O percurso profissional de Anabela Figueiredo sempre rimou com a palavra sucesso. Engenheira informática, esteve à frente do Departamento de Desenvolvimento e Ativação de Estratégia do Novo Banco e foi responsável pelo planeamento estratégico do HSBC de Londres, depois de já ter passado pela seguradora Açoreana e pela Deloitte.
Foi por isso que rejeitou o diagnóstico que lhe deram no hospital quando um dia sentiu todo o corpo a parar. “Os meus dedos dos pés encolheram, as minhas mãos ficaram presas, a minha língua ficou presa. A única coisa de que me lembrava naquele momento era que estava a ter um AVC.”
Nesta entrevista inserida na série “Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental“, uma iniciativa do Observador e da FLAD agora incluída no projeto Mental, a gestora conta que percorreu meia Lisboa à procura de um cardiologista que lhe dissesse que tinha um problema físico, porque, na forma como pensava, era a única coisa que fazia sentido: “O ataque de pânico não tinha nada a ver comigo. Não encaixava com a imagem que eu tinha de mim própria”, explica.
A doença, porém, foi evoluindo e, a seguir aos ataques de pânico, começou a desenvolver fobias graves, que a afetaram durante anos. Deixou de andar de carro, de comboio ou de avião. Passou a ter medo de ficar sozinha com os filhos, de ir a centros comerciais ou a jantares.
Agora, na conversa com o Observador, gravada no hotel Pestana Palace, em Lisboa, Anabela Figueiredo conta como finalmente aceitou consultar-se com uma psicóloga que lhe ensinou a aceitar os ataques de pânico. Aprendeu, por exemplo, que o pior que se pode fazer “é tentar controlá-los ou evitá-los”.
Sempre escondeu a doença da família e dos amigos: primeiro pelo preconceito e depois pela vergonha. Mas um dia, perante um colega a passar por uma situação semelhante, começou a perceber o poder da sua história: “Isto afinal pode servir para algo positivo”. Foi aí que começou a divulgar a sua experiência em fóruns. Agora lidera a MindAlliance Portugal, uma organização que pretende promover a saúde mental no local de trabalho.
[Veja aqui a entrevista completa a Anabela Figueiredo]
Lembra-se do momento em que percebeu que não estava bem?
Lembro-me do primeiro momento em que deixei de estar bem. Foi quando estávamos a fazer os exames para o empréstimo à habitação. Estava a fazer a prova de esforço, estava a correr e a tentar aumentar o ritmo cardíaco para ver se estava tudo bem. E a caminho de casa não conseguia desacelerar o rimo cardíaco, que continuava a bombar, a bater. Tentava respirar e acalmar. De repente, vou para avisar o meu marido que não me estava a sentir bem quando me dei conta de que não conseguia falar. Tinha a língua enrolada, os braços e as mãos completamente enrolados e aí comecei a entrar um bocadinho em pânico. Quando o meu marido se deu conta, fomos a correr para as urgências.
Isso foi há quanto tempo?
Faz mais ou menos 16 anos.
Há 16 anos, numa viagem de carro. Fisicamente não estava bem. Os sintomas eram “apenas” físicos?
Os sintomas eram só físicos. O meu coração não parava de bater e, de repente, congelei. Os meus dedos dos pés encolheram, as minhas mãos ficaram presas, a minha língua ficou presa. A única coisa de que me lembrava naquele momento era que estava a ter um AVC.
Vai a correr para o hospital e o que é que lhe dizem?
Vêm a correr, levam-me, fazem-me todos os exames e mais algum e depois dizem que eu tive um ataque de pânico.
Como é que reagiu, sabendo que teve um ataque de pânico?
Estava convencida que eles se tinham enganado, porque eu não podia ter um ataque de pânico.
Porquê?
Por muitos motivos. Primeiro, os sintomas eram todos físicos: era o coração, o corpo deixou de funcionar. Segundo, o ataque de pânico não tinha nada a ver comigo. Não podia ter uma doença mental, não encaixava com a imagem que eu tinha de mim própria.
A imagem que tinha de si própria não concebia que pudesse estar com um problema emocional, mental?
De forma alguma.
Então, perante esse diagnóstico, o que é que fez?
