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Alipio Padilha

Alipio Padilha

Ainda há Ramiros em Lisboa e Manuel Mozos fez um filme sobre eles

“Ramiro” estreou-se no Doclisboa e chega agora às salas. Falámos com o realizador sobre esta comédia-crónica de uma cidade e das pessoas que desaparecem com a mudança.

Que Lisboa é esta de “Ramiro”? E o que é feito dos Ramiros? Já se falou sobre isso a propósito da passagem do novo filme de Manuel Mozos na última edição do Doclisboa. Apesar de ser uma ficção, torna-se um documento importante sobre as mudanças na capital nos dias de hoje. As mudanças físicas, estruturais e como isso afecta as pessoas que vivem, habitam, convivem e fazem a cidade. Alfarrabista de profissão, quase em jeito de terapia ocupacional, Ramiro (António Mortágua) também encaixa na sua existência laivos de escritor falhado, companheiro de copos e uma bondade pelos outros que se mistura com uma inabilidade em fazê-lo.

O humor de “Ramiro” nasce desse desajuste entre o que quer fazer e como o fazer. Não sabe, aprende a fazê-lo à sua maneira, mesmo que daí qualquer rumor de aprendizagem esteja ausente. Fala-se em humor porque “Ramiro” é uma comédia, o argumento de Mariana Ricardo e Telmo Churro, que já escreveram argumentos em conjunto para Miguel Gomes e individualmente para João Nicolau (Mariana Ricardo), foi escrito a pensar em Manuel Mozos. Queriam fazer um filme para ele.

Manuel Mozos colaborou com eles para tornar o argumento mais próximo de um filme seu e “Ramiro” torna-se num que reflecte a existência de Mozos, pelo seu trabalho no ANIM — Arquivo Nacional da Imagem em Movimento, no sector de Identificação, onde analisa e cataloga os materiais que estão no arquivo, como realizador, tanto na ficção — “Xavier” (1991-2002) e “4 Copas” (2008) — como no documental — “Censura: Alguns Cortes” (1999) ou “Ruínas” (2009) — e, claro, como cidadão que vive em Lisboa. A conversa, na Casa Independente, era para ser sobre “Ramiro”, mas falou-se mais sobre Lisboa, os espaços e as pessoas. Vem a propósito, “Ramiro” é um óptimo retrato sobre a Lisboa desta década.

[o trailer de “Ramiro”:]

A Mariana Ricardo e o Telmo Churro queriam escrever um filme para si. Como é que o “Ramiro” surgiu na sua vida e como o aceitou?
Já nos conhecemos há bastante tempo e trabalhámos juntos: a Mariana trabalhou na música do “Xavier” e o Telmo trabalhou comigo no “Ruínas”, no “4 Copas” e eu entrei na curta-metragem dele [“Rei Inútil”, 2013]. E também já colaborámos em filmes de outros realizadores [Miguel Gomes e Bruno Lourenço]. Um dia perguntaram-me se eu aceitava que eles fizessem um argumento para mim. Eu fiquei encantado com a ideia. Passado uns dias entregaram-me o primeiro esboço. Li e gostei bastante, pedi para avançarem.

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E o que gostou mais nesse primeiro esboço?
Tal como nas ficções que eu tinha feito, as personagens contavam mais do que a história em si. Além de achar piada ao protagonista, o Ramiro, gostei do resto das personagens e daquela vertente de alguém que está desadequado da realidade, do mundo contemporâneo. O Ramiro vive no seu próprio mundo. E passava-se em Lisboa. Tudo isso agradava-me, essa relação com a própria transformação da cidade, o desaparecido de certos espaços, eram abordados com um foco dado nas personagens, que de algum modo estão a resistir aos tempos e à mudança.

Essa sua paixão pelas personagens foi algo que percebi no “4 Copas”. Mas também aborda muito bem os espaços, o “Ruínas” é um poema visual muito bonito sobre o desaparecimento das coisas, de como ficam depois de abandonadas. E de como o que fica é pouco agradável, o que é bom fica no passado. E esta Lisboa do “Ramiro” também tem essa vertente.
Sim, é essa a minha intenção. Mas não no sentido saudosista.

"Antes irritava-me bastante com certas coisas que, ao longo da minha vida, iam desaparecendo. Quando soube que espaços que eu frequentava iam fechar, alguns até aqui próximos, como Os Amigos do Minho, o Estádio, a Cervejaria Palmeira, isso custou-me. E é penoso. Mas pronto, acontece, e não quero ficar mais amargurado por causa disso."

