Uma figura “singular”, cuja vida se confunde com a própria construção da democracia, que ganhou e perdeu os muitos combates que travou. Que se aliou à esquerda no combate à ditadura e que teve a esquerda como adversária na defesa da democracia. Que foi figura maior na construção do Portugal democrático e, ao mesmo tempo, um dos grandes responsáveis por um processo — a descolonização — que deixou muitas vítimas. Que governou com CDS e depois com o PSD para, mais tarde, ser um feroz adversário da direita moderada nas suas várias encarnações. Um europeísta convicto, que não deixou, até ao fim da sua vida, de denunciar aquilo que dizia ser a deriva neoliberal do projeto europeu.
Estas várias dimensões de Mário Soares foram lembradas esta sexta-feira, dia em que a Assembleia da República prestou homenagem ao antigo Presidente da República na data em que se assinalam cem anos desde o seu nascimento. Marcelo Rebelo de Sousa, o último a discursar, recordou Soares como tendo estado “nos três tempos políticos: o da ditadura, o da revolução e o do nascimento da democracia”. “Uma vida singular e irrepetível neste tempo histórico”, notou o Presidente da República.
Retratando Soares como alguém que foi “sempre livre, sempre igualitário, sempre antixenófobo, sempre tolerante, ou seja, sempre democrático”, Marcelo recuperou o período de “resistência à ditadura”; o “longo período de tensão e depois afrontamento” com Ramalho Eanes; presente na cerimónia; a vitória contra a “direita toda unida” nas presidenciais de 1986; o período de coabitação “com o protagonista emergente na mais longa e reformista governação de Portugal”, Aníbal Cavaco Silva, ausente na sessão solene; e a “proximidade” com os portugueses que lhe valeu uma reeleição por números não mais atingidos, como marcos de um percurso inigualável.
“Entre os anos 40 do século XX e a viragem do século, ele esteve e marcou tudo ou quase tudo o que foi decisivo em Portugal. Com o pluralismo próprio da democracia, ele foi singular. Portugal, que não esquece os maiores e os melhores de cada tempo. De todos os tempos, não esqueceu, não esquece, nunca esquecerá Mário Soares”, despediu-se Marcelo Rebelo de Sousa, num discurso aplaudido de pé pelas bancadas do PS e do PSD.
Antes de Marcelo Rebelo de Sousa, já José Pedro Aguiar-Branco tinha feito uma viagem pelas várias dimensões de Mário Soares, algumas delas aparentemente contraditórias. “O homem da admiração por Cunhal. E da amizade com Spínola. O protagonista do 25 de novembro. E o responsável do resgate do Partido Comunista Português. O decisor da amnistia às FP-25 de abril. E da reabilitação dos homens do MDLP. O homem da Constituição de 1976. E do apoio convicto a sucessivas revisões constitucionais. Combateu a ditadura, em nome do socialismo. E formou um Governo com o CDS, um partido não socialista, que era à época, o mais à direita no Parlamento”, foi elencando o presidente da Assembleia da República.
“Os mais distraídos podem considerar muitos dos seus gestos como ‘contradições’. Nunca foram ‘contradições’. Pelo contrário. Muito mais que o fiel da balança, Mário Soares foi um pêndulo. Deslocava-se de um lado para o outro, em função daquilo que acreditava ser o melhor para o país, em cada momento. Abdicando, quando em causa um bem maior, de dogmatismos, tanto ideológicos como partidários. Sem inflexibilidades, nem intransigências”, continuou Aguiar-Branco.
Aguiar-Branco transportou depois os ensinamentos de Soares para o presente e falou indiretamente sobre as polémicas mais recentes no Parlamento, sobre o clima de “polarização” e sobre a crispação crescente entre todos. “Como bom republicano que era, acreditava que esta sala – onde nos encontramos hoje – não era, não é, não pode ser um problema. Era, é, tem de ser a solução. Que a polarização não se resolve com proclamações de virtude, mas com política. É nossa responsabilidade preservar a capacidade de sentar todos na mesma sala para que se entendam nos seus desentendimentos”, rematou.