Decidi que tinha de ter um problema cardíaco, porque os sintomas eram cardíacos. Tinha uma aceleração muito grande, uma taquicardia registada em “n” exames, sentia arritmias. Então percorri Lisboa à procura do cardiologista que ia conseguir descobrir qual era a minha doença cardíaca. Porque eu tinha de ter uma doença cardíaca.
Insistiu que teria uma doença cardíaca. Não aceitou o diagnóstico?
Insisti que tinha de ser uma doença cardíaca. Alguma coisa não estava a funcionar bem. Passei muito tempo na internet a analisar, a ver o que podia acontecer, os sinais do coração. Podia até ser no cérebro, uma ligação que pudesse estar a comandar de forma errada o coração. Mas sim, continuei a insistir. Passei muitos meses a correr e a procurar e a pesquisar os melhores cardiologistas. A fazer muitos exames, andava sempre ligada, a fazer os exames de 24, 48 horas. Fiz o Holter [um eletrocardiograma prolongado no tempo] durante uma semana.
E esses exames e os cardiologistas, os vários que consultou, encontraram-lhe algum problema cardíaco ou o diagnóstico continuou a ser de ataques de pânico?
Eles não conseguiam justificar e dizer por que é que eu estava a ter aquelas taquicardias. Mas mais do que um, de facto, passaram-me um conjunto de medicamentos para desacelerar a taquicardia e as arritmias que eu tinha. Por outro lado, quando comecei a tomar os medicamentos, ajudavam-me quando tinha as crises de ataques de pânico, mas, quando estava normal, não me sentia bem. Davam-me umas quedas de tensão muito agudas, sentia-me bastante em baixo, sem energia. Portanto, continuei à procura de um cardiologista que me medicasse ou me resolvesse o problema que eu tinha. Até encontrar um.
Até encontrar um que lhe apresentou outro diagnóstico. Mas, antes disso, nesses meses que andou em consultas, foi tendo outros episódios semelhantes?
Tive muitos episódios. Diria que na altura — não me recordo exatamente, mas diria que duas, três vezes por semana — era normal ir às urgências porque era a única de forma de passar.
Duas, três vezes por semana tinha esses sintomas da língua travada, os membros bloqueados?
Não, isso deixei de ter. Não era tão grave. Tinha era o ataque de pânico, os sintomas de taquicardia e um medo avassalador de “vou morrer”, de pensar “o coração não pode estar a bater tão depressa, isto é impossível estar a bater assim tão depressa”. Portanto, ia a correr para as urgências.
E nas urgências continuava a ouvir dizer que estava com um ataque de pânico.
Entretanto já me iam conhecendo, já olhavam para mim e diziam que era um ataque de pânico, “vamos recomendar aqui uma psicóloga ou um psicólogo”. E durante algum tempo não aceitei, até que tive um ataque de pânico qualquer e pensei: “Bom, se calhar é melhor investigar também esta pista, em paralelo”. E aí comecei à procura de psicólogos.
Portanto, foi sempre num crescendo. A sua vida mudou muito com dois a três ataques de pânico por semana. Sentiu limitações na sua vida pessoal e profissional?
Tive muitas limitações. Comecei a ter medo dos ataques de pânico, comecei a ter medo dos ataques de pânico em qualquer sítio. Deixei de andar de carro, deixei de andar de comboio. Andar de avião era muito difícil. Mesmo só com bastante medicação. Deixei de ir a centros comerciais. Não me sentia bem quando estava com muitas pessoas e tinha medo também. Deixei de andar em jantares, portanto deixei de aceitar jantares com amigos, porque tinha medo de ter um ataque de pânico num jantar e, especialmente, num restaurante. Deixei de receber pessoas. Nós gostávamos imenso de receber pessoas em casa e fazer festas e passava a minha vida a dizer “ai, hoje não, estou cansada; hoje não, não me dá jeito; hoje tenho de dormir; hoje…”
Aqui, portanto, já com alguma vergonha do que estava sentir?
Acho que na altura ainda não era vergonha. Na altura tinha mesmo medo de ter um ataque de pânico. Se calhar com alguma vergonha, com alguma exposição. Tinha medo de ter um ataque de pânico no meio de um centro comercial. Acho que era uma mistura. Acho que também era um bocadinho de medo. Como ainda estava convencida que era um problema cardíaco, tinha medo de me dar um ataque e de não me acudirem a tempo e eu ficar ali deitada no meio de um centro comercial ou de um restaurante. Lembro-me de que quando viajávamos, uma vez fomos a Trás-os-Montes ver a família do meu marido e uns amigos. Antes de sair de Lisboa fui verificar onde eram os hospitais e como é que se ia para as Urgências. Uma vez fizemos uma viagem com várias paragens e eu ia vendo onde eram os hospitais perto, no percurso. Tinha medo de alguma coisa, de o coração parar, de morrer, de ter um ataque cardíaco, não sei.