Sim, exacto. Não comunica com essa intenção ou sentido.
Há um lado nostálgico, claro. De coisas que me interessam ou que, em dado momento na minha vida, habitei. E claro que fica alguma nostalgia. Mas a vida continua e há outras coisas. Tem a ver como eu encaro a vida, com a idade, o tempo a passar e tentar ter algum apaziguamento, comigo mesmo, sobre essa constatação, de que as coisas estão em constante mutação. Umas vezes mais rápidas, outras mais lentas, e o que puder ficar captado, interessa-me. E o facto de trabalhar no ANIM contribui para isso. Além disso, estudei História antes de estudar cinema, e há um lado arquivista de mim que ainda perdura. Antes do cinema trabalhei durante um período na Biblioteca da Ajuda e nos arquivos de uma empresa. Os primeiros documentários que fiz utilizaram material de arquivo e o facto de ainda trabalhar no ANIM dá-me a possibilidade de ter acesso a muitas imagens, muitos filmes, que a maioria das pessoas não tem. E aí encontro uma rua, ou um prédio, que só tenho ou conheço nesse filme. O mesmo acontece também na fotografia, gosto muito de arquivos fotográficos. É esse lado, tentar resguardar qualquer coisa, mesmo que isso fique próximo de uma certa fantasmagoria do espaço que já existe ou se torna numa ruína. Mas ainda tem a possibilidade de contar qualquer coisa.

E já aceita mais facilmente as mudanças à sua volta?
Sim.

Eu sinto essa mudança de uma forma muito rápida. Parece que para si já não.
Antes irritava-me bastante com certas coisas que, ao longo da minha vida, iam desaparecendo. Quando soube que espaços que eu frequentava iam fechar, alguns até aqui próximos, como Os Amigos do Minho, o Estádio, a Cervejaria Palmeira, isso custou-me. E é penoso. Mas pronto, acontece, e não quero ficar mais amargurado por causa disso. É a vida, é como as pessoas: algumas de quem eu gosto muito vão morrendo. Não posso fazer nada.

12 fotos

O Ramiro ainda se tenta adaptar. Vai a alguns sítios novos, pode não comer tapas mas ainda bebe a sua imperial. Contudo, alguns amigos dele não suportam essa mudança. Porque é que deixou esses extremos para as outras personagens?
Há um que não se adapta. Foi algo que achei piada quando estávamos a trabalhar no argumento. Depois do Telmo e da Mariana me apresentarem a primeira versão, começámos a ter reuniões e a trabalhar no “Ramiro”. Eu não assino o argumento, é deles, mas queria que para algumas personagens isso fosse extremado, como é o caso do Fernando [Ricardo Aibéo], que é gráfico, trabalha com maquinetas antigas e que ainda é mais casca grossa do que o Ramiro: diz mal dos computadores e é mais rezinga do que os outros. Mesmo o José [Américo Silva], que passa a vida enfiado na loja do Ramiro, é um tipo que está mais fora da realidade. E ele nem faz parte do circuito dos amigos que vão para o tasco ao final do dia. Há essas personagens radicais, digamos, que não são muito explorados mas percebe-se que estão mais fora da realidade do que o Ramiro. Isso era uma coisa que nos interessava, as personagens não poderiam ser todas iguais e o Ramiro não poderia estar nos extremos, para ele não ficar antipático ou anti-social.

E o Ramiro até fica mais humano quanto mais se aproxima das mulheres.
Sim. E é uma personagem que está mais à vontade com os homens.

Perto das mulheres acomoda-se.
Ele é um bocado inábil com as mulheres. Não sabe como as abraçar. Ele até é capaz de as tratar pior, exceptuando a avó [Fernanda Neves], mas até tem, eventualmente, mais carinho por elas. Com a Daniela [Madalena Almeida] e a Patrícia [Sofia Marques] ele exalta-se, não lhes quer fazer mal, mas não se consegue controlar, porque no seu inconsciente ele sabe que daquelas pessoas não virá mal nenhum. Ele pode exaltar-se um bocado e deixar aquele lado mais crispado ou inábil da sua relação com os outros.