As luzes e sombras de Soares
À semelhança do que fez Aguiar-Branco, também António Rodrigues, pelo PSD, procurou utilizar o legado de Mário Soares para falar do presente e dos desafios que a democracia enfrenta. Num discurso com óbvias referências ao partido de André Ventura, o deputado social-democrata recordou Soares como alguém que, “a par de Francisco Sá Carneiro, lutou intransigentemente contra os radicalismos da extrema-esquerda e da extrema-direita durante o PREC”.
“Mário Soares estaria hoje na linha da frente do combate contra os radicalismos que assolam o nosso país e, em particular, contra todos aqueles que querem tornar este parlamento numa mera política do espetáculo. Por mais tarjas que se pretendam pendurar e muros que se pretendam erguer, não devemos, nunca, dar por adquirida a luta iniciada por Mário Soares após o 25 de abril: a democracia não é um dado adquirido, constrói-se todos os dias, com todos e para todos”, sublinhou António Rodrigues.
Também à direita, o CDS, que partilhou com o Soares o governo de 1978 e que depois o enfrentou na feroz disputa das eleições presidenciais de 1986 e mais tarde nas presidenciais de 1991 (Freitas do Amaral e Basílio Horta, respetivamente), recordou o antigo Presidente da República como um adversário “franco e leal” que deu um “contributo positivo à democracia“.
Apesar de tudo, João Almeida, que representou o partido nesta sessão solene, não deixou de condenar o “maior erro político” de Mário Soares: a “descolonização apressada, desumana e irresponsável” que provocou “milhares de vítimas” que “tiveram que sair de África de um momento para o outro deixando para trás uma vida que tinham construído”, ficando com o rótulo de retornados”.
O PCP, aliado que se transformaria ‘no’ grande adversário de Mário Soares na construção da democracia, pela voz de António Filipe, não lembrou isso mesmo: as “lutas comuns contra o fascismo”, os “momentos de confronto sobre os caminhos a seguir pela Revolução Portuguesa”, as “convergências e divergências que marcaram o relacionamento entre comunistas e socialistas”, sempre com “respeito mútuo”.
Exemplos disso mesmo, António Filipe falou nos momentos de maior confronto com Soares — o PREC, claro, mas também o processo de integração europeia — mas também dos combate travado ao lado de Mário Soares nas eleições presidenciais de 1986 contra as “forças reacionárias” e uma direita “ameaçadora e revanchista”. “Foi a decisão acertada”, assinalou o comunista.
O Bloco de Esquerda, herdeiro dos movimentos que Mário Soares também combateu durante o PREC, pela voz de José Soeiro defendeu que a figura do antigo Presidente da República não devia ser sacralizada, sob pena de se violentar o percurso político do socialista. Nem pai do povo, nem mito profano. “Republicano, socialista e laico, sim, como o próprio se definiu. Merece tudo menos a condescendência da despolitização e do consenso.”
“Ao longo da sua longa vida, aliou-se com a esquerda e opôs-se à esquerda, privatizou e criticou as privatizações, liberalizou e criticou o liberalismo, precarizou o trabalho e criticou a precariedade. Foi o mais comprometido obreiro da integração de Portugal na União Europeia. Censurou ferozmente, nos últimos anos da sua vida, a ‘desorientação neoliberal da União Europeia’. Foi contraditório e frontal nas lutas que escolheu”, assinalou Soeiro.
“Todas as grandes personalidades criaram luzes, todas as grandes personalidades têm sombras. Todas têm facetas contraditórias“, tentou sintetizar Rodrigo Saraiva, que discursou em nome da Iniciativa Liberal. “A minha geração, que nasceu e cresceu já depois do derrube da ditadura, aprendeu também com ele (e por ele) que a liberdade não tem donos e que a democracia não pode ter receio de enfrentar os seus inimigos.”
