São 9h30 em ponto num sábado de manhã. Um homem de mais de metro e oitenta caminha na minha direção balançando-se com a jovialidade de um miúdo que se prepara para um fim de semana de diversão com os amigos (em vez disso, desdobra-se em presenças na Feira do Livro e outros compromissos, incluindo entrevistas num fim de semana a esta hora).
Apresentamo-nos e instalamo-nos na sala do hotel no centro de Lisboa onde está hospedado. Michael Cunningham pede um segundo cappuccino e é ele que começa a conduzir a conversa, enquanto coloca as pernas a baloiçar por cima do braço da cadeira onde está sentado. Veste calças e polo de manga curta bege, mocassins e óculos de massa, é um homem imponente que faz parecer minúscula a cadeira onde está sentado. É assim que se mantém quase sempre durante mais de uma hora.
Conta-me que conhece bem Lisboa, que já esteve inúmeras vezes na cidade e viveu dois meses em Cascais enquanto fazia uma residência. O que o traz de novo a Portugal é a publicação de Dia (editado pela Gradiva), o seu oitavo romance. Passada em plena pandemia, mas sem nunca lhe fazer referência, a história desenrola-se no dia 5 de abril em três anos seguidos (2019, 2020 e 2021) e foca-se no casal Dan e Isabel, nos filhos deles e no irmão de Isabel, Robbie. Fechados sem terem escolha, acabam sufocados pela situação, as dificuldades que cada um atravessa e os sentimentos oprimidos, afastando-se cada vez mais uns dos outros.
Há quase dez anos que Michael Cunningham não publicava um livro, embora todos os dias continue a fazer o trajeto da sua casa em Brooklyn para o estúdio onde trabalha, em Greenwich Village, Nova Iorque. Na última década não esteve parado. Aos 71 anos, dá aulas e escreve para televisão, porque há fases em que precisa de trabalhar em equipa e conviver com pessoas, diz.
Dia poderá ser transformado em filme — apesar de as negociações ainda serem secretas —, tal como aconteceu com As Horas, nomeado para oito Óscares, incluindo o de Melhor Atriz conquistado por Nicole Kidman. A adaptação para cinema serviu para catapultar ainda mais o romance com o mesmo nome, de 1998, que deu a Michael Cunningham o prestigiado Prémio Pulitzer de Ficção. Contrariamente às expetativas, o autor ficou completamente bloqueado no rescaldo da distinção e durante meses não conseguiu escrever uma linha.
Mais de duas décadas depois, já fez as pazes com o facto de muitos leitores só o conhecerem através de As Horas e consegue ver isso como um elogio. Na história, uma das personagens principais é Virginia Woolf, a escritora que o próprio descobriu por acaso aos 16 anos e lhe abriu as portas para a literatura. Ainda assim, nessa altura o seu sonho era ser rock star — tinha uma guitarra, uma banda “e calças de cabedal”.
Atualmente, faz peças em prata para descontrair — o seu nome profissional de joalheiro foi copiado de um filme dos anos 70 com Jane Fonda — e todos os dias pensa em mudar-se para o campo. Porém, também todos os dias percebe que seria incapaz de se afastar do caos, das luzes e das pessoas de Nova Iorque, onde vive há mais de 30 anos.
Em Lisboa, o bairro preferido é Alfama. Digo-lhe que, sendo assim, não pode perder os Santos Populares e tento resumir-lhe o que são arraiais. Pergunta-me qual é a minha zona favorita da cidade e é aqui que lhe peço para começar a gravar. São 9h45, já bebemos café, passamos das apresentações de circunstância para uma conversa sobre escolhas de vida, viagens, manjericos e sardinha assada e ainda não começamos realmente a trabalhar. Ou talvez o tenhamos feito assim que nos cumprimentamos e as coisas se confundam, sendo impossíveis de separar quando, no mesmo momento, parece a coisa mais natural do mundo falar de um Pulitzer e de música pimba.
A minha parte favorita da cidade? É difícil escolher. Gosto dos bairros mais típicos, mas também muito do Monsanto, tem floresta, verde, pássaros. Já vivi no centro, mas não consigo ter só isso agora.
Há muito para dizer sobre árvores e pássaros.
