As imagens de milhares de migrantes, muitos deles crianças, a nadarem para chegarem ao enclave espanhol de Ceuta deixaram Espanha, mas também a União Europeia (UE), em choque. Pela situação humanitária de quem, em desespero, tenta chegar a todo o custo à Europa; e devido à situação de vulnerabilidade de Espanha, sujeita à vontade de Marrocos que, não só deixou de patrulhar a sua fronteira, como incentivou mesmo a passagem dessas pessoas: mais de nove mil entraram, em poucas horas, no espaço europeu.
Mas a vulnerabilidade de Espanha representa também a vulnerabilidade da UE na questão migratória. A situação de Ceuta trouxe rapidamente à memória o que aconteceu com a Turquia em março do ano passado, quando Ancara decidiu abrir as suas fronteiras para que milhares de pessoas pudessem entrar na Grécia. As autoridades gregas, com o apoio da UE, usaram meios policiais e militares para travar os migrantes, tal como agora o governo de Pedro Sánchez colocou tanques nas praias de Ceuta.
Na altura deste incidente, que levou a uma escalada de tensão na conturbada relação da Turquia com a UE, falou-se em chantagem e tentativa de pressão, numa altura em que Ancara procurava ganhar apoio ocidental na guerra da Síria e ter mais concessões por parte da UE no âmbito do acordo que assinaram em 2016 para limitar o fluxo de migrantes. No caso de Ceuta, as acusações por parte de Bruxelas repetiram-se, com o vice-presidente da Comissão Europeia, Margaritis Schinas, a afirmar que a UE “não se vai deixar chantagear por ninguém”, palavras repetidas pela ministra da Defesa de Espanha, Margarita Robles.
As palavras duras vieram também com promessas de retaliação, com Bruxelas a ameaçar que, caso as autoridades marroquinas voltassem a abrir as suas fronteiras terrestres, a assistência financeira a Rabat estaria em causa — segundo o El País, desde 2007, Marrocos terá recebido mais de 13 mil milhões de euros da UE. As verbas dadas a outros países para impedirem os migrantes de chegarem a território remete-nos para a questão central da política migratória europeia dos últimos anos.
“Em 2016, a UE decidiu que não queria ser confrontada com qualquer situação de caos ou de movimentos descontrolados como o que aconteceu nesse ano e em 2015. Por isso, decidiu que os países terceiros seriam os parceiros decisivos para conseguir esse objetivo”, contextualiza ao Observador Hanne Beirens, diretora do Migration Policy Institute na Europa, um think tank especializado em políticas de imigração, com sede em Bruxelas.
Esta mudança de política após a denominada crise dos refugiados em 2015 e 2016 consiste, resumidamente, no pagamento de elevadas verbas a esses tais países terceiros para que estes controlem a migração nas suas fronteiras. Dinheiro que é também usado para a proteção e assistência aos refugiados e migrantes e para a modernização das autoridades fronteiriças e as suas infraestruturas.
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Os acordos preveem ainda que um certo número de refugiados nesses países terceiros — nomeadamente na Turquia, onde há uma política de retorno e em que por cada sírio deportado/’devolvido’ há outro a ser reinstalado — sejam acolhidos na UE, conforme os protocolos estabelecidos entre os Estados-membros. No entanto, ao pôr na mão de outros países a responsabilidade de controlar os fluxos migratórios, a UE ficou cada vez mais dependente desses mesmos países.
“A política de imigração europeia sustenta-se na base do controlo das fronteiras e da externalização dos fluxos migratórios, o que faz com que a UE esteja extremamente dependente das decisões que, de maneira unilateral, possam ser tomadas por esses países para alcançarem objetivos políticos”, afirma ao Observador Ruth Ferrero-Turrión, professora de Ciência Política na Universidade Complutense de Madrid, especializada em políticas migratórias.
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O que aconteceu em Ceuta revela, precisamente, as consequências de uma decisão unilateral de um país terceiro, neste caso Marrocos. Apesar das divergências, até há bem pouco tempo, no contexto europeu, a relação entre Madrid e Rabat era vista como um bom exemplo na forma como um Estado-membro e um país fronteiriço devem trabalhar na questão da imigração.
