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Este trabalho, que é publicado no último dia de aulas, foi preparado antes de a pandemia de Covid-19 ter levado ao encerramento das escolas. A questão das desigualdades na educação, porém, não só se manteve como pode ter sido amplificada pelo ensino à distância. O seu impacto na qualidade da aprendizagem e no percurso escolar dos alunos continua a ser uma das características do ensino em Portugal no retrato mais recente do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA). E voltou a ser determinante nos rankings nacionais das escolas, que serão conhecidos esta sexta-feira.
Os números são como o teste do algodão: não enganam. E todos, sejam de estatísticas nacionais ou estrangeiras, apontam no mesmo sentido. Nascer numa família mais pobre ou mais rica tem influência nas notas e nas aprendizagens dos alunos portugueses. Os mesmos números mostram igualmente que, como em todas as regras, também há exceções. Se elas existem, se há escolas que conseguem contrariar a tendência, por que motivo o problema continua por resolver e os mais pobres têm piores resultados na escola? É a justiça social um dos principais desafios da escola do século XXI?
“Devemos afirmá-lo sem hesitações”, responde o ministro da Educação ao Observador. “A justiça social constitui uma conquista e uma exigência da democracia, cada vez mais reclamada – e bem – pelos cidadãos e que, todos concordamos, não se restringe às escolas, mas cuja realização implica de forma central a educação.”
Resolver o problema das desigualdades, defende Tiago Brandão Rodrigues, já não passa apenas pela abertura de mais escolas ou de garantir que todos frequentam o ensino obrigatório. “Se há várias décadas esse trabalho passava, sobretudo, pela abertura de escolas e pela garantia de que todas as crianças tinham condições para aceder às escolas, hoje em dia é amplamente reconhecido que isso é insuficiente e a questão principal é garantir as condições para que todos tenham efetivamente as mesmas oportunidades de aprendizagem, de escolarização e de qualificação.”
De facto, as taxas de escolarização em Portugal são altas, embora não sejam de 100%. Segundo os números de 2018, no 1.º ciclo o valor é de 95,4%, no 2.º ciclo de 88,6%, no ciclo seguinte de 88,1% e no ensino secundário de 79,3%. Frequentar a escola, tal como o ministro sublinha, não é sinónimo de sucesso. No ensino básico (do 1.º ao 3.º ciclo), há 5,1% de estudantes que chumbam. No secundário esse número é bastante mais alto e chega aos 13,9%.
Os números da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) também mostram que são os alunos carenciados quem mais chumba. E em dezembro passado foram publicados os relatórios PISA, da OCDE, e o Estado da Educação, do Conselho Nacional de Educação. De novo, como acontece de cada vez que são publicados, mostram que o fosso entre alunos provocado pela pobreza, mesmo que mais pequeno, continua a existir.
O cerne da questão é que, à partida, as crianças não entram em pé de igualdade para o ensino obrigatório. O simples facto de terem frequentado três anos de educação pré-escolar dá-lhes maior probabilidade de terem sucesso académico, como mostra um estudo do Aqeduto, projeto de investigação sobre educação. Pertencerem a famílias que podem recorrer a explicadores quando os alunos não aprendem é outro fator de desigualdade, assim como o envio de trabalhos para casa: se há pais que conseguem apoiar os filhos nos estudos, outros não têm qualificações ou tempo para fazê-lo.
Por isso mesmo, antes de se olhar para a escola e para as desigualdades de resultados académicos, é preciso olhar para a sociedade portuguesa, também ela muito desigual. E é aí que é preciso encontrar a solução para o problema para, depois, transpô-la para o ensino, a começar pela educação pré-escolar. Além disso, não consideram que o relatório da OCDE traga grande novidade quando mostra que, por exemplo, um aluno desfavorecido tem três vezes mais hipóteses de ficar nos níveis mais baixos de domínio do conhecimento. Mas o efeito escola existe e os dados mostram que os resultados dos alunos são melhores do que a sua condição económica. Este é o resumo da opinião de vários especialistas ouvidos pelo Observador que defendem que não se pode encarar a dualidade pobreza/insucesso como uma fatalidade.
Diferença entre ricos e pobres baixa mas Portugal ainda é dos países mais desiguais da UE
Por isso, não considera que o relatório da OCDE traga grande novidade quando mostra que, por exemplo, um aluno desfavorecido tem três vezes mais hipóteses de ficar nos níveis mais baixos de domínio do conhecimento. Apesar disso, diz que o efeito escola existe e os dados mostram que “os resultados dos alunos são melhores do que a sua condição económica”.