Agora vivo nos subúrbios da cidade, tenho isso à porta, mas também tenho o metro. Não consigo afastar-me mais do que isso porque há o teatro, os restaurantes, etc.
É exatamente por isso que não consigo sair de Brooklyn.
Veio a Lisboa em trabalho. Também escreve em viagem?
Estou entre livros, mas também não traria nada para escrever. Hoje [sábado, 1 de junho] tenho algum tempo livre, portanto vou aproveitar para subir até Alfama, quero ver a festa, como me disse. Já não escrevo fora do estúdio.
Estava a escrever outro livro antes de Dia. Retomou-o?
Estou a tentar decidir se volto ou não. Estava bastante embrenhado nele.
É uma saga de família?
Sim, mas talvez tenha de o reformular um pouco. Um livro demora uma eternidade a escrever, move-se à velocidade de um glaciar. Quando nos afastamos demasiado, pode começar a parecer uma coisa longínqua que costumávamos escrever.
E da qual já não sente saudades?
Exato, e com a qual já não sentimos conexão. Portanto, ainda não tenho a certeza se o retomo, talvez seja apenas um meio livro.
Está a trabalhar em algo novo?
Sim, num livro de não ficção. Ensino escrita e literatura há algum tempo e estou a tentar escrever um livro sobre isso, mas que não seja didático, que não seja com exercícios mas sim sobre a experiência de falar com estudantes sobre escrever e como funciona de forma diferente para toda a gente.
Porque não é uma ciência exata, como a matemática, por exemplo?
É isso, e também é preciso encontrar algum equilíbrio porque não queremos dizer “faz o que quiseres”. Queremos guiar de alguma forma, mas sem mudar a visão fundamental e a individualidade de cada um.
É um equilíbrio difícil?
Sim, é o que tenho tentado escrever. Sobre isso e sobre o que tenho aprendido no processo criativo de trabalhar com escritores muito jovens.
Dá aulas há muitos anos. O que é que os alunos lhe dão a si?
Quase me levam de volta ao início e isso é bom para mim. Tenho turmas muito pequenas, sou seletivo e gosto de ter a oportunidade de passar o que aprendi, como se fosse a passagem de testemunho. Gosto de sentir que sou parte de um processo.
Porque ser escritor é muito solitário?
Sim, completamente, e eu sinto falta do contacto humano porque não sou uma pessoa assim tão solitária, o que nos leva de volta à nossa conversa inicial. É um dos motivos pelos quais continuo em Nova Iorque. Depois de um dia sozinho, não tenho propriamente vontade de ir dar um passeio no bosque, quero sair para a cidade. Portanto, se trocasse Nova Iorque, seria por uma cidade mais pequena e meiga, mas ainda assim uma cidade. Preciso de estar exposto a outras pessoas e uma das coisas que adoro em Nova Iorque é que não podemos estar dez minutos na rua e pensar que somos um membro banal da espécie humana.
Porquê?
Há um pequeno parque perto do meu estúdio, o Washington Square Park. Há mães a empurrar carrinhos de bebé, velhotes sentados em bancos, miúdos a andar de skate e pessoas loucas. A minha pessoa preferida não está lá todos os dias, mas faz uns vestidos gigantes com jornais e lixo, tem perucas na cabeça e simplesmente anda ali a pavonear-se. Fiz contacto visual com ele há uns tempos, ele olhou para mim como quem diz “é uma opinião” [imita um gesto exagerado de dedo no ar]. Gosto disso, de estar exposto a tantos humanos diferentes. Nova Iorque tem uma identidade própria. Não me deixe alongar muito, mas há um clube, uma espécie de clube de sexo, com jovens mulheres e homens vestidos com roupas renascentistas esfarrapadas e batas rasgadas e uma vez por semana damos-lhes cinco dólares, eles levam-nos para uma sala do fundo, empurram-nos contra a parede e recitam um poema. É de doidos, não se encontra isso em mais nenhuma cidade americana.
Pode ter aí um ponto de partida para mais um livro. Por falar nisso, desviámo-nos um pouco do propósito. Sobre Dia: escreveu-o na pandemia, sobre uma família a atravessar a pandemia, sem saber como se desenrolaria a pandemia. Foi isso?