Mas, nos últimos meses, a situação mudou em Marrocos, com a monarquia de Mohammed VI a procurar apoio internacional na questão do Saara Ocidental, um território disputado por Marrocos e pelo povo sarauí através da Frente Polisário, que quer a independência da região. Em dezembro do ano passado, um tweet de Donald Trump deu um impulso inesperado a Rabat, ainda que pedindo algo em troca, claro (neste caso, sobre Israel).
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“DonaldTrump, de forma unilateral, reconheceu a soberania de Marrocos sobre o Saara Ocidental, algo que Marrocos procura há mais de meio século. Isto levou a diplomacia marroquina a ter uma atitude mais beligerante”, afirma ao Observador Haizam Amirah-Fernández, analista do Real Instituto Elcano. “Marrocos pensava que ia receber muitos apoios depois de Trump, mas não recebeu, não houve uma avalanche de reconhecimento de países importantes, muito menos da UE. E isso causou nervosismo”, acrescenta o analista.
A ansiedade em Rabat levou a monarquia a abrir uma crise diplomática com a Alemanha, em março, suspendo relações com a embaixada alemã devido à posição intransigente de Berlim em relação ao Saara Ocidental. Mais de dois meses depois, soube-se que o líder da Frente Polisário, Brahim Ghali, estava a receber tratamento médico em Espanha após ter sido diagnosticado com Covid-19. Mas terá supostamente entrado de forma secreta e com um passaporte falso no país. Marrocos reagiu deixando de patrulhar as fronteiras e terá mesmo incentivado os cidadãos marroquinos — incluindo crianças e adolescentes que terão recebido mensagens que diziam que Cristiano Ronaldo e Messi iriam participar num jogo de futebol no enclave espanhol — a rumarem a Ceuta.
Ao usar estes métodos, ciente de que milhares de marroquinos, mas também pessoas vindos de outros países africanos, esperam encontrar uma vida melhor na Europa, Marrocos usou a imigração como uma arma política para pressionar Espanha em relação à antiga colónia espanhola.
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“As pessoas que estão a tentar atravessar Marrocos para chegar a Espanha têm a intenção de migrar ou procurar asilo na Europa. Mas claro que existe o elemento de serem usadas como peões, no sentido em que Marrocos, ao permitir a sua passagem, tem um objetivo político e uma mensagem política para Espanha”, reitera Hanne Beirens.
Além de Marrocos e da Turquia, a dependência da Líbia
O caso de Marrocos tem especificidades importantes, nomeadamente o facto de ser a única fronteira terrestre de África com a Europa, o que torna possível uma rápida e descontrolada entrada de migrantes em território europeu (via Ceuta ou Melilla). O mesmo pode acontecer nas fronteiras da Grécia com a Turquia, onde estão mais de três milhões de refugiados sírios. Daí que tanto Rabat como Ancara tenham tanta influência sobre a política migratória europeia.
Depois, há ainda o caso da Líbia. Este é o país pelo qual transitam muitos migrantes que pretendem utilizar a rota do Mediterrâneo, sujeitando-se a condições desumanas e aos interesses de redes de tráfico, para chegarem a território europeu, seja para procurar asilo, ou melhores condições de vida.
Quando a Líbia ainda era governada por Muammar Khadafi, o então Presidente líbio por várias vezes chantageou a Europa com a imigração, tendo chegado a exigir cinco mil milhões de euros como contrapartida para travar os migrantes que pretendiam chegar à Europa (neste caso, a Itália é a principal porta de entrada). Com a queda do ditador líbio, em 2011, o país mergulhou no caos, e os migrantes ficaram ainda mais sujeitos a traficantes, perante a impotência da UE.
No âmbito da mudança de política externa para a imigração, à semelhança do que fez com a Turquia — que recebeu seis mil milhões de euros no acordo estabelecido com a UE em 2016 —, Bruxelas aumentou o financiamento à Líbia. Entre 2014 e 2020, Tripoli recebeu mais de 700 milhões de euros, num acordo que, segundo Bruxelas, permitiu o regresso voluntário de 50 mil migrantes para os seus países de origem.