O ministro da Educação defende a escola pública e o efeito que tem sobre os seus estudantes. “Em muitos casos, a escola não falha. Nas ruas, nos locais de trabalho e de cidadania, todos os dias encontramos jovens que são provenientes de contextos vulneráveis e que vemos que têm competências, valores e projetos. A escola foi fundamental no percurso de uma grande parte da população portuguesa, muitos dos quais nasceram em contextos de grandes privações. Agora, é verdade que a sociedade também é cada vez mais exigente, mais competitiva, mais dinâmica e mais diversa.”
Tiago Brandão Rodrigues defende que num mundo em mudança temos de ir melhorando continuamente a escola para que cumpra cada vez melhor a sua missão social, mas deixa o alerta. “Não existem panaceias universais que funcionem em todos os contextos. Existem soluções concretas que podem ter tido bons resultados num contexto e com o qual devemos todos aprender. Mas cada aluno é único, cada professor é único e o ensino-aprendizagem é sempre construído através de relações que resultam dessa singularidade”, sublinha.
Diferença entre ricos e pobres baixa mas Portugal ainda é dos países mais desiguais da UE
Apesar da singularidade de cada um, as falhas do sistema afetam mais os jovens de classes mais baixas e os que têm maior dificuldade de aprendizagem. “O nosso sistema é de elevada qualidade para os miúdos médios e bons, mas não é suficientemente bom para todos”, diz, por seu lado, Diogo Simões Pereira, diretor-geral da Associação EPIS (Empresários pela Inclusão Social) que trabalha com jovens em risco de insucesso. Os números do PISA 2018, que avalia os alunos de 15 anos, mostram que apenas 1 em cada 10 estudantes carenciados conseguem chegar ao topo dos melhores resultados nacionais. Mas, apesar de nove ficarem para trás, há pelo menos um desses alunos que consegue inverter a tendência, o que leva a OCDE a escrever que “ser desfavorecido não é destino”.
Este é um dos dados que Sofia Ramalho, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos, que há duas décadas trabalha em contexto escolar, gosta de enfatizar: “É importante não estigmatizarmos as famílias pelas condições socioeconómica e cultural porque este estigma tem um impacto semelhante ao do racismo. Até as famílias mais vulneráveis, e as suas crianças, têm de sentir que podem ser eficazes.”
E solução, existe? Passa por um trabalho conjunto com a economia, a educação e o trabalho, defende a subdiretora-geral da Educação, Maria João Horta. “É impossível pôr a responsabilidade apenas nas costas dos diretores dos agrupamentos pelos muitos problemas que encontramos nas escolas. Tem de haver um trabalho colaborativo. Muitas vezes, os diretores conseguem coisas notáveis, só que a escola não está isolada do bairro e é preciso que também o bairro faça coisas notáveis para evoluir — pela melhoria da habitação, pela oferta de trabalho, por muitos fatores.”
Analfabetismo, a raiz do problema
Os mais recentes dados da OCDE são elogiosos para Portugal. É o único caso de sucesso na educação da organização, segundo o PISA 2018, e foi apelidado de “a maior história de sucesso da Europa” por Andreas Scheleicher, diretor de Educação daquela organização.
A evolução que o país tem feito é inegável, principalmente porque parte de um atraso grande em relação aos países com que se compara. O mesmo não é sinónimo de dizer que todos os problemas estão resolvidos.
A questão das desigualdades levou o secretário de Estado da Educação, João Costa, a escrever que o pior resultado do PISA “é o facto de persistir o fosso entre os alunos mais privilegiados e os oriundos de contextos socioeconómicos mais desprotegidos”. Num artigo de opinião, publicado no Jornal de Letras, escrevia que este fosso significa que “a escola portuguesa, apesar de uma evolução francamente positiva desde 1974, ainda não consegue ser a garantia de mobilidade social”.
PISA. Portugal é caso único de sucesso entre os países da OCDE, mas mantém desigualdades
A raiz do problema está ligada à enorme fatia de população analfabeta que o país teve durante várias décadas.