A história desenvolveu-se nessa altura mas não comecei realmente a escrever até termos uma vacina, até começar a parecer que a maioria de nós, se não todos, poderia sobreviver. Um livro é algo que projetamos para o futuro, desde o momento em que começamos a escrever até alguém ler passa muito tempo, não tem vida imediata como uma canção, por exemplo. E naquele primeiro ano da pandemia, parecia muito possível que não houvesse realmente um futuro.
Conseguia trabalhar sequer? Imagino que tenha deixado de ir para o seu estúdio.
Tive de ficar em casa e não fui nada produtivo. Conheço pessoas que escreveram um livro, aprenderam espanhol, fizeram uma data de coisas, mas eu não fui uma dessas pessoas. Não somos exatamente iguais, mas não somos assim tão diferentes do que éramos antes. Aqui estamos nós, back to business. Não pensava no assunto na altura, mas talvez seja por isso que é importante para alguns de nós escrever sobre isso. Os romancistas e outros escritores têm a tarefa de registar como foi vivermos seja lá o que tenha sido aquilo que vivemos.
Não precisou de referir especificamente a pandemia ou a Covid-19 no texto.
Não queria subestimar os efeitos da pandemia, mas também queria manter o foco nos seres humanos. Não queria propriamente escrever um romance sobre a Covid-19, mas senti que não conseguia não escrever um livro sobre a Covid-19.
Estas personagens são forçadas a ficar juntas, mas isso ainda as afasta mais. Qual foi a personagem que deu início à história?
Estranhamente foram Chess e Garth. Todas as minhas personagens têm um bocadinho de pessoas que conheço. Neste caso, tenho uma amiga lésbica que é mãe solteira e pediu a um amigo homem que fosse dador de esperma para ela poder ter um filho. O que ficou combinado foi que a criança o conheceria, mas ele não seria como um pai. Eventualmente ele mudou de ideias e quis estar mais envolvido. Ela confessou-me que, apesar de não se interessar por homens, à medida que o filho foi crescendo e ficando cada vez mais parecido com o pai, ela começou a sentir uma conexão com ele porque era igual ao filho. Resumindo, estas personagens desviaram-se um bocadinho do foco central mas foi assim que começou, e depois as outras começaram a aparecer. Não sei se é assim com outros escritores, mas na maioria dos meus livros a ideia original acaba por não ser o centro do livro.
Então deixa-se levar pela história? Ou sabe como é que ela vai acabar logo à partida?
Sinto que, se souber exatamente para onde vai, vou lá chegar e as personagens acabam por ser empregadas da história que têm como função levar-nos ao destino. Isso não funciona para mim, preciso que seja mais surpreendente.
A maioria dos escritores trabalha em casa, mas o Michael tem um estúdio para onde vai todos os dias. Precisa de ligar e desligar esse botão para não ser consumido por personagens e ideias a toda a hora?
É exatamente isso. Preciso de me levantar, vestir e ir para o meu trabalho. Não quero estar sentado à mesa da minha cozinha, às três da tarde, em roupa interior e a escrever. Sinto-me demasiado invisível no mundo assim. A minha vida pessoal e a profissional têm limites definidos. Podia trabalhar fora do estúdio, mas não tenho de o fazer. Fecho a porta, são quatro da tarde e estou livre. Sobretudo agora que estou mais velho, não é bom para mim escrever a toda a hora. Quando era novo era uma daquelas pessoas irritantes sempre a escrever coisas em guardanapos. Era obcecado, mas depois percebi que, se vivesse constantemente à procura de material, não via realmente o mundo. Percebi que tinha de ligar e desligar o interruptor e consigo fazer isso no estúdio. Costumava viver lá.
Era o seu apartamento?
Sim, é um ótimo estúdio, mas era um péssimo apartamento, com seis lanços de escadas. Escuro, com janelas pequenas e vista para as condutas de ar condicionado, é um típico apartamento nova-iorquino. Entramos para a cozinha, onde a banheira é também o lava-loiça. Eu e o Kenny, o meu marido, eventualmente começámos a ter um pouco mais de dinheiro e comprámos um apartamento, mas mantive aquele como estúdio.
Foi o seu primeiro apartamento em Nova Iorque?
