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À frente do campo de futebol da Fonte Boa, em Peniche, há um caminho de terra que serve de atalho a Maria do Carmo. Os mais de 70 anos já pedem que evite dar voltas para chegar ao supermercado e, por isso, faz aquele percurso praticamente todos os dias. Quando caminha, do lado esquerdo só há terra, silvas, madeiras e panos que já não têm utilidade. E os olhos já estão tão habituados a ver sempre o mesmo cenário que a atenção se dirige para outros pensamentos. O último fim de semana não foi exceção. Passou por ali e entre as pessoas que encontrou estava Beatriz Pereira, de 16 anos. “Andava a passear o cão”, conta Maria do Carmo. “Nunca, nunca reparei que ali estava uma cova e que a Lara estava ali enterrada. Nós estávamos aqui ao lado e não demos por nada”, acrescentou.
No dia em que Maria do Carmo viu Beatriz a passear o bulldog francês, de pelo negro, o mistério do desaparecimento da sua irmã, Lara Pereira, de 19 anos, ainda não tinha sido desvendado pela Polícia Judiciária. “Ela também não era de grandes palavras, era uma miúda muito tranquila, muito amável, sempre caladinha no seu canto”, diz outra das vizinhas, que preferiu não ser identificada, sobre Beatriz, que está agora detida e será presente a tribunal para primeiro interrogatório esta sexta-feira, por suspeitas do crime de homicídio qualificado e de profanação de cadáver.
Foi ao lado do tal caminho de terra, um terreno que ninguém pisa, mas que está bem à vista de todos, que Beatriz, de 16 anos, enterrou a sua irmã Lara, três anos anos mais velha, depois de a matar com várias facadas. Cavou um buraco ao lado de um amontoado de madeiras e a terra que colocou por cima foi suficiente para não levantar suspeitas. O corpo de Lara ficou ali várias semanas, até ser descoberto esta quarta-feira pelos inspetores da Polícia Judiciária, num buraco mesmo nas traseiras da casa onde viveu praticamente desde que nasceu.
Um “motivo fútil” numa morte em que ninguém desconfiou, nem mesmo o pai
Lara e Beatriz viviam apenas com o pai, numa casa que é, no fundo, o anexo da habitação principal, onde vive o senhorio de Jorge Pereira, o homem que nunca desconfiou que a filha mais nova matou a mais velha. “Ele chorava, chorava que nem um desalmado, nós nem podíamos perguntar pela Larinha, que ele começava logo a chorar”, conta Maria Patrício, vizinha da frente, enquanto espreita pelo portão.
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Entre as plantas suspensas que caem na entrada principal, Maria Patrício observa o pai de Lara e Beatriz, que ora se senta num banco de madeira, ora entra dentro de casa e volta a sair. “Passavam dificuldades, claro, era só ele sozinho, mas elas andavam sempre limpinhas, passavam aqui para ir para a escola sempre muito limpas, sempre com o cabelinho lavado”, acrescenta.
A mãe de Lara e de Beatriz ainda chegou a viver nesta casa, mas saiu quando as duas eram ainda muito jovens. Apesar disso, e sem explicações, Maria Patrício conta que “a mãe vinha cá duas, três vezes por semana para ver as filhas”. E outras vizinhas acrescentam que as duas eram boas alunas, sobretudo Beatriz, que era “elogiada pelos professores”. Na escola, no entanto, terá sido enviada uma queixa à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, depois de o pai ter agredido Beatriz à porta, avançou o Correio da Manhã. De acordo com uma das professoras de Beatriz, a jovem chegou mesmo a fazer queixa à PSP, tendo, no entanto, desistido mais tarde. O Observador tentou confirmar a existência de um inquérito junto da Procuradoria-Geral da República, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo.
As duas partilhavam quarto e terá sido, acredita a PJ, um desentendimento por causa de um telemóvel que levou Beatriz a atacar a irmã com várias facadas, num número que ainda não foi possível apurar, já que essa informação só será conhecida com a conclusão da autópsia. Um “motivo fútil”, disse esta tarde o diretor do Departamento de Investigação Criminal da PJ de Leiria, Avelino Lima, durante uma conferência de imprensa.
Depois de matar a irmã, Beatriz terá deixado o corpo debaixo da sua cama, embrulhado numa manta. Dias depois (a PJ não esclareceu quantos, há jornais que avançam entre dois a quatro), transportou-o para o tal terreno que fica mesmo atrás de sua casa. Mas, para lá chegar, Beatriz teve de percorrer cerca de 100 metros e teve também de passar à frente das casas dos vizinhos. Ninguém viu nada. Aqui, a PJ acredita que o transporte do corpo foi feito durante a noite, “procurando que não houvesse testemunhas”.
Ainda há, no entanto, vários mistérios que deverão ser desvendados quando a jovem de 16 anos for ouvida e com o decorrer da investigação. A forma como Beatriz transportou o corpo é um desses mistérios, sendo que a primeira versão é a de que terá usado um carrinho de mão. É esse o cenário que, aliás, traça o próprio pai, que ao sair de casa se dirige ao carrinho de madeira que está encostado à parede para dizer: “Foi com este carro que ela a levou”.