“Nós estamos atrasados 40 anos. Basta olhar para a taxa de analfabetismo no país dos anos 1970, compará-la com outros países da Europa, para perceber. Para além disso, temos vivido períodos de poucos recursos, como durante a estada da troika, em que o investimento em educação sofreu cortes”, defende Diogo Simões Pereira que integra o grupo de trabalho da União Europeia sobre Saída Escolar Precoce. Apesar disso, sublinha que nenhum outro setor, para além da educação e da saúde, convergiu tanto com a média europeia nos últimos anos.
Em 1975, um quarto da população portuguesa era analfabeta, quando na Alemanha, no Reino Unido ou na Finlândia o valor já era inferior a 0,01%. Neste último país, 97,6% da população sabia ler e escrever quase cem anos antes, em 1880. Voltando ao século XX, Espanha tinha 34% de analfabetos em 1975, Itália estava nos 18%, a Grécia nos 13% e a França nos 1,1% — ou seja, só o país vizinho estava pior do que Portugal.
Segundo os dados dos Censos do INE, a taxa de analfabetismo chegou aos 9% em 2001 e, em apenas dez anos, desceu quase para metade (5% da população, o equivalente a 500 mil cidadãos). Apesar da queda, Portugal continua a estar entre os países europeus que têm maior número de analfabetos. Aliás, o relatório de Monitorização da Educação Global da UNESCO, de 2016, estima que só em 2046 todos os portugueses saberão ler e escrever, o que fará de Portugal o último país da Europa com 100% de alfabetização.
Esta taxa é importante porque é um espelho das condições socioeconómicas e culturais das famílias, fundamentais para se avaliar o grau de risco de uma criança vir a ter sucesso ou insucesso escolar. Embora a maioria dos analfabetos sejam idosos do interior do país, 30 mil estão em idade ativa, entre os 18 e os 65 anos.
Há 30 mil analfabetos em idade ativa e listas de espera para aprender
Isso leva Sofia Ramalho a dizer que este não é um problema só das famílias. “Estas desigualdades estão construídas nas próprias estruturas da sociedade, são difíceis de ultrapassar. A pobreza vai-se perpetuando ao longo de gerações, é difícil sair dela e da falta de condições socioeconómicas e culturais.”
As situações de salários baixos, de poucas condições para conciliar a vida profissional com a familiar, defende a psicóloga, continuam a persistir e a ter uma influência marcante naquilo que tem a ver com a educação das crianças. “Mas não nos devemos focar neste aspeto como sendo incontornável: é importante uma visão mais positiva para não reforçar os baixos níveis de autoestima, de auto eficiência e eficácia da criança. Caso contrário, estamos até a dificultar um sentimento de pertença da criança e a gerar situações de estigma.”
Mães estão mais escolarizadas e isso faz a diferença
Se a classe social em que se nasce afeta o percurso escolar, ainda que não de forma determinista, é o próprio percurso académico dos pais, em especial das mães, que maior peso tem no caminho que o estudante irá fazer ao longo da sua vida académica.
“O principal preditor de sucesso de um aluno são as habilitações da mãe, em seguida o ambiente familiar — aquilo a que se chama learning environment —, e em terceiro lugar o status”, lembra o professor catedrático António Teodoro, doutor e mestre em Ciências da Educação, membro fundador do movimento sindical dos professores e secretário-geral da Fenprof entre 1983 e 1994. “A evolução do país no PISA correspondeu também à melhoria das qualificações das mães que, por seu lado, correspondeu à melhoria das condições gerais dos portugueses.”
O professor catedrático, crítico do PISA e que hoje lidera o grupo de investigadores do projeto “Uma história de sucesso? Portugal e o PISA (2000-2015)”, defende que se o relatório tem utilidade é para gerar estudos sobre se a escola portuguesa é mais inclusiva do que outras. Ou seja, explica, “se o efeito escola amplia ou diminui os constrangimentos resultantes das desigualdades sociais”. Os dados existentes mostram que amplia, mas ainda não o suficiente.
“Quando os miúdos vão para a escola já vão em situações diferentes. O background é fundamental, tudo aquilo que a criança já adquiriu quando chega à escola conta. O nosso sistema educativo como está, com as metodologias que usa, dificilmente chega a todos. Tinha obrigação de fazê-lo, de pôr todos no mesmo pé, mas não põe. A escola não tem sido a ferramenta para igualizar”, defende a vereadora socialista Laura Rodrigues. Tem a pasta da Educação na câmara de Torres Vedras que há 15 anos procura soluções para garantir a igualdade de educação no município. Uma das apostas é reforçar a ação social escolar (ASE) para lá do que prevê a lei, permitindo que os apoios sejam pedidos em qualquer altura do ano.