Sim, foi, mudou muito. Se estivéssemos dispostos a subir seis andares até um pequeno e escuro apartamento, a livrarmo-nos dos ratos e dos percevejos, era um sítio barato. E agora nada é barato, o que está a tornar Nova Iorque menos interessante. Há muita gente do mundo financeiro na rua, mas já não há assim tantos artistas de 25 anos. Vivem em Queens e nunca os vemos.
A narrativa de Dia passa-se em Brooklyn. O livro está dividido em três partes e cada uma delas acontece num só dia. Não é mais difícil condensar todas as emoções e o que as personagens estão a passar num único dia?
É complicado, tento manter a narrativa o mais concentrada possível, mas na minha cabeça paira uma história que tem o dobro do tamanho. Não quis escrever um livro tão longo, portanto há muitas emoções implícitas. Obviamente que isto não é válido para toda a gente, mas quando estávamos todos presos em casas pequenas e apartamentos, não podíamos dar-nos ao luxo de fazer cenas dramáticas. Não podíamos discutir, bater com a porta e ir dar uma volta para espairecer. Foi por isso que mantive algumas emoções sob a superfície, pareceu-me apropriado para esta narrativa específica.
Tem uma personagem, ou uma entidade, chamada Wolfe. Há alguma relação com Virginia Woolf, uma escritora que o influenciou muito?
Sei que vai parecer louco, mas não me apercebi disso. É engraçado, escrevemos estas coisas e as pessoas acham que a relação é óbvia, e claramente há uma conexão no nosso subconsciente, mas não pensei realmente nisso. Só percebi quando me perguntaram, como está a fazer agora.
Há pouco disse que na sua cabeça tinha um livro com o dobro do tamanho. Quando entrega um livro está satisfeito com o resultado ou continua a pensar em coisas que podia ter acrescentado ou feito de maneira diferente?
Tenho de chegar ao ponto em que sinto que é a melhor versão que podia escrever. Se não, não conseguiria libertar-me. Imagino sempre um livro melhor do que aquele que consigo escrever, talvez um livro melhor do que qualquer pessoa conseguisse escrever. Seria vasto e usaria linguagem de formas novas, seria sobre o mundo inteiro. Não podendo ter isso, temos de fazer uma espécie de adaptação para a realidade. Se não pensasse que vale o tempo das pessoas, não publicaria, mas um livro está sempre rodeado de todas as outras versões que não chegaram a acontecer.
É sempre muito modesto quando fala dos seus livros.
Nunca acabo a pensar “ufa, mais um trabalho de génio”. É a minha natureza, não estou a ser falsamente modesto, mas acho que talvez seja um elemento de auto-preservação. Se achasse que estava perante uma ideia brilhante, isso ia levar-me por um caminho que não seria bom. Assim, acho que me mantém a trabalhar e a pensar que o próximo será sempre melhor.
Esteve sete anos sem publicar antes de A Rainha da Neve e agora cerca de uma década até Dia. Porquê? Achava que não tinha nada suficientemente bom?
De certa forma, não podemos só querer escrever um romance, temos de querer escrever “aquele” romance, mas por vezes não temos nada concreto em mente para escrever. Mas não é como se tivesse estado parado, escrevi para televisão, que adoro, por ser tão viva e imediata. Há períodos em que até prefiro estar a trabalhar com outras pessoas, em vez de estar sozinho.
Dia também é bastante visual, consigo imaginar a adaptação para filme. Também lhe acontece ter essa perceção quando está a escrever algumas cenas?
Não, faço os possíveis para não misturar as coisas. Especialmente depois de terem feito o filme de As Horas, pensei “isto é ótimo mas não posso pensar num livro como um meio para atingir um fim, ou seja, o filme”. Neste caso, tem havido algumas conversas para um filme, sim. Jurei segredo acerca disso, portanto não posso dizer mais nada.
Gosta de se envolver na adaptação ou, assim que termina o livro, o seu trabalho está feito?
Não quero lá voltar. Contei a história o melhor que podia e, se é para ser contada de novo de forma diferente, deve ser outro escritor que a verá de outra forma. O David Hare, dramaturgo inglês que adaptou As Horas para o cinema, teve algumas conversas comigo no início. Disse-me que não sabia bem como adaptar uma certa cena. Disse-lhe para simplesmente deixar a cena de fora. Dei por mim a encorajá-lo a ser criativamente mais livre. Não quero ver uma adaptação fiel, quero ver a visão de outra pessoa.