O desaparecimento de Lara foi dado às autoridades a 19 de agosto e só esta semana é que este crime foi descoberto. Nem mesmo o pai desconfiou. Visivelmente debilitado (já sofreu vários AVC e terá problemas de alcoolismo), a viver numa casa sombria e com poucas condições, Jorge Pereira conta que Beatriz disse que a irmã tinha fugido com um namorado para Lisboa. Ao mesmo tempo que conta a história inventada por Beatriz, tira um pedaço de papel com um número de telemóvel. “É da Lara.”
Também a Polícia Judiciária acredita que o pai “não desconfiava” da história contada pela filha mais nova, já que a “informação prestada tinha alguma credibilidade: uma jovem de 19 anos a deslocar-se para junto de um potencial e hipotético namorado não merecia desconfiança”. A PJ diz que nas primeiras buscas todas essas pistas (as indicações dadas pela irmã) foram seguidas, mas se revelaram falsas. E só então começaram a interrogar a família: e, aí, Beatriz começou a entrar em contradições.
Outra incógnita é se Beatriz transportou o corpo da irmã sozinha, ou se teve ajuda de alguém. Os inspetores acreditam que não houve “intervenção de terceiros”, apesar de a investigação não ter sido ainda concluída e de, para já, indicarem a diferença de alturas (a irmã sofria de nanismo) como fator que terá ajudado no transporte. Depois de saberem da notícia, foram vários os vizinhos que se deslocaram ao sítio onde esteve o corpo de Lara, numa tentativa de perceber o que terá acontecido e como. “Como é que ela trouxe o corpo sozinha?”, vão questionando os vizinhos.
Ainda não têm a resposta, mas nenhum deles dispensa as considerações sobre esta família: “Por mais problemas com álcool que ele tivesse, ele adorava as meninas e a Larinha adorava o pai”. Do outro lado das paredes, dentro de casa e a olhar para o cão que Beatriz costumava passear e para outra cadela que teve filhos há poucos dias, Jorge desabafa: “Agora são a minha companhia, não tenho mais ninguém”.
Lara era “uma miúda muito à frente, não se intimidava com nada”
Até há seis meses o namorado da mãe das duas irmãs, Marina Silva, de 34 anos, Luís Nunes manteve sempre contacto com as jovens, mas era mais próximo de Lara, que descreve como “uma miúda muito à frente, que, mesmo sendo anã, não se intimidava com nada, sempre de sorriso na cara e bem educada”.
Há um mês, quando Lara desapareceu, Luís, ele próprio pai de três filhos, ajudou nas buscas — lado a lado com a ex-namorada e a filha mais nova dela. “Fomos à procura dela, fomos à polícia e depois partilhámos nas redes sociais. A Beatriz procurou a irmã, disse que ela tinha ido para Lisboa, enganou toda a gente”, desabafa, ainda em choque. E diz que, apesar das circunstâncias — Marina terá saído da casa onde vivia com as duas filhas e o marido, Jorge, bastante mais velho, porque “ele não lhe dava liberdade”, tendo acabado depois por ver ser-lhe atribuída, a ele, a guarda das menores —, a família tinha uma relação normal, saudável até.
Tirando algumas “zangas normais” entre as irmãs, sobretudo iniciadas por Beatriz, que teria ciúmes do tratamento preferencial que o pai dispensava a Lara, “por causa da situação dela” [o nanismo], todos se davam bem. E mesmo as discussões das adolescentes eram rapidamente ultrapassadas — “Sei que se batiam, mas depois também andavam as duas bem, coisas de irmãos, tenho três, sei como é”.
Ao Observador, Luís garante que Jorge sempre foi, mais do que um “grande pai”, que “vivia para as filhas”, que “criou praticamente sozinho”, também um bom ex-marido. “Assim que ele soube da minha relação com a Marina propôs-se a ajudar-nos com bens alimentares”, revela Luís, para depois explicar que ao longo dos dois anos em que namorou com Marina nunca chegaram a morar juntos. Ainda assim, viam-se todos os dias — que era exatamente a mesma periodicidade com que Marina falava com as filhas, pessoalmente ou por telefone.
Quando Lara desapareceu e Beatriz explicou que a irmã teria ido para Lisboa, ter com um rapaz, ninguém achou que a adolescente pudesse estar a mentir, diz Luís. “Só a Marina é que dizia que se sentia mal, que alguma coisa não estava bem.”
Nunca lhe terá passado pela cabeça que, nessa altura, a filha já não estivesse viva, muito menos que pudesse ter sido a irmã a responsável pelo seu desaparecimento. Numa publicação feita nessa altura, no Facebook, Marina Silva, mãe de Lara e de Beatriz, desabafou e escreveu que, efetivamente, não estava a ser fácil manter a calma. “Mas, pronto, tenho outra filha, tenho de pensar nela também”, rematou.
Com Tânia Pereirinha