PISA. Só 10% dos alunos mais pobres conseguem chegar ao topo dos resultados em leitura
Quando o baixo rendimento do agregado deixa a família numa situação financeira complicada, isso arrasta o estudante para situações de desigualdade. Podem faltar os materiais de apoio ao estudo, o acesso a computadores, internet e livros, e o recurso a explicações também fica fora da equação. Para além disso, famílias carenciadas com crianças com necessidades educativas especiais que não vejam a escola garantir terapias e apoios dificilmente o conseguem fazer com os seus recursos financeiros.
Nos últimos três anos, a taxa total de alunos abrangidos pela ASE, o apoio estatal para alunos carenciados, diminuiu de 40,1% em 2014/15, para 36,1% em 2017/2018. Ao comentar estes números na apresentação do relatório “Estado da Educação 2018”, a presidente do Conselho de Educação, Maria Emília Brederode, reforçou a ligação entre alunos carenciados e ensino profissional. “Vemos que a força da ação social escolar chega a quase 50% dos jovens que estão em percursos escolares educativos. O que isto nos diz é que os alunos com menos rendimentos estão a ser empurrados para as vias alternativas.” E estas, sublinhou Maria Emília Brederode, são aquelas para onde seguem os alunos com maiores taxas de insucesso e onde o caminho para o ensino superior é “mais complicado”.
Sobre esta questão, a psicóloga Sofia Ramalho lembra que as situações de baixo nível de rendimentos e sociocultural também podem levar a uma diminuição das próprias capacidades cognitivas. “Está provado cientificamente. As crianças e as famílias não são menos capazes. Funcionam menos bem devido às suas circunstâncias de vida. A diminuição das capacidades cognitivas é uma consequência das desigualdades que se acumulam: falta acesso a uma instrução superior, têm baixos rendimentos, têm muito stress laboral, trabalham muitas horas, têm dificuldades em dar o que é preciso aos seus filhos, desde a alimentação a outros apoios, ficam com mais dificuldade no acesso a cuidados de saúde e isto gera problemas de saúde física e mental”, defende.
Isto faz com os ambientes familiares carenciados se tornem mais propícios a fatores de risco como atrasos de desenvolvimento, dificuldades de aprendizagem e problemas de comportamento.
Em Pampilhosa da Serra, 71% dos alunos têm direito a ASE. Este valor faz com que o agrupamento de Escolas Escalada seja o segundo do país com maior número de alunos em situação socioeconómica complicada. Também é escola TEIP, designação criada para as escolas com elevado número de alunos em risco de exclusão social e escolar, com o objetivo de promover o sucesso educativo dos alunos desfavorecidos.
Sem diretor de agrupamento, Marta Gonçalves é quem preside à Comissão Administrativa Provisória das escolas e conta que com os recursos disponíveis tentam dar o máximo de apoio aos alunos, usando os créditos horários para promover o sucesso.
“São alunos que, por exemplo, não têm explicações. Então, tentamos ter alternativas na escola, como as salas de estudo, as coadjuvações: com dois professores é possível chegar melhor aos alunos e ter um ensino mais individualizado. Também temos as assessorias, as turmas mais pequenas, normalmente de 15, 16 alunos”, explica. Nas duas escolas do agrupamento há apenas uma turma por ano, do pré-escolar ao secundário, porque há poucas crianças e jovens na região.
“As principais dificuldades dos nossos alunos são a falta de apoios que outros têm. Fora isso, a escola está sempre atenta. Tentamos nós colmatar a falta de apoio que possam ter em casa e tentamos desenvolver o interesse pela escola através dos clubes, das atividades para motivá-los para o estudo, para a aprendizagem”, conta a professora, que sublinha que também trabalham com os pais.
Essas falhas materiais também contam para o insucesso, defende Pedro Cunha, da Fundação Gulbenkian, subdiretor-geral da Educação entre 2010 e 2017, que deixa uma pergunta no ar: qual a nossa capacidade de, num curto espaço de tempo, alterar essa falta de livros ou de acesso a computadores na casa destes alunos? Esses bens materiais dependem dos rendimentos dos agregados e os rendimentos estão ligados ao nível de escolaridade.