Apesar dos elogios, o liberal não deixou de recordar que foi com Mário Soares que aconteceu a primeira intervenção do FMI em Portugal, que foi Soares quem ajudou a conduzir o processo de descolonização e foi também Soares quem se viu envolvido na polémica de Macau. “Há sempre sombras nos percursos dos grandes homens”, nota.
Paulo Muacho, do Livre, destacaria o sonho de Soares de “uma Europa unida, democrática e plural” e o profundo respeito pela democracia do socialista. “Soares nunca aceitaria a passividade perante o perigo, nunca aceitaria o enxovalhar das instituições, não encolheria os ombros ao ataque a portugueses de minorias étnicas e não aceitaria que se usasse os estrangeiros como botes expiatórios.”
A deputada única do PAN, Inês Sousa Real, destacou “o importante contributo que Mário Soares deu para a defesa do ambiente e de um combate sério ao aquecimento global”. “Um legado progressista, humanista mas também ambientalista para cumprir”, pediu Sousa Real.
Pedro Nuno exalta Soares, Ventura ataca “legado negro”
Naturalmente, Pedro Nuno Santos fez o maior elogio a Mário Soares, recordando que o fundador e primeiro secretário-geral do PS “esteve sempre do lado certo” da história e recusando a ideia de que o antigo Presidente da República é uma figura marcada por insanáveis “contradições”.
“Se, aos olhos de muitos, entrou em contradição ao longo do tempo, a minha convicção é a oposta. É minha convicção que o mundo mudou, nestas décadas, muito mais do que Mário Soares e que as inflexões no seu posicionamento resultam mais dos efeitos do pêndulo da História do que de incoerências no seu pensamento”, foi anotando Pedro Nuno Santos.
Para o líder socialista, Soares esteve do lado certo no combate contra a ditadura, na construção do Portugal democrático, na adesão do país à então CEE, na fundação do SNS, na revisão constitucional de 1982, mas também na crítica à terceira via socialista, na denúncia da radicalização da direita, no combate à austeridade da troika e no apelo à união das esquerdas.
“A vida política de Soares vale como um todo. E, para a avaliar, não podemos escolher o período que mais nos convém ou mais nos agrada, de acordo com a conjuntura do momento ou a posição que queremos defender”, avisou Pedro Nuno Santos, num recado que parecia mais dirigido para dentro de casa do que para fora.
“Quando recordam esse intenso percurso, muitos procuram depurar o verdadeiro Soares, aquele que, no seu entender, a história deve guardar como referência”, disse, considerando que tentam distinguir “o verdadeiro Soares moderado do Soares radical. Não existe contradição entre o Soares moderado e o Soares radical”, rematou o líder socialista.
André Ventura acabaria por ser a voz a mais dissonante de toda a sessão solene. Mesmo reconhecendo o papel “incontornável” de Mário Soares no 25 de Novembro, o líder do Chega fez uma intervenção particularmente dura, retratando o antigo Presidente da República como sendo “cúmplice de um sistema de donos disto tudo que se manteve à sua sombra”. “À sombra de Soares muitos enriqueceram, muitos ficaram com dinheiro do Estado sem nunca o devolver, e [que se criou] uma cultura de impunidade política”, atirou Ventura.
Além de recordar o episódio em que Mário Soares visitou José Sócrates no Estabelecimento Prisonal de Évora, num “ataque claro à Justiça portuguesa”, Ventura falou depois do processo de descolonização “desastrosa e desumana” que Soares, enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros, liderou entre 1974 e 75, atirando”os brancos aos tubarões” e abandonado as “colónias”. “Nenhuma cerimónia evocativa poderia esquecer um legado profundamente negro. Mário Soares talvez tenha querido cumprir Portugal, mas falhou”, rematou o líder do Chega.