Muito preocupada e com a vida social afetada. Profissionalmente, deixou de trabalhar?
Não. A única coisa que nunca deixei de fazer foi de trabalhar.
Tem alguma explicação para isso?
Na altura não tinha explicação nenhuma nem pensei muito sobre o assunto. Só recentemente, quando comecei a pensar no papel do trabalho com a doença mental e vice-versa, é que de facto me questionei. Porque o normal é que, quando há uma doença mental, as pessoas páram e vão para casa, não é? Eu comecei a refletir e a pensar: “Bom, porque é que eu não parei e não fui para casa?” Por várias coisas: primeiro porque, para mim, o trabalho era um refúgio. Quando estava a trabalhar e estava concentrada, não tinha ataques de pânico.
Nunca aconteceram enquanto trabalhava?
Se me aparecessem, era à hora de almoço. Quando estava focada, os ataques de pânico não chegavam. Para mim, estava sempre a trabalhar, e na altura trabalhava bastante. Acho que esta é a primeira coisa. A segunda: estava a trabalhar, provavelmente, com uma das melhores chefes que alguma vez tive e num ambiente cultural muito positivo. Portanto, não era um sítio onde ia ter mais stress. Tinha stress pela exigência. Tinha stress pela responsabilidade. Tinha stress pela quantidade de trabalho. Mas essas três coisas só me permitiam estar mais focada. O ambiente, o modelo de liderança e o modelo cultural eram muito positivos.
Tinha um bebé na altura?
Tinha um bebé. E dois anos depois tinha dois.
Ainda não totalmente diagnosticada?
Não, não. Diagnosticada, sim. Quando tive a Sofia já tinha diagnóstico. Acho que fui diagnosticada mais ou menos seis meses depois do primeiro ataque de pânico.
Quando é que aceita que está perante episódios de ataques de pânico?
Depois de ter falado pela primeira vez com a psicóloga com quem fiquei.
Como é que chega à psicóloga? Estamos na fase — aqui do ponto de vista mais clínico — em que procura cardiologistas, em que experimenta medicação que não lhe serve. Quando é que passa para a fase em que começa a encontrar um caminho e uma explicação para o que está a acontecer?
Tive alguns médicos que recomendaram. Tinha uma gastroenterologista com quem me dava muito bem e fui lá pedir ajuda: “Não estou bem, arranje-me um cardiologista bom!” E ela disse-me: “Ok, eu arranjo, mas também vou arranjar aqui um psicólogo”. E, na verdade, foi algo também curioso, porque fiz várias “entrevistas”. Lembro-me de entrar num consultório e não sentir que aquela pessoa me conseguia ajudar. Entretanto comecei a procurar no Google, na internet, procurei uma psicóloga, achei que a forma como ela se apresentava era um bocadinho diferente, então marquei a primeira consulta. Tive a primeira consulta com ela e adorei. Acho que ela tem uma personalidade perfeita, não anda ali com paninhos quentes. Ralha comigo de vez em quando. Ainda ralha comigo de vez em quando!
Adorou porquê? O que é que ela lhe trouxe que os outros profissionais não conseguiram?
Ela conseguiu trazer a explicação científica. Sou engenheira, sou muito matemática, sou muito racional, portanto preciso que me expliquem o que é que está a acontecer. E ela conseguiu explicar perfeitamente o que estava a acontecer. Até cientificamente. O que eram os sintomas cardíacos, por que é que eu me sentia assim, quais eram os sintomas físicos, porque é que não me sentia doente mentalmente, mas como é que aquilo tudo funcionava. E depois ela começou a dar-me alguns truques. Retirou-me completamente a medicação. Na altura, disse que, se eu continuasse a ser medicada, deixava de me tratar. E começou a ensinar-me a conviver com os ataques de pânico.
O que é que sentiu quando teve de assumir para si própria que, afinal, não estava com uma doença física, mas sim com uma doença mental? Foi um processo difícil de aceitar?