Na Várzea de Sintra, há uma escola pública sem turmas, sem anos e sem testes
“Estas variáveis estruturais, como salários e habilitações dos pais, são muito difíceis de alterar. Está muito estudado e sabemos que há uma ligação fortíssima entre a escolaridade da mãe e a dos filhos. Se olharmos para o quadro da escolaridade portuguesa, ela nunca foi tão elevada. Ao invés de a ligarmos a políticas, parece-me mais sensato comparar esse dado à própria evolução da escolaridade portuguesa. Aí estamos todos de parabéns”, sublinha.
Por isso, considera “absolutamente fundamental” investir na literacia ao longo de toda a vida das mulheres. “É uma área onde ainda há muito para fazer e onde a Gulbenkian já está a trabalhar.” O efeito de ter mães mais escolarizadas tenderá sempre a ser o de ter alunos com mais sucesso.
Tudo está interligado. “As dificuldades são cumulativas: baixo nível socioeconómico gera baixo acesso à assistência e à segurança social, baixo acesso a cuidados de saúde, a condições básicas da casa e entra-se num ciclo vicioso de resultados. Quando falamos de famílias com baixos rendimentos, estamos a falar do nível da curiosidade, do afeto, da resiliência, de atrasos de desenvolvimento, depressão, ansiedade, dificuldades de aprendizagem, problemas académicos, problemas de comportamento e de saúde mental — às vezes nas crianças, outras nas famílias. E stress parental que pode gerar problemas no funcionamento familiar. Está tudo interligado”, defende a vice-presidente da Ordem dos Psicólogos.
Em mais de 90% dos casos o problema não está exclusivamente na escola
“Antes de um problema escolar, temos um problema social”, defende Luís Mocho, diretor do Agrupamento de Escolas Manuel da Maia, aquele que tem a segunda taxa mais alta de chumbos no 7.º ano no concelho de Lisboa, e que recebe alunos dos bairros de Campo de Ourique e do Vale de Alcântara.
Muitos dos problemas que os alunos trazem para o estabelecimento de ensino não serão resolvidos pela escola, assume o diretor. São adolescentes, muitos já deveriam frequentar o ensino secundário, e não respeitam a figura de autoridade de um adulto, seja ele o encarregado de educação ou o professor. Cresceram em famílias desestruturadas, com carências económicas graves e, neste caso concreto, em bairros ligados ao tráfico de droga.
Os sinais começam logo nos alunos do pré-escolar e do 1.º ciclo. “São crianças que têm em comum o traço de abandono familiar, não físico, mas emocional e tutorial. Não há conhecimento para impor regras. Ou não há tempo, muitos fazem horários inversos aos filhos, ou há um desleixo total porque os pais não conseguem tomar conta de si próprios”, conta.
Também tem casos recorrentes de crianças retiradas às famílias e institucionalizadas. Se, do ponto de vista do cuidado físico, as instituições conseguem fazer alguma coisa, do ponto de vista tutorial acabam por falhar, defende. A estes somam-se casos pontuais de desvios de saúde mental, em que os pais recusam que a criança seja encaminhada para os serviços de saúde, por ignorância ou preconceito.
“É um problema social. Não é a escola que vai resolver isto. Tenho dois professores que sei que não fazem nada dos alunos na sala de aula. Estão muito cansados, à beira da reforma, e o auge da sua carreira foi feita numa altura em que os alunos se portavam bem e que era facílimo dar aulas”, salienta o professor, recém-chegado ao agrupamento TEIP, e que está a tentar mudar a forma de lidar com o insucesso e o comportamento dos alunos.
As estratégias das escolas para estarem no topo dos rankings
O caso do agrupamento Manuel da Maia não é único. Muitos problemas dos alunos espelham os problemas dos bairros em que crescem.
Maria João Horta fala de uma sociedade muito desigual. “Estive numa escola em Camarate e, quando estamos ali, percebe-se que estamos a falar de franjas da nossa sociedade. O desenvolvimento ainda não chegou a estes locais, as pessoas ainda não se apropriaram da ideia de que com a educação podem ter melhores condições de vida.”
Para a subdiretora-geral da Educação, em mais de 90% dos casos o problema não está na escola exclusivamente. “É um problema das comunidades. Temos zonas do país que cresceram de forma muito desigual, cidades que cresceram e que empurraram pessoas para as suas margens. A escola não está separada do seu bairro. Às vezes, são barreiras de tal maneira altas que não permitem que a criança chegue sequer à aprendizagem. Essa barreira é que tem de ser desconstruída.”