Pode também acontecer o oposto. Olhar para uma adaptação e pensar “não, não era nada disto”.
Mas, se for mau, já não é meu. Só aceitei vender os direitos de As Horas porque seria o David Hare a escrever o argumento. Não ia vender só por vender, teria de ser a alguém que sabia que ia respeitar o trabalho feito até ali.
A Virginia Woolf é uma das personagens principais desse livro e foi, de facto, essa escritora que o fez descobrir a literatura. Mrs. Dalloway foi um tropeção do acaso?
Tinha uns 16 anos.
Foi assim que percebeu que queria ser escritor?
Não, o que fez foi transformar-me num leitor. Antes, só queria rock’n’roll. Depois, descobri a Virginia Woolf.
O que fazia?
Vivia em Los Angeles. As pessoas por vezes são duras com LA, mas é verdade que não é uma cidade de leitores. Quando li Mrs. Dalloway, não percebi realmente o que se estava a passar, mas nunca tinha visto linguagem assim, frases organizadas daquela maneira, e isso abriu-me as portas para o mundo dos livros. Pensei: “Talvez leia mais um livro”. E depois li outro, e mais outro. Mas só na faculdade é que percebi que talvez também pudesse escrever.
Qual era o plano quando tinha 17 ou 18 anos?
Ser rock star. Não tinha qualquer talento musical, mas tinha umas calças de cabedal.
Tinha uma banda?
Sim, tocava guitarra, mas mal, era péssimo. Quando cheguei aos 18 e ao momento de ir para a faculdade, vi que se calhar o rock’n’roll não era o caminho.
Qual era?
Primeiro, quis ser médico, fazer algo útil, mas não tinha talento. Rock star? Também não. Foi nessa altura que comecei a escrever, mas o interessante é que não achava que fosse especialmente bom. Porém, foi a primeira coisa cujo processo me pareceu interessante. Para mim é algo misterioso mas o certo é que a ideia de simular a vida com palavras fascinou-me. Não sei porquê mas, como seres humanos, somos estranhamente atraídos para aquela coisa que queremos realmente. Acho que nem vale a pena tentarmos explicar porque não vamos conseguir.
Quando começou a escrever não achava que fosse realmente bom. Qual foi a primeira coisa que escreveu e percebeu que tinha realmente qualidade?
Não foi na faculdade, tudo o que escrevi aí foi porcaria. Depois viajei durante um par de anos e fui fazer uma pós-graduação na Writers Workshop, na Universidade do Iowa, porque pensava que podia melhorar. Nessa altura, na América, minimalismo era basicamente a única coisa que se podia fazer na escrita, como o Raymond Carver, e eu não era esse tipo de escritor. Então, li um livro de contos da Jayne Anne Philips, que eram muito elaboradores, e pensei “afinal, podemos fazer isto”. Outro livro que me impactou foi Housekeeping, de Marilynne Robinson. Foram importantes porque me fizeram perceber que não tinha de me conter, não tinha de retirar toda a parte divertida só para fazer de um texto algo interessante que os outros queriam ler. Então, escrevi finalmente algo que achei bom e, mais importante do que isso, que só eu podia ter escrito. Havia uma forma de colocar frases e linguagem que só podia ser minha, não estava a tentar imitar ninguém, não estava a tentar agradar a ninguém. Senti-me bem com isso e o texto acabou publicado.
Qual era o título?
Cleaving [clivagem], que é uma das poucas palavras em inglês que significa uma coisa e o seu oposto. “Cleave” tanto serve para algo que se junta, como algo que se separa. Tive um começo bastante precoce. Essa história foi publicada pelo Atlantic Monthly e depois outra história apareceu na Paris Review. Pensei: “Aí vou eu”. E depois não consegui vender mais nada durante anos.
Como é que isso mudou?