Foi um processo muito difícil e acho que não cheguei a ter muita vergonha porque só houve duas pessoas que sabiam: o meu marido e a minha melhor amiga.
Não contou a mais ninguém?
Não. Não contei aos meus pais, não contei à minha família, não contei aos meus amigos, não contei a ninguém.
Porquê?
Porque tinha vergonha, porque não encaixava com a imagem que eu tinha de mim própria.
Tinha vergonha, portanto, tinha o preconceito todo em relação à doença mental.
Todo. Tinha todo o preconceito. E sabia a minha melhor amiga porque o meu marido viajava na altura e, como tinha medo de ficar em casa sozinha com os meus filhos, precisava que alguém viesse passar a noite comigo.
Porque senão nem à melhor amiga teria contado?
Se calhar não lhe conseguia esconder, porque ela é de facto muito próxima, mas se calhar tentava.
Fez uma caminhada muito longa. No trabalho, nunca ninguém soube que estava com este problema?
Não. Recentemente fui ter com a minha chefe e perguntei-lhe: “Olha, por curiosidade, conheceste-me antes disto e durante. Até me conheceste durante o período mais difícil, antes de eu aprender a controlar os ataques de pânico. Notaste alguma diferença? Falta de produtividade? Não era boa profissional? O que é que sentiste?” E ela respondeu-me: “Nunca me passou pela cabeça. Não imaginava, não sentia nada no teu trabalho nem a qualidade do trabalho. Nada”. E depois ficou zangada comigo por eu não lhe ter contado.
Mas isto era porque no trabalho disfarçava, ou porque efetivamente, no trabalho, não sentia estas crises?
As crises não chegavam quando eu estava a trabalhar. Não tinha nenhum ataque de pânico.
E sempre foi assim?
Estou concentrada, estou focada e, quanto mais exigente, quanto mais trabalho, quanto maior pressão até para entregar, mais focada eu estava e os sintomas não apareciam.
Isso é quase contra-intuitivo, não é?
Acho que é contra-intuitivo com a ideia generalizada que achamos que é a verdade. Acho que não falamos com um número suficiente de pessoas para descobrir exatamente qual é a resposta certa para cada pessoa. Acho que cada pessoa tem necessidades diferentes para conseguir resolver o seu problema. Acho que todas as pessoas estão em contextos de trabalho diferentes, com culturas organizacionais e com lideranças diferentes, portanto acho que é uma questão de contexto. Para mim, quanto mais focada estava, melhor estava.
Fale-me um pouco do que é que mudou com essa psicóloga, com essa terapia. O processo, já percebemos, foi acabar com a medicação para problemas cardíacos.
Para problemas cardíacos e para doença mental, portanto os ansiolíticos também acabaram.
Acabou a medicação?
Sim, a minha psicóloga não me tratava se eu tomasse qualquer medicação para a doença mental.
Então, o que fez de diferente?
Ela quando vir isto vai-se chatear comigo, porque não me vou lembrar dos nomes de todas as terapias. Lembro-me de que fizemos CBT, Cognitive Behavioral Therapy. Isso foi uma das primeiras coisas que começámos a fazer. Fizemos um outro tratamento que é MDR (Medical Device Regulation). Eu não sei explicar muito bem cientificamente como é que funciona, mas lembro-me que ela punha aqui uns coisos, uns sensores, na cabeça e aquilo dava ali uns sinaizinhos e ela ia-me fazendo perguntas e ia-me desfazendo os nós ou as memórias que estavam guardadas. Não lhe sei explicar cientificamente e confiei nela. O que ela tinha de fazer era o que se fazia. Começou a ensinar-me a aceitar o ataque de pânico. O pior que podemos fazer é tentar controlá-lo ou evitá-lo. Portanto, é deixá-lo passar e aprender a deixar passar. Quanto mais aprendemos a conviver com o ataque de pânico, mais deixamos de ter medo do próximo. E começamos reduzir o número de vezes que os ataques aparecem. Depois, ela começou a insistir naquilo que hoje já sabemos que é mais do que normal: exercício físico, dormir bem, alimentação, distrair com coisas positivas, não ser só trabalho e sobreviver aos ataques de pânico. E começou a ser bastante insistente para que começasse a introduzir coisas diferentes na minha vida.
Coisas diferentes como mais atividade física?