As 541 “escolas do insucesso”
Estas escolas onde há mais insucesso estão diagnosticadas. O diretor-geral da EPIS lembra um estudo liderado por Maria de Lurdes Rodrigues, “Aprender a Ler e a Escrever em Portugal”, que ilustra bem este ponto de vista. “Há quatro mil escolas de 1.º ciclo e o problema está centrado em 500. Era fundamental haver um programa específico para essas escolas”, detalha Diogo Simões Pereira.
Na altura, o Observador falou com Maria de Lurdes Rodrigues, reitora do ISCTE, que confessou que o que mais a surpreendeu quando começou a trabalhar os dados foi a concentração. Havia claramente bolsas de insucesso. “A retenção não é um problema disseminado pelo país. Há a concentração de chumbos no 2.º ano, há concentração em determinadas regiões e, dentro dessas regiões, há concentração dentro de algumas escolas”, disse, na altura, a antiga ministra da Educação. E as escolas analisadas no estudo, que foram apenas aquelas onde a taxa de alunos que reprova ultrapassa os 30%, fazem subir a média nacional. “Percebemos que há escolas com níveis muito elevados e outras onde o chumbo praticamente não existe.”
De um total de 3.866 escolas de ensino primário, em 900 não havia chumbos. As 541 “escolas do insucesso”, como foram apelidadas no estudo, eram estabelecimentos à margem do agrupamento e dos centros de decisão e de reflexão.
“Há uma segmentação do problema, são escolas marginais que não têm as melhores condições. Se, num agrupamento de 10 escolas, só duas dão problemas, os diretores olham para as oito que estão bem”, explica a antiga ministra da Educação (2005-2009). “Também percebemos que há escolas onde caem os problemas todos. Pensava-se que a escola tem força para mudar o meio. Não tem. Uma escola não tem força para mudar o meio, o meio é que influencia a escola.”
Nem chumbar, nem passar. Nesta escola, a única alternativa é aprender
Sobre este assunto, a OCDE, no seu relatório “Igualdade na educação: derrubar barreiras à mobilidade social”, aconselha os países a definir objetivos ambiciosos e a monitorizar o progresso de alunos de classes baixas, afetando mais recursos a estes estudantes, às escolas onde estes se encontram e, ao mesmo tempo, evitar a concentração de alunos de alunos desfavorecidos na mesma escola.
A escola pode ser o elevador social
Se aquele estudo de 2017 leva Maria de Lurdes Rodrigues a dizer que a escola não tem força para mudar o meio, um outro do ano anterior, da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), parece mostrar o contrário.
No estudo “Desigualdades Socioeconómicas e Resultados Escolares”, embora fique patente a ligação pobreza/insucesso, há casos que contrariam esta relação de causa e efeito. O motivo? “A influência de fatores locais, como o dinamismo das escolas e dos professores, o grau de importância atribuído ao ensino das crianças e ao trabalho escolar na cultura da região”, lê-se no estudo.
António Teodoro não tem dúvidas da importância da proatividade das escolas para alterar estes cenários, mas lembra que nem todas andam ao mesmo ritmo. “Em Portugal, há velocidades e dinâmicas muito diferentes nas escolas, umas com níveis de inovação muito interessantes e outras muito cansadas.”
“Com a reprovação aprende-se pelo medo”. Entrevista a Maria Emília Brederode
Foi o caso de Torres Vedras, onde os quatro agrupamentos do concelho têm sido alvo de programas que pretendem melhorar as competências socioemocionais dos alunos e, no final, melhorar os resultados escolares. Ao fim de 15 anos, podem dizer que tiveram sucesso.
“As famílias têm melhorado o seu estatuto socioeconómico e a própria escolaridade dos pais aumentou. Ter pais mais escolarizados faz logo muita diferença”, diz a vereadora Laura Rodrigues. “No nosso município vemos que é possível ultrapassar as coisas, quer seja com o trabalho da própria escola, quer seja com apoios sociais da autarquia. As coisas estão à disposição dos nossos cidadãos, mesmo que não as procurem quase que vamos buscá-los para que tenham acesso.”