Apesar de o número de migrantes a tentar chegar a território europeu, através do Mediterrâneo, ter diminuído nos últimos anos, sobretudo em 2020, devido à pandemia de Covid-19, continuam a morrer centenas de pessoas em barcos de borracha no seu desespero para chegar à Europa. No passado mês de abril, mais de 130 pessoas, incluindo mulheres e crianças, morreram junto à Líbia, uma prova de que a política migratória europeia não está a ser eficaz.
“Na primavera e no verão, sobretudo em situações em que outras rotas estão fechadas ou monitorizadas, há uma tendência dos migrantes, mas também dos traficantes, para usar rotas mais perigosas, como a do Mediterrâneo”, lamenta Hanne Beirens, do Migration Policy Institute. “Estamos muito dependentes da Líbia para impedir as pessoas de fazerem essa viagem muito perigosa”, alerta.
Um relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), publicado na quarta-feira, responsabiliza diretamente a UE pelas mortes no Mediterrâneo. Acusa as autoridades europeias de terem reduzido as operações de busca e salvamento, deixando essa tarefa para as autoridades líbias (que também são responsabilizadas no mesmo relatório).
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A UE já veio demonstrar disponibilidade para chegar a novos acordos com a Líbia, que desde abril tem um novo primeiro-ministro interino, Abdul Hamid Dbeibah, que deverá ficar em funções até dezembro, quando serão convocadas novas eleições, aguardadas com grande expectativa. Um novo acordo poderá ser fundamental para o futuro de milhares de pessoas.
“As prioridades da UE ao lidar com países como a Líbia deve ser o apoio e proteção dos migrantes. Há anos que a UE tem vindo a consolidar um aparelho fronteiriço que está na origem de muita violência: um horrendo sistema de detenção, de busca e salvamento que consiste em trazer migrantes de volta para o país do qual fizeram tudo para fugir”, defende ao Observador Michael Neuman, diretor do think tank CRASH, com ligação aos Médicos Sem Fronteiras. Neuman acrescenta ainda que nos casos de Marrocos, Turquia e Líbia os “migrantes são apanhados num jogo político que tem custado muitas vidas e sofrimento”.
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À vulnerabilidade da UE perante o trunfo do controlo do fluxo de imigração por parte dos países terceiros, acresce a dificuldade dos 27 Estados-membros chegarem a um consenso que permita uma reforma na política migratória. Prova disso é o impasse em torno do Pacto para as Migrações e Asilo, proposto pela Comissão Europeia em setembro do ano passado. A presidência portuguesa do Conselho Europeu fez deste assunto uma das suas prioridades, mas, apesar de o ministro dos Negócios Estrangeiro Augusto Santos Silva ter prometido “lutar até ao último minuto” por um acordo, as divergências não têm permitido avanços.
Além das divisões entre Estados-membros, nomeadamente entre norte e sul, ou da recusa de países como a Polónia ou a Hungria em receberem migrantes, a migração tornou-se um tema facilmente explorado por partidos populistas — como aconteceu em Ceuta, com o Vox. Algo que também tem contribuído para que o tema da imigração se tenha tornado quase um tabu, um assunto que os governos europeus evitam discutir.
“Os governos europeus estão presos numa armadilha. Construíram políticas migratórias que ligam a migração à segurança e essa lógica torna muito difícil reestruturar as políticas migratórias, uma vez que esse tipo de política deu-lhes votos, mas também fez com que partidos extremistas ganhassem o seu espaço político e pudessem quebrar a centralidade das forças políticas tradicionais”, sublinha a politóloga Ruth Ferrero-Turrión.
Perante a dificuldade em chegar a consensos para uma reforma política migratória e de asilo, além do receio de ver estes temas capturados por partidos populistas, a solução da UE tem sido deixar o controlo das suas fronteiras nas mãos de países terceiros, adiando soluções. Até que surgem casos como o de Ceuta, os afogamentos na Líbia ou as ameaças de Erdogan, que recordam que há um problema por resolver.