Mais atividade física, mais lazer, ler. Fizemos muita terapia do sono. Na altura, dormia muito mal. Portanto, aquilo que ela chamava higiene do sono. Aprendi a deixar de ter televisão no quarto, não ficar na cama se acordamos a meio da noite, levantarmo-nos, ler um livro, fazer uma atividade qualquer. Portanto, ter bastante disciplina no dormir e bastante disciplina no exercício e na componente da alimentação. E ela sempre a insistir para trazer outras atividades para o dia normal.
Começou a sentir logo efeitos práticos dessa mudança de estilo de vida?
Sim, sim. Mas levou tempo. O que comecei a sentir foi menos medo dos ataques de pânico aparecerem. E isso foi gradual. Ia ter com ela uma vez por semana.
Tinha esses tratamentos concretos em consultório e depois tinha uma prescrição para o resto da sua vida. Como é que se dominam os ataques de pânico? Como é que se deixa de ter medo desses ataques?
Não se domina. Acho que é exatamente o contrário. Aprendemos a aceitá-los e a não ter medo deles. É pensar “ok, o ataque de pânico está a chegar, estou a sentir o coração com uma taquicardia, estou a sentir os sintomas todos esquisitos” e começar a tentar perceber que não vou morrer disto, “isto não é um problema cardíaco, do meu coração, não tem problema nenhum, isto é um ataque de pânico”. Isto demora normalmente, no máximo, 20 minutos. Parece que é uma eternidade, mas demora, no máximo, 20 minutos. E é lembrar-me durante esse tempo todo “ok, eu não vou morrer, isto não tem problema nenhum no coração, o coração não vai parar… já só faltam 15 minutos!” (risos)
Portanto, a tratar por tu os ataques de pânico?
Quase!
Quanto tempo depois é que dirá que começou a sentir de facto um maior controlo sobre a sua vida, depois desse diagnóstico?
O que comecei a ter não era controlo, mas aceitação dos ataques de pânico. O que fez com que eles começassem a diminuir significativamente. Deixei de ter de ir ao hospital para resolver os ataques de pânico e aprendi a agir onde estivesse: no carro, a dar um passeio. Dizia à família: “Estou a ter. Stop. Preciso aqui de uma meia hora. Isto já passa”. Isto foi, sei lá, se calhar seis meses, um ano depois, em que comecei a conseguir. O que é aconteceu entretanto? Houve aqui um outro tema. Acho que é o efeito colateral. Por causa dos ataques de pânico, desenvolvi um conjunto de fobias. Deixei de andar de carro, ou melhor, deixei de conduzir. Tinha medo de conduzir e ter um ataque de pânico e depois tinha um acidente. Deixei de andar de comboio, a evitar viagens. Eram só aquelas mesmo obrigatórias. E isso é que demorou tempo a desfazer. Demorou bastante tempo. Ainda me lembro da primeira vez em que fiz uma viagem de carro. Daqui a Coimbra, sozinha, lembro-me de que foi um evento da empresa onde estava a trabalhar na altura, deve ter sido por volta de 2011, 2012. De 2006 a 2012, ainda não fazia uma viagem para Coimbra sozinha de carro. Ainda tivemos muito tempo em que a minha vida não era normal.
Isso foi o mais difícil de ultrapassar, a fobias que criou à volta?
Porque as fobias ultrapassam-se com a exposição [àquilo que as provoca]. Depois tive a sorte de me ter inscrito num MBA em Londres, então tinha de viajar para Londres semana sim, semana não. Foi fantástico porque foram 14 meses de viagens de avião semana sim, semana não. Os primeiros foram absolutamente horríveis. O meu marido ainda foi comigo nas primeiras viagens. Depois comecei a aprender a ir sozinha. Horríveis! Entretanto, a exposição fez com que tenha desfeito a fobia de andar de avião.
Portanto, acredita que, em situações difíceis, é importante esforçar-se para as ultrapassar, para passar por elas.
Não gosto de dar aqui uma receita generalista, porque cada pessoa é diferente, mas daquilo que aprendi foi que as fobias ultrapassam-se com a exposição. Eu tinha um medo horrível de andar de avião e, no meu último emprego, quando vivi em Londres, já fazia entre 6 a 8 viagens de mais de 12 horas. Dormia com os solavancos, já não me fazia confusão nenhuma.
Quando é que resolve contar ou quando é que as pessoas do seu círculo ficaram a saber que passou por um processo destes?