Nessa altura pensei que se calhar tinha tido sorte de principiante, mas que não era para mim, não estava a levar-me a lado nenhum. Tinha começado um livro, Uma Casa no Fim do Mundo [1990], que demorei anos a escrever. Enviei um dos primeiros capítulos para a revista The New Yorker, que já tinha rejeitado para aí dez histórias minhas, e aí aconteceu algo que atribuo a sorte e que mudou tudo. A The New Yorker era editada há uma eternidade por William Shawn, que era um ótimo homem, mas muito conservador na ficção que publicava. Ele foi despedido e substituído por Robert Gottlieb. Portanto, quem lia a The New Yorker estava muito empolgado para ver que tipo de mudanças haveria. Ele acabou a comprar o meu capítulo que, entre outras qualidades envolvidas, fala de um miúdo drogado de nove anos, mortes violentas e sexo no cemitério. Comprou e publicou. Na revista disseram-me que com William Shawn a história nunca teria sido publicada porque era demasiado indecorosa para ele. Na altura, aquela não foi só mais uma história publicada pela The New Yorker, foi uma grande mudança e por isso acabou por atrair alguma atenção. De repente, comecei a receber chamadas de editoras. Não só me perguntavam se eu tinha um livro, como queriam comprar mesmo sem ler.
É preciso sempre o fator sorte?
Acho que sim, mas também digo sempre aos meus alunos que têm de persistir tempo suficiente para que essa sorte apareça. Temos de estar no meio do campo para que o trovão nos atinja. Tenho tido alguns estudantes muito talentosos, mas o que acontece é que depois desistem demasiado cedo. Eu percebo, há contas para pagar, os pais começam a questionar porque te mandaram para aquela faculdade cara, mas tenho pena que desistam demasiado cedo. Ao mesmo tempo, se desistem, talvez seja porque não queriam realmente aquilo.
Teve outros empregos antes de conseguir viver da escrita. Trabalhou na Carnegie Foundation, foi barman, deve ter-se cruzado com ótimas personagens aí.
Sim, nem imagina. Trabalhei em bares durante anos, a misturar bebidas para as pessoas. Nessa altura escrevia sozinho no meu apartamentozinho triste, mas era ótimo. Às 16 horas estava na hora de ir, diretamente para o caos da humanidade. Até que chegou o dia em que pensei: “Acho que não consigo fazer nem mais uma margarita”. Foi aí que arranjei um emprego dito normal na Carnegie Foundation. Gostava, era OK, mas gostava mais de ser barman. Entretanto, fazia alguns trabalhos como jornalista freelancer e a Vanity Fair perguntou-me se queria ir ao Brasil fazer uma peça sobre miúdos que viviam nas ruas e estavam a desaparecer. Eu teria adorado, mas tive de recusar por causa do trabalho na Carnegie Foundation. Então decidi despedir-me.
Ter essa segurança impedia-o de ter tempo para o que realmente gostava?
Exatamente. Mas tive de viver com muito cuidado, porque ser jornalista freelancer não pagava assim tão bem. Chegava ao final da semana e não tinha dinheiro. Tinha lá uma lata de pêssegos perdida e pensava “vamos lá ver se isto ainda está bom”, porque era isso que tinha para comer. Entretanto, recebi uma bolsa da National Endowment for the Arts, que ajudou, e gradualmente comecei a ganhar mais dinheiro. Mas houve um momento em que pensei: “Porque raio é que me despedi? Não houve nada de prático nisto”.
Ganhou o Prémio Pulitzer com As Horas [1998], o seu quarto romance. É seguramente um dos prémios que os escritores mais ambicionam mas, quando se ganha um Pulitzer, ele pode ser também uma maldição?
Oh, fiquei muito deprimido depois disso. Pensei: “É sempre a descer a partir daqui? As pessoas vão esperar que eu escreva o mesmo livro vezes e vezes sem conta”? Não sabia o que fazer mas, passado um bocado, percebi que tinha de continuar a escrever apesar desta escuridão, porque seria parvo parar quando finalmente tinha tido sucesso. Então recomecei.
Quando as pessoas dizem que adoram o que faço, referem-se a As Horas. Por um lado reviro um pouco os olhos porque escrevi outros livros. Mas, por outro lado, faço por me recordar que as pessoas ainda querem falar desse livro mais de 25 anos depois. Portanto, tenho de me calar e ficar agradecido por isso. Também há um aspeto de libertação por ter tido um livro que teve tanto sucesso. Por um lado, queremos repetir o sucesso; por outro, já o tivemos. É nosso, já temos o nosso Óscar. Podemos ganhar um segundo Óscar, mas há quem nunca receba nenhum.
