarme de novo e aí Manuela viu uma lanterna. Estava alguém lá dentro. A polícia voltou e desta vez a porta estava fechada. A polícia entrou, mãos ao ar. “E aparece um gajo que, ao vir, reparamos que era da empresa de segurança”, suspira, ao contar como deu “um raspanete” ao senhor que chegara atrasado para cumprir o seu dever.
Mas houve mais. Houve o dia em que os andaimes das obras no prédio ao lado deram o atalho para um ladrão entrar num apartamento. O alarme guiou Manuela até lá, que entrou, fechou a porta, pegou numa bengala “da coleção que o proprietário tinha à entrada”. A surpresa assustou o ladrão e ele fugiu. A polícia só o apanhou mais tarde. Passou um ano e a porteira apanhou um ladrão a descer com computadores na mão. Manuela bloqueou elevador, saídas, tudo, é o poder que tem em casa — tem uma espécie de painel de controlo que lhe permite fazer isso. “Disse-lhe: ‘É simples. Ou me dás os computadores e vais-te embora, ou a polícia vem aí e vais preso’. Ele deu-me os computadores, eu abri-lhe a porta e foi-se embora. Não sei se o chegaram a apanhar”, confessa. A polícia, entre o contente e o dever não cumprido, berrou com a porteira, disse-lhe que era suficiente, para não arriscar mais. “Só depois é que começo a refletir e percebo que sou estúpida, que tenho dois filhos e estou a por a minha vida em perigo”, lá admite. No banco já aprendera que os ladrões “profissionais” são calmos e aparentam sê-lo, e com os ocasionais, os que Manuela enfrentou, há o risco de se assustarem e reagirem por instinto.
É devota a Deus e agradecida a Rúben Alves. Adora-o, a ele e à família. Um dia o realizador apareceu e puxou-a para o casting de “Gaiola Dourada“. Viu em Manuela um papel e a portuguesa agarrou-o. Pequeno no filme, enorme para ela. Ainda hoje não sabe porque foi a escolhida. Apareceu sem maquilhagem, com a roupa de sempre, o comportamento dela, os hábitos de Manuela. Foi paga para fazer o que ofereceu de graça. “A minha auto-estima começou a levantar”, resume. O filme gira à volta da vida de uma porteira, o dia-a-dia que Manuela gosta e nem sabe por onde começar para o explicar. É a ser porteira que tem uma casa boa pela qual não paga renda, no sítio onde está, “que não podia ser melhor” e tem sala, quartos, duas casas de banho e arrecadação. É a ser porteira que tem tempo para levar e ir buscar os filhos à escola. É a ser porteira que tem “proprietários que são uma maravilha” e como uma família.
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Só Manuela sabe como é uma vida “muito cansativa”. Claro que lhe custa ter que tirar os contentores do lixo às 6h15 da manhã e lhe sai do pelo limpar os dois pátios grandes, as escadas de serviço e o sexto andar. “Além das encomendas, de ter que tratar dos filhos dos proprietários, das cartas que tenho de mandar para os que às vezes não estão a morar cá”, enumera. Manuela diz que uma porteira também serve de segurança, que “não deixa entrar qualquer um”. Chegou a ocupar-se de crianças, de pessoas de idade, até de um cão que só a reconheceu a ela para deixar de ladrar e rosnar a dois polícias, que um dia não conseguiram entrar em casa de um proprietário.
É um trabalho de horários, de entrar à hora tal e sair passado tal tempo que ninguém pode apontar o que seja. Mas não é fácil. “Podemos fazer o horário em que ninguém nos diz nada. Mas há sempre o ‘olhe Manuela, faça-me um favorzinho’ ou um ‘Manuela, desculpe incomodar, mas…’ É que são pessoas tão simpáticas, que se preocupam comigo, com os meus filhos, com o meu bem-estar, que aquilo às tantas já não faz parte do trabalho, faz parte de viver”, tenta explicar. Fala de amizade e do respeito que nutre, a forma como se relaciona com quem vive no prédio. Em março teve umas férias em Nova Iorque, dez dias pagos por uma proprietária, cuja boa vontade também financiou a viagem a uma amiga de infância de Manuela, que vive na Cedofeita, freguesia do Porto.
Mais do que ser porteira, gostava de ser “um pássaro com asas” para, quando pretendesse, voar até Portugal e dar um beijinho à mãe e aos amigos.
Agora está no carro, estamos à porta do hotel, Manuela recorda a mãe de quem viveu longe e não esteve perto o suficiente quando a doença a levou. Lamenta o marido, que está quase a deixar de o ser pelo mal que várias vezes lhe fez. Ainda hoje sofre com os dois anos que passou a ser chamada à polícia, até no dia de Natal e Ano Novo, por um proprietário a ter “enganado” e “acusado” de ter aberto um envelope que não lhe era endereçado. “Durante esse tempo fui pior que um pobrezinho. Cheguei a um ponto em que não saía à rua. Entretanto o meu marido enganou-me e foi-se embora. Fiquei fechada em casa, muitos dias, meses e meses, não queria sair. Só ia à polícia quando me chamavam”, dissera-me, durante o jantar, com os olhos a lacrimejar.
Manuela bem diz que domingo é dia de sorrisos, festejos, de falar alto, tal como a iminente ocasião lhe puxa pelo tom de voz. Conta como vai vestir as duas camisolas da seleção que comprou, diz que se reunirá com muitos portugueses, fala do bem que lhe saberá ganhar à França. Nada disso me parece importar, porque me engana durante muitas horas. Parece-me feliz, a sorrir, a rir-se e a ser bem-disposta. O que me conta e a forma como nos despedimos faz-me pensar que não, mesmo que a sua “maior felicidade em França sejam os dois filhos e o netinho” que já tem. Porque esta é das últimas frases que me diz — “Vim para França para sofrer e ajudar os outros. Cheguei a chorar por estar longe da minha mãe e vou sair daqui a chorar também”.
E eu contento-me por não lhe ter falado mais do Europeu. Com isto, não interessava.