A maioria das pessoas do meu círculo ficaram a saber quando publiquei uma entrevista na Forbes.
Porque antes não tinha contado a ninguém?
Não, não tinha contado. Comecei a contar a história em Londres. Tinha, e tenho, um amigo e um colega que trabalhava no banco em Londres, que me entra uma manhã em lágrimas. Pergunto-lhe o que é que se passa e ele diz: “Não vais perceber, este fim de semana a minha filha tentou suicidar-se pela segunda vez no mesmo mês”. Eu disse-lhe: “Eu percebo. Vamos lá tomar um café. Eu percebo pelo que estás a passar”. “Não percebes, não”, e começou a contar-me a história. E eu dizia: “Percebo sim, que eu também tive uma coisinha”.
Uma “coisinha”?
Uma “coisinha”, uma pequena perturbação. E ele a dizer “não percebes”. Então comecei a contar um bocadinho mais. E comecei a contar um bocadinho mais. E percebi que a única forma em que conseguia criar uma ligação e mostrar que percebia era contando tudo. E então contei tudo. Os momentos mais difíceis da história. E ele então disse-me: “Então afinal percebes!”. Depois perguntou-me como foi desde então, como é que consegui viver depois do processo de saída e a normalização. E disse-me: “Ok, acabaste de me dar esperança. Conheço a vida que fazes, passas a vida andar de avião, andas em Hong Kong, andas nos Estados Unidos, na América do Sul, um trabalho super exigente. A vida corre-te bem aqui no trabalho, aqui no Banco. Se este é o outcome depois da crise que passaste, vamos ter esperança sobre a nossa filha”. Ele foi para casa, contou à esposa. No dia seguinte, tinha um e-mail da esposa a agradecer por ter partilhado a história. E a dizer que eu passei a ser a cara de esperança para a família. E eu achei “ok, isto afinal pode servir para algo positivo e não só para os anos negativos que tive na minha vida”. E comecei a contar. Entretanto, envolvi-me num conjunto de organizações que promoviam a saúde mental no local de trabalho. Começámos a perceber que as histórias é que ajudavam a reduzir o estigma e a normalizar a conversa. E então comecei a contar em “n” foruns. Convidaram-me para fazer a tal entrevista na Forbes e foi na altura que eu mandei o link para a minha família, inclusivé, a que está na maioria nos Estados Unidos.
Como é que a família reagiu?
“Uau.” (risos) Reagiu de forma normalíssima.
Portanto, o estigma estava na sua cabeça.
Está na cabeça, mas ainda está na sociedade. Aquilo que às vezes não percebemos ou temos medo é que a nossa família nos julgue e acho que a família está muito mais aberta a aceitar-nos com as imperfeições todas que temos do que, às vezes, nós julgamos.
Como é que está hoje em dia?
Estou ótima. Não tenho um ataque de pânico pelo menos desde 2014.
Mas continua a contar o tempo que passa desde o último ataque de pânico? Ainda é importante perceber que já passou?
Só sei dizer que foi em 2014. Quando me tentam lembrar da última vez que tive, não me lembro. Lembro-me da última vez em que pensava que ia ter um ataque de pânico, estava a fazer umas mudanças, estava com o coração acelerado e pensei “oh, não, já há 4, 5, 6 meses que não tinha, pensava que me tinha livrado disto e lá vem aqui outro ataque de pânico”. E sei que me sentei durante uns minutos e ele não chegou. Esse é o único momento de que me lembro. E lembro-me de quando foi porque me lembro que coincidiu com a minha mudança para Londres. Porque senão nem sequer me tinha lembrado. Não registei. Comecei a viver a minha vida normal.
As estratégias que aprendeu — o estilo de vida com mais do que o trabalho, com momentos de descanso, com preocupação com a atividade física e com a alimentação — mantêm-se? É uma regra para a vida?
Isso mantenho. Não sou tão disciplinada como o Cristiano Ronaldo. Também tenho os meus jantares, também bebo o meu vinho, também há semanas em que não me apetece ir ao ginásio e há semanas em que também não me porto bem com o sono, mas tenho consciência de “ok, já chega, já estamos há uma semana a dormir mal, vamos lá organizar aqui um bocadinho e voltar aqui a introduzir as técnicas de higiene do sono”, porque sei que não se deve estar muito tempo sem dormir bem. Ou a fazer viagens no trabalho, por exemplo. Quando estava a fazer viagens, tinha noção de que eu própria não aguentava mais do que uma viagem para Hong Kong num mês. Quando se está lá, está-se em jet lag, não se dorme. Quando me pediam, eu dizia: “no mês que vem”. Portanto, começamos a autoregular-nos e a criar alguma disciplina na nossa vida. Por isso, não sou assim tão disciplinada, mas sei quais são os meus limites.