Teria aproveitado mais o sucesso do Pulitzer se o tivesse conquistado mais tarde na sua carreira?
É engraçado que pergunte isso. A Jayne Anne Philips ganhou o Pulitzer este ano [com Night Watch] e eu conheço-a. Liguei-lhe, dei-lhe os parabéns e disse-lhe: “Espero que isto não te aconteça, mas, se te sentires um pouco deprimida, é natural. E não te sintas na obrigação de fazer coisas para as mil pessoas que te vão telefonar mesmo não tendo falado contigo na última década”. Ela respondeu: “Percebo o que estás a dizer, mas tenho mais de 70 anos, acho que não me vai assustar como te assustou aos 40”. Portanto, acho que talvez seja mais fácil de incorporar quando o mundo finalmente reconhece o nosso talento, em vez de ser cedo na carreira e ficarmos a pensar que estamos acabados.
O que escreveu depois do Pulitzer foi Dias Exemplares [2005], o livro que publicou a seguir, ou algo que nunca chegou aos leitores?
Estive bloqueado durante pelo menos seis meses. Depois voltei ao trabalho e escrevi Dias Exemplares. Previsivelmente, porque não era As Horas, recebeu críticas boas e más.
Lê as críticas?
Não, nada. Percebi que as críticas más eram deprimentes e as boas também não ajudavam assim tanto, portanto preferi trabalhar sem ter nenhuma outra voz na minha cabeça a não ser a minha. Ouvir “és ótimo” ou “és uma porcaria” não ajudava.
Uma escritora que entrevistei há pouco dizia que, além dos livros que estava a escrever e que mandava aos editores, tinha sempre um projeto secreto que não mostrava a ninguém, exatamente para não ser condicionada e poder sentir-se livre a escrever. Sente o mesmo?
Escreve e não publica?
Sim, pode acontecer ficarem na estante.
Isso é muito interessante. Acho que não conseguiria escrever tanto. Trabalhar num livro já é difícil, trabalhar vários em simultâneo acho que não conseguiria, mas percebo o sentimento de ter algo em que ninguém mexa. Posso dizer que tenho uma necessidade parecida, mas com ourivesaria, aprendi a trabalhar prata. Queria fazer algo que não viesse com bagagem ou pressão de nenhum lado.
É recente?
Não, comecei há 15 ou 20 anos. Tinha uma amiga que era ferreira metalúrgica a tempo inteiro e que me ensinou. Consigo fazer pequenas peças.
Apenas para si ou vende?
Há uma história engraçada aí. Comecei a fazer apenas para mim e para dar a amigos, pequenos talismãs e coisas assim. Tenho uma amiga que tem uma loja em Provincetown, uma pequena cidade de Cape Cod, e que começou a vender as peças lá. Eu não queria esse dinheiro, ia para instituições, se não acho que lixaria tudo. Certo dia, um executivo da Barneys, que era uma loja enorme em Nova Iorque que entretanto fechou, viu as peças e quis começar a vendê-las na Barneys.
Para quem queria fazer só peças caseiras, acabou a vendê-las numa das superfícies comerciais mais importantes da cidade.
Sim, foi isso, mas com um pseudónimo. Não queria vender as peças com o meu nome.
Qual era o pseudónimo?
O meu nome de joalheiro era Bree Daniels, por causa do Klute [filme de Alan J. Pakula, de 1971]. Teve o primeiro papel mais sério da Jane Fonda, ela até ganhou um Óscar. Ela era uma prostituta chamada Bree Daniels. E pronto, adotei esse nome, não sei bem explicar porquê.
Nos agradecimentos de Dia menciona a sua professora da primária, achei curioso. Porque é que quis agradecer-lhe?
Talvez me tenha entusiasmado nos agradecimentos. Espero escrever mais um livro e outro e outro, mas a verdade é que já não sou novo e senti que era o momento certo para reconhecer uma data de pessoas que fizeram parte da visão global, não apenas o meu editor, o meu agente, essas pessoas.
Quis ir ao início de tudo?
Foi um pouco isso, sim, onde as primeiras sementes foram plantadas. Ela foi uma ótima professora e nunca saberia como é que as coisas teriam corrido se não tivesse tido aquela professora. Acho que não o faria de novo, mas senti necessidade de mencionar pessoas que ainda não tinha mencionado antes.