"O facto dos próprios espaços se transformarem obriga a que as pessoas se dispersem mais. Por exemplo, compara o Frágil e o Lux. No Frágil toda a gente praticamente se conhecia, quanto mais não fosse só de vista. Era um espaço mais pequenino. O Lux é enorme, posso estar lá e não ver determinada pessoa."

Passo muito tempo em lojas de discos e já encontrei muitos Josés. Nunca tinha pensado neles no universo dos livros. É mais realista de traduzir essas personagens para esse mundo?
No plano das áreas e espaços onde as artes são difundidas, partilhadas e divulgadas, isso passa-se um bocado. Seria complicado as pessoas irem para o ANIM, mas a Cinemateca tem pessoas que vão mais cedo e que estão sempre lá, independentemente do filme. A questão do alfarrabista facilitava um pouco isso. E divertia-me essa intenção. Principalmente porque os alfarrabistas tendem a desaparecer mais facilmente do que as lojas de discos. Eu sou do tempo em que havia muitas discotecas em Lisboa, a maior parte delas pertenciam a editoras. E depois com a invasão da Virgin, das Fnacs, foram desaparecendo. Contudo, surgiram novas lojas que trabalham em dois sentidos, discos novos e muita coisa em segunda mão. Eu tenho muitos discos e vou muitas vezes comprá-los a essas lojas. Apesar de tudo, no mundo dos discos, mesmo que não exista uma proliferação, conseguiu-se criar um novo estatuto, que resiste, funciona e adapta-se aos tempos.

No campo dos alfarrabistas não vejo assim. Desapareceram muitas livrarias e os alfarrabistas também têm a tendência a desaparecer. Dão lugar a uma outra coisa, que é mais próximo de casas de antiguidades. Antigamente, na zona do Chiado, na Rua da Misericórdia, nas Escadinhas do Duque, em São Bento, havia imensos alfarrabistas. Hoje em dia quase todos desapareceram ou foram transformados em casas de vendas de livros a preços caros: primeiras edições ou edições especiais. Não vais lá para comprar um livro a dois ou três euros. E acho que a literatura, ou uma loja de livros, consegue projectar com maior facilidade o que um tipo que já foi escritor e é alfarrabista quer dizer e, explorar isso, para outras dimensões, artísticas, culturais e não só. Fica mais suave.

O humor já estava no argumento original?
Sim, sim, eu aí tive de ser um bocado poupado. A ideia original da Mariana e do Telmo é que fosse ainda mais cómico.

E agora, Ramiro, o que vai ser da tua vida? E da nossa?

Mas já é bastante.
Sim, mas eu disse que não podiam fazer o que fazem para o Miguel Gomes e para o João Nicolau. Percebo que façam para eles, são mais próximos, mas eu já sou um bocado cromo para estar aí. E eles aceitaram que ficasse um humor menos óbvio, que funcionasse de uma maneira mais subtil.

Acha que os Ramiros estão a desaparecer de Lisboa?
Não, acho que ainda existem muitos. Se calhar andam é um bocadinho mais escondidos. A própria alteração da cidade desfoca isso. Antes havia quartéis onde parava sempre um fulaninho que toda a gente sabia quem era. E havia vários, assim, uns mais exuberantes, outros normais, mas que eram habituais de um espaço. Havia um tipo na Cervejaria Trindade [conhecido como o João da Barateira] que trabalhava num alfarrabista, na Barateira, uns metros abaixo e ia lá de tarde, todos os dias, relaxar à Trindade. Ele até tem lá uma placa na parede, no salão do fundo. Eu conheci várias dessas personagens. E há umas que se tornaram conhecidas ou são conhecidas, como o Mário Cesariny ou o João César Monteiro, mas há outras que são só pessoas, que não alcançaram nenhum estatuto, mas que frequentavam um sítio, ou uma zona, e toda a gente sabia quem era aquele fulano ou sicrano. Hoje vejo muitas menos vezes isso. Esse tipo de personagens são cada vez mais difíceis de encontrar. E também, hoje em dia, as pessoas são mais extravagantes do que eram há vinte, trinta, cinquenta anos, e isso também faz com que os outros não sobressaiam tanto. E o facto dos próprios espaços se transformarem obriga a que as pessoas se dispersem mais. Por exemplo, compara o Frágil e o Lux. No Frágil toda a gente praticamente se conhecia, quanto mais não fosse só de vista. Era um espaço mais pequenino. O Lux é enorme, posso estar lá e não ver determinada pessoa.

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