E por isso dirá que hoje é uma pessoa diferente do que era antes de 2006?
Completamente! Acho que em 2006 ainda era muito workaholic. Também vivia muito o presentismo, que é muito uma moda e faz muito parte do trabalho corporativo. O que vale é que está a desvanecer um bocadinho aos poucos.
Está?
Estou com esperança de que sim. Já estou a conhecer líderes suficientes para me dar esperança de que se está a reduzir. E não tinha a preocupação de pensar que já são demasiados dias a dormir mal, tenho de fazer alguma coisa. Monitorizar há quanto tempo é que não faço exercício. E eu agora faço, garanto que arranjo forma de ir e de fazer alguma coisa.
Portanto é como se já estivesse passado. É uma história do passado. Considera-se uma espécie de uma sobrevivente?
Eu considero-me uma sobrevivente e uma sortuda. Lembro-me de que, quando comecei a trabalhar com os psicólogos, a minha pergunta era:”Quanto tempo é que isto vai demorar a resolver para eu voltar ao meu normal?”. A maioria dos psicólogos dizia-me: “Bom, quando se tem um ataque de pânico pela primeira vez normalmente depois fica para a vida, vão aparecendo para o resto da vida. E eu: “Não, isso aí não dá”. E não sei se vou ter amanhã, mas pelo menos desde 2014 que não tenho. E acho que é raro encontrar pessoas que não voltam a ter ataques de pânico durante tanto tempo. Portanto, sobrevivente e sortuda.
Conseguiu perceber porque é que lhe apareceu o primeiro ataque de pânico e quando é que apareceram os outros? Consegue agora encontrar um contexto?
Sim, isso demorou algum tempo. Daquilo de que me recordo, a primeira fase do tratamento era aprender a conviver quando o ataque de pânico aparecia e não ter medo do ataque de pânico. A segunda fase foi introduzir de facto estas melhorias na vida: o exercício, o sono, algum lazer. A terceira, lembro-me, foi pelo menos dois, três anos depois, que na altura ela me disse: “Vamos agora tentar fazer aqui um trabalho para tentar perceber o que é que podia estar na origem” e na altura disse-me que nem sempre se descobre. Mais uma vez, ela vai-se zangar comigo porque eu não me lembro de qual foi a técnica que ela implementou, mas era algo regressivo em que andava para trás na memória, tentar encontrar qual era o nó dessa memória que estava alojado, para desbloquear essa memória. Não me lembro exatamente como, mas sei que fizemos a ligação entre o parto do meu primeiro filho e uma cirurgia que fiz quando tinha seis anos. Pelo vistos, essa cirurgia que eu não achava que era traumática, era traumática e tive aquilo a que se chama um post delay traumatic experience, que para mim manifestou-se através dos ataques de pânico.
Saber a origem dos ataques de pânico ajudou-a no processo de cura ou nem por isso?
Acho que ajudou completamente.
Fazia-lhe sentido?
Fazia sentido e tinha uma explicação. “Ok, então vamos lá resolver o trauma. Já que sabemos qual é, vamos lá desfazer aqui o trauma a ver se resolvemos isso de vez.” É muito mais fácil sabermos a origem. A origem consegue-se tratar. Quando não se sabe, é muito mais difícil.
E agora frequenta o psicólogo como frequenta o dentista?
