O sangue no chão mancha o depoimento dos vizinhos. “É a rua mais pacífica do Barreiro”, garante a dona de um café perto da rua General Norton de Matos, a algumas dezenas de metros do prédio onde, na madrugada desta quinta-feira, Pedro Antuquia matou a mulher em frente aos dois filhos – de 6 e 14 anos. Pegou numa tesoura, esfaqueou-a e degolou-a. Depois, fugiu dali. “Corta-me o coração ver que estas duas crianças vão crescer sem mãe”, lamenta uma vizinha do casal, com a voz embargada, ainda sem acreditar no que aconteceu na última madrugada ao lado da sua casa.
A PSP conta que, às 00h05 desta quinta-feira recebeu a comunicação de um episódio de violência doméstica entre um casal do qual já havia registo, no sistema estratégico, pedidos anteriores de intervenção. Pedro assassinou uma mulher e pôs-se em fuga; quando a polícia chegou ao local do crime, após o alerta do filho mais velho, já não o encontrou ali. Viria a entregar-se na esquadra do Barreiro, duas horas mais tarde.
O rasto de sangue, que se alastra no chão, cruza o jardim onde várias pessoas se juntam para passear os cães — Jaime, Inês e Ricardo conheciam “de vista” o suspeito, ninguém esperava este desfecho. “Às vezes ouvíamos problemas [na zona], mas nada de confusão e nunca daquele casal”, relatam. Vivem todos naquela rua há muito tempo, dizem que a família se mudou para lá “há pouco mais de dez anos”, mas com a incerteza de quem tenta lembrar-se de caras bastante discretas.
“Diziam bom dia, boa tarde, o normal. Eram simpáticos. Ele andava sempre bem vestido, de fato”, continuam. A indumentária clássica era também a farda de trabalho de Pedro; um segurança que há poucos anos trocou a pacatez de um Pingo Doce do Barreiro pelas enchentes de passageiros que todos os dias passam pelo Aeroporto Humberto Delgado, do outro lado do rio.
“Ainda ontem os vi todos juntos, parecia tudo normal”
As marcas do crime são abundantes ao longo de toda a rua, estendem-se por largos metros e chegam à porta do café de Florinda. “Tenho sangue na esplanada. Já liguei ao presidente da Câmara [do Barreiro] para virem limpar”, relata. A dona do espaço está preocupada com a higiene, mas está sobretudo incrédula com homicídio.
“Eram discretos. Ele, segurança, ela, empregada doméstica. Ninguém conseguia prever isto”, confessa Florinda, que recebe de volta a anuência do único homem que àquela hora, a meio da tarde, está sentado no café. Manuel, que vive há 42 anos no Barreiro, recorda que viu o casal na noite anterior: “Estavam todos juntos, com os filhos. Com um comportamento normal.”
Enquanto varre o chão, Florinda acrescenta que, de manhã, foi visitada pela PSP, que esteve na esplanada a tirar fotografias. “Ainda tentei ver as minhas câmaras de videovigilância, mas como não podem gravar a rua não apanhei nada”, explica.
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Junto ao prédio onde o casal vivia, Olímpia assoma-se a uma janela com vista para as câmaras das televisões que se perfilam diante do edifício. A vizinha do casal fala em discussões antigas. “Tiveram um problema há uns anos. O Pedro disse-nos que ela [a vítima] apresentou queixa dele na polícia”, conta. Ao contrário da PSP, a Polícia Judiciária disse, em comunicado, que desconhecia “antecedentes de violência doméstica”. O Observador questionou a Procuradoria-Geral da República sobre situações de violência entre Pedro e Alcinda que tivessem resultado em inquéritos-crimes, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo.
Uma mulher que passa na rua apressada reclama da inação dos vizinhos; Olímpia defende que “nunca tinha visto nada, não podia agir. Nunca poderia ligar isto ao Pedro, era muito carinhoso”, insiste.
A conversa é interrompida por uma familiar do autor do homicídio. Em lágrimas, Italvina sai em defesa de Pedro: “Andei com ele ao colo, como se fosse um filho. Nunca foi mal educado, nem com os pais.” A mulher garante que, “ao contrário do que dizem por aí”, Pedro “nunca tentou fugir”. Apenas ligou para os pais para contar o que tinha acabado de acontecer. “Ele era um menino dos papás, muito apegado à família”, desabafa, entre soluços.
Os desabafos com o primo sobre as “discussões em casa”
Sem pedirmos, pôe-nos à conversa com um primo de Pedro, em Portugal há três anos, que, tal como o homicida, também veio de Cabo Verde. “Desde que cheguei cá que ele me fala em discussões em casa”, relata Emerson ao telefone. A ligação é má e a ligação acaba por cair. Tentamos ligar de novo. Uma, outra e ainda outra vez. Sem sucesso.
De Alcinda pouco nos contam as pessoas que passeiam na rua. “Ele saía mais”, dizem. Uma nova chamada do telefone de Italvina coloca-nos à conversa com Sara, que, tal como o Pedro, também era presença na igreja do Barreiro onde o filho frequenta a catequese. “Não posso dizer que era mal criado. Respeitador, bem disposto, mas, normalmente, sempre sozinho”, recorda.
Esta quinta-feira, as várias portas vermelhas da Igreja de Nossa Senhora do Rosário estavam fechadas. “Só abrem para a missa de amanhã”, elucida um homem que passa por ali.
Na frutaria que Pedro costumava frequentar estão os dois funcionários da loja, num espaço mal iluminado onde as poucas palavras em português confirmam que o homicida costumava fazer lá as compras, normalmente sozinho.
Se o tradutor para mandarim é essencial para quebrar a barreira linguística, a expressão de choque, assim que mostramos as imagens do casal, dispensa traduções. Agora, sim, percebem o motivo das perguntas. “Ele matou ela?”, pergunta um dos funcionários. A explicação aumenta a surpresa.
Na rua, Maria do Céu conversa com uma vizinha e tentam decifrar os motivos do crime. Com uma trela na mão, a mulher revela que Pedro trabalhou com o seu filho, como segurança. “Estive com ele quatro anos. Era um espetáculo. Um pai de família”, diz o filho, entretanto junto da mãe.
Outros antigos colegas lembram um homem “cumpridor”, sempre “disponível” e “rigoroso”. A vizinha à conversa com Maria do Céu conta que esteve acordada a noite toda a ver notícias de Moçambique, onde tem parte da família. “Soube [da morte no Barreiro] pelos meus familiares, que estão lá e viram nas notícias. Veja lá, eu preocupada com a segurança deles e é na minha rua que isto acontece”, desabafa.
Os filhos do agressor — que aguarda as medidas de coação — foram entregues ao cuidado de um tia.