Quando Durão Barroso reservou a última parte da sua intervenção para fazer um elogio rasgado a Aníbal Cavaco Silva estava dado o mote para mais uma tarde de rassemblent da direita. Reunidos alguns dos pesos pesados da direita, apesar da notada ausência de Pedro Passos Coelho, José Manuel Durão Barroso aproveitou a apresentação do livro do antigo Presidente da República para dar uma alfinetada a todos aqueles que, à esquerda, não vão conseguindo esconder a urticária que Cavaco Silva ainda vai causando sempre que decide intervir no espaço público.
“Por que razão alguns comentadores querem decretar a morte cívica de Cavaco Silva?”, começou por desafiar Barroso. “Pode haver muitas razões, pode ser inveja. [Como conselho], continue a incomodar todos aqueles que ficam nervosos ainda antes de o ouvirem”, brindou o ex-presidente da Comissão Europeia. Cavaco Silva, tal como Pedro Passos Coelho, continua a ser o único que, à direita, vai despertando tamanhos humores, pareceu sugeriu Barroso. Não estará muito longe da verdade.
De resto, a nova obra de Cavaco Silva, O Primeiro-Ministro e a Arte de Governar, tem sido interpretada como um compêndio de recados a António Costa. Também não será um exercício arriscado, nem estará muito longe da verdade, assumir que sim. Basta ver que, meses depois de ter aconselhado António Costa a apresentar a demissão, o antigo Presidente da República chega a escrever neste livro agora publicado que um primeiro-ministro incapaz de ter uma “visão de futuro“, de cumprir promessas ou de impor a sua autoridade moral e política nunca será bom para o país. O elefante na sala do Grémio Literário, em Lisboa, era, e todos o sabiam, António Costa.
Seja como for, Aníbal Cavaco Silva esforçou-se por tentar convencer os muitos convidados e curiosos que encheram a pequeníssima sala que esta obra o persegue há muitas décadas e que o livro estava pronto há vários meses, não refletindo os mais recentes desenvolvimentos da política portuguesa. Na plateia, muitos dos que assistiam à apresentação do antigo Presidente da República sorriram — apesar de Cavaco ser o dono da festa, acredita quem quer, naturalmente.
Ao longo de uma intervenção em que repetiu muitos das lições que escreveu ao longo do seu livro, Cavaco Silva começou por rejeitando qualquer visão maquiavélica e utilitária do poder, argumentando que um primeiro-ministro que siga políticas “em que predominem os benefícios de curto prazo e de fácil perceção para os eleitores”, atirando os “custos dessas políticas” para outros horizontes, pode preservar o poder; mas nunca será útil ao país. “É um primeiro-ministro que procura iludir os eleitores e fazer com que estes não se apercebam das mentiras“, anotou Cavaco.
Voltando a 20 de maio de 2023. Lisboa, Encontro Nacional dos Autarcas Social-Democratas, o tal momento em que Cavaco Silva aconselhou Costa a demitir-se. Afirmou o antigo Presidente da República: “O Governo socialista é especialista na mentira e na propaganda política. Ainda se pode acreditar em quem passa os dias a mentir? Não surpreende que o Governo socialista governe o país desta maneira. Considera que o importante é ter uma boa central de propaganda. O objetivo é desinformar, condicionar os jornalistas, iludir e anestesiar os cidadãos”. Mais uma vez, não será muito arriscado assumir que estas renovados recados de Cavaco Silva, agora inscritos em livro, são críticas apontadas diretamente a Costa.
O antigo Presidente da República não ficaria por aqui. Se António Costa está a ser pressionado, interna e externamente, a fazer uma grande remodelação governativa que relance o Executivo e que devolva o foco à resolução de problemas, Aníbal Cavaco Silva apresentou a sua apresentação para eleger como tarefa mais exigente de um primeiro-ministro “a realização com sucesso de uma verdadeira remodelação ministerial”. “Exige sangue frio, exige sigilo, exige preparação e execução meticulosas”, sublinhou. Nas entrelinhas: Costa não será capaz. Recuperando as palavras de Barroso, a “morte cívica” de Cavaco Silva é manifestamente exagerada.
Aliás, regressando a Barroso, o antigo primeiro-ministro e ex-presidente da Comissão Europeia, aqui no papel de mestre de cerimónias, desdobrou-se em elogios ao antigo Presidente da República, não escondendo a “grande admiração” por tudo o que Aníbal Cavaco Silva fez pelo país. Assumindo-se incapaz de ser um “analista objetivo”, Barroso não deixou de lamentar que exista, no país, uma certa esquerda “intolerante” e “preconceituosa” que nunca compreendeu a popularidade de Cavaco Silva. “O regime em que vivemos sucedeu a um regime autoritário de direita. Por isso, há uma esquerda que se considera dona do regime. É, de facto, pena. O nosso país precisa de respirar com os dois pulmões, o pulmão da direita e da esquerda”, anotou o antigo primeiro-ministro e ex-presidente da Comissão Europeia.
Numa sala cheia de muitas as personalidades da direita portuguesa que fizeram questão de se juntar à apresentação da obra — como Luís Montenegro, Carlos Moedas, Luís Marques Mendes, Manuela Ferreira Leite, Eduardo Catroga ou Assunção Cristas, por exemplo — acabou por faltar Pedro Passos Coelho, que coabitou com Aníbal Cavaco Silva durante o delicado período da troika, a crise do “irrevogável” e os primeiros dias da formação da ‘geringonça’.
Voltando a Barroso, o antigo presidente da Comissão Europeu defendeu que “um dos principais legados que Cavaco Silva deixou ao país foi o sentido de Estado“. Para Barroso, foi a “autoridade e credibilidade” que Cavaco impôs ao longo dos seus dois mandatos como primeiro-ministro — e depois como o Presidente da República — que permitiram alimentar a “cultura do fazedor” em torno do antigo líder social-democrata.
Ainda recentemente, e à boleia de mais um episódio tenso com Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa assumiu-se como um “fazedor” por oposição a todos aqueles que se dedicam ao comentariado. Terá sido seguramente uma coincidência que Barroso tenha usado a mesmíssima expressão para elogiar o legado de Cavaco Silva. Ou não, ou não.