Ao longo do tempo tenho estado anos sem falar com ela. Mesmo quando estava em Londres, volta e meia pedia uma consulta. Não porque estava com doença mental, mas aquilo que comecei a aprender é que o psicólogo é como um PT. Agora voltei ao ginásio e estou com um PT para me ensinar a fazer tudo muito direitinho. Eu vejo o psicólogo quase como o PT. Se estava numa coisa qualquer no trabalho que me estava a chatear ou que me estava a tirar noites de sono, tinha uma consulta com ela e ela conseguia mostrar-me a outra perspetiva: “Não é obrigatoriamente este o cenário, se calhar há outras alternativas que estão aqui em cima da mesa, tenta olhar para a situação de outra forma”. E ajudava para que não estivesse ali a ruminar. Aquilo que, muitas vezes, fazemos que é termos uma chatice qualquer, há um problema na vida pessoal, estamos a ruminar, a acordar a meio da noite a pensar sobre o tema, e aquilo que aprendi foi que, quando estou muito tempo a ruminar, o melhor é sentar-me um bocadinho com a psicóloga, que isto resolve-se de vez. E resolve. Portanto, havia um antes, em que raramente era preciso, não me lembrava e achava que resolvia. E outras vezes pensava: “Bom, estou com tempo, apetece-me falar com ela e ver se me ajuda a ultrapassar”. Ultimamente, tenho frequentado mais. Por uma razão muito simples: é que estou a fazer isto como forma preventiva (ela até se parte a rir comigo). Fiz agora uma interrupção de carreira. Sempre trabalhei. Comecei a trabalhar aos 13 anos e fiz agora uma interrupção. E pensei: “Não sei como é que isto me vai afetar”. Vou deixar de ter um pilar para mim, que é fundamental. Antes de eu descobrir lá para a frente, que é algo que vai ter um impacto na minha forma de pensar e nos meus dias, vamos começar a marcar algumas consultas com a psicóloga de forma preventiva. Depois logo se vê.
Então agora antecipa eventuais problemas. É um novo respeito pela saúde mental?
É ter um personal trainer da mente. Quando temos de fazer uma maratona ou fazer um conjunto de coisas, há um treino maior que fazemos para preparar o corpo. Acho que também podemos olhar para a nossa exigência emocional e mental da mesma forma. se sabemos que vamos passar por um período muito exigente. Para mim, sabia que ia ser muito exigente deixar de trabalhar. Sou workaholic, sempre trabalhei, achei que não queria sequer correr riscos. Ainda me lembro de quando marquei uma série de consultas e ela pergunta-me: “Então? o que é que se passa?”. E eu: “Nada, estou ótima! Está só a acontecer isto e estou com medo que isto tenha um impacto com que eu não consiga lidar bem, portanto marquei uma série de sessões para tratamento preventivo”.
Para quem rejeitava poder ter um problema mental, agora tem a maior abertura perante este tipo de doença.
É o PT que temos no ginásio, é o dentista aonde temos de ir. Para mim, faz parte da saúde holística.
Agradecimentos: Pestana Hotel Group
“Labirinto – Conversas sobre Saúde Mental” é uma série de entrevistas do Observador em parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento que agora faz parte do Mental, a secção do Observador dedicada a temas da Saúde Mental. Em cada conversa, os convidados — figuras públicas de várias áreas, da política ao entretenimento — fazem um relato pessoal e detalhado da forma como lidaram ou lidam ainda com problemas de saúde mental — os sintomas, os tratamentos, as recaídas e a recuperação — num esforço para combater o estigma associado a este tipo de doenças. Pode ler aqui as entrevistas anteriores:
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- Hugo van der Ding e o transtorno bipolar. “Passei anos a pensar: como é que eu seria se não fosse bipolar? Isto sou eu. E não trocava por nada”
- Maria Botelho Moniz e o luto. “O tempo não cura absolutamente nada. É um mito”
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- Anna Westerlund e o luto. “A maior dor na perda do Pedro foi a solidão, sentir-me completamente sozinha sem estar sozinha”
- Liliana Campos e a depressão. “Pensava que era uma coisa para pessoas fracas”
- Vítor Emanuel e a depressão. “Fui trabalhar com o meu pai a conduzir e a minha mãe atrás a dar-me a mão”
- José Carlos Pereira e a adição. “Ter ficado rotulado foi uma das coisas mais difíceis de ultrapassar”
- Quimbé e a depressão. “Choras e não sabes porque é que choras, estás numa dor constante”
- João Vieira de Almeida e a depressão. “Tive a certeza de que tanto fazia estar vivo como não estar”
- Marta Rebelo e a depressão. “Senti-me lá em baixo no inferno muitas vezes”
- Pedro Barroso e a adição. “Acabava de gravar a novela e ia buscar para consumir, direto”
- Gustavo Carona e os efeitos da dor crónica. “Os médicos têm a cultura de durões, dar parte fraca não é muito aceite”
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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