O ministro da Educação também acredita que é possível inverter o padrão, lembrando que a sociedade é cada vez mais exigente, mais competitiva, mais dinâmica e mais diversa. “Estamos a trabalhar com as escolas para que acompanhem essas mudanças, de forma a conseguir manter e reforçar a sua função primordial de compromisso com a comunidade e com a justiça social. É natural que muitos de nós sintamos a angústia de que as mudanças na escola podem desfocá-la da sua missão central, mas é exatamente o contrário: num mundo em mudança, temos de ir melhorando continuamente a escola para que cumpra cada vez melhor essa sua missão”, diz Tiago Brandão Rodrigues.
Começar no pré-escolar para evitar “remendos”
“Enquanto não tivermos pré-escolar universalizado para todos, vamos ter, à partida, desigualdade de acesso. Se o pré não for obrigatório, há sempre a opção das famílias de manterem as crianças em casa. Mas ser obrigatório implica ter uma rede pública”, defende Diogo Simões. Para o diretor-geral da Associação EPIS, a solução tem de começar no pré-escolar, para poder ter efeitos visíveis. “Não resolvendo o problema do pré-escolar e do 1.º ciclo, o grupo de jovens de risco de insucesso escolar é criado. E esse grupo nem pode ser criado. A partir daí, tudo são remendos.”
Coautor do livro “Escolas de Futuro – 130 boas práticas de escolas portuguesas”, Diogo Simões acredita que, se estes alunos forem acompanhados desde cedo, o gap que têm face aos outros será menor e nunca irão ter o evento de reprovar. “O chumbar cria a convicção de que não conseguem, limita a sua ambição e a dos pais, cria ciclos viciosos. E um miúdo que fica catalogado como mau aluno é mau aluno.”
Apesar disso, defende que nenhuma solução teria efeitos imediatos. “É possível resolver, não de imediato. Se tornasse agora o pré-escolar universal e pusesse baterias de recursos para ensinar os miúdos do 1.º e 2.º ano a ler e a escrever, levava 10 anos até ver esses resultados no PISA. Mas é nesse efeito de longo prazo que se deve apostar.”
Sofia Ramalho também defende programas de prevenção precoce nas escolas para identificar sinais de alarme relacionados com o desenvolvimento, a aprendizagem e o comportamento. A partir daí, é ir ajustando o ensino. “É importante aproveitar as janelas de oportunidade de desenvolvimento das crianças, há momento próprios para serem estimuladas as competências de leitura, escrita, numeracia. Se a intervenção for precoce, estamos a diminuir a probabilidade de os alunos virem a ter dificuldades no futuro. Isto promove mais igualdade.”
Brincar, aprender ou aprender a brincar? São muitos os caminhos do pré-escolar
Haver creches para todas as crianças é fundamental, diz. “O tempo da creche tem impacto futuro. Quem não tem capacidade para estimular adequadamente o seu filho precisa ainda mais deste equipamento social e ainda mais da escola para poder providenciar aquilo que as famílias não conseguem por falta de tempo e de conhecimento.” Sofia Ramalho dá o exemplo dos trabalhos para casa: “Em famílias vulneráveis, vai reproduzir uma desigualdade, vai aumentar os níveis de stress.”
Para o ministro da Educação, a solução para as desigualdades sociais entre alunos passa também por uma colaboração “permanente e autêntica” no seio das comunidades educativas, assim como entre estas e outras entidades que “reconhecem cada vez mais o valor da educação”. Mas não defende que o foco esteja todo no início da escolaridade. O ministro não nega a sua importância e diz estar a trabalhar, com as autarquias, “para que o acesso das crianças à educação pré-escolar possa ser generalizado e, também, para que a educação pré-escolar tenha cada vez mais qualidade”, afirmando que o Governo tem reforçado o foco no pré-escolar, abrindo milhares de novas vagas.
Mas isso não é suficiente. “Não é possível ter apenas um foco. Sabemos que, indubitavelmente, o ensino básico e, em particular, o 1.º ciclo, é absolutamente estruturante de todas as aprendizagens que depois se realizam ao longo da vida. É por isso que temos vindo a dar muito mais atenção a uma abordagem preventiva do insucesso escolar”, diz Tiago Brandão Rodrigues. Contudo, na sua opinião, o desafio da inclusão e da igualdade de oportunidades coloca-se em todos os níveis de ensino, em todos os grupos sociais e em todas as fases da vida.