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A entrada dos rebeldes sírios em Damasco na madrugada deste domingo pôs fim a um regime autoritário que tomou conta da Síria durante as últimas quase seis décadas. No centro do regime esteve uma família: os Assad. Hafez al-Assad governou durante 30 anos com punho de ferro e guiou o seu primeiro filho, Basil, para seguir os seus passos.
Porém, Basil nunca chegou a Presidente. A sua morte prematura, em 1994, obrigou o regime a repensar os planos e a preparar para o poder o seu irmão mais novo, Bashar, que se encontrava a estudar medicina em Londres — ia ser oftalmologista. A chegada de Bashar al-Assad ao poder, em 2000, trouxe uma lufada de ar fresco à Síria. Mas a “primavera de Damasco” durou apenas um ano e, rapidamente, Bashar aprendeu a seguir o guião da família.
Ao fim de 24 anos no poder, treze deles afundados em guerra civil — a segunda mais mortífera deste século –, Assad foi deposto e fugiu para a Rússia este domingo. Mas como é que os Assad souberam navegar os desafios e manter de pé o regime durante os últimos 54 anos?
O golpe de Estado de Hafez e o início do regime dos Assad (1970-2000)
Hafez al-Assad era militar da Força Aérea síria e membro do partido Baath — de ideologia pan-árabe e socialista. Participou no golpe de Estado militar de 1963 que pôs o seu partido no poder na Síria. Foi a partir de dentro que acumulou poder ao seguir a regra, como define o The Guardian, “toda e qualquer oposição deve ser esmagada violentamente“. Chegou a Presidente depois de uma cisão interna no partido e de ter protagonizado um novo golpe de Estado em 1970.
Os trinta anos que esteve no poder foram caracterizados por uma ideologia de nacionalismo árabe, economia centralizada, repressão política e a imposição da sua ideologia alauita — um ramo do xiismo, num país de maioria sunita. Um dos momentos mais marcantes da sua liderança foi a forma como travou a rebelião da Irmandade Muçulmana em Hama, em 1982.
Hafez deu ordens ao exército que avançasse sobre a cidade: a ofensiva, levada a cabo por terra e com ataques aéreos, durou quase um mês e 25 mil pessoas foram mortas, entre insurgentes, forças do regime e civis. “Foi o modelo arrepiante para como o regime de Assad viria a lidar com a oposição”, descreve o Wall Street Journal.
O temperamento do filho mais velho, Basil al-Assad, é descrito como semelhante ao seu: expansivo, combatente e militarista. De Bashar é feito um desenho muito diferente: modesto, reservado e apaixonado por ciência e medicina. A morte de Basil num acidente de carro colocou-o na rota para assumir o poder.
A chegada ao poder de Bashar al-Assad e as mudanças promissoras dos primeiros anos (2000-2011)
Em 1994, Bashar estava a estudar em Londres para ser oftalmologista. Regressou à Síria para completar, em tempo recorde, o percurso militar que o irmão tinha realizado. Em três anos chegou a general. Quando Hafez al-Assad morreu, em 2000, Bashar tinha apenas 34 anos. O Parlamento apressou-se a aprovar uma emenda na Constituição para baixar a idade necessária para se ser chefe de Estado: até aí, a Constituição previa 40 anos e passou a ser 34. Um referendo nesse mesmo ano deu a Bashar al-Assad 99,74% dos votos, num boletim em que o seu nome era o único.
O primeiro ano da sua liderança foi promissor. Trouxe consigo de Londres a mulher de origem síria e britânica, Asma, e instalaram-se num apartamento em Damasco, longe dos luxos tradicionais do palácio presidencial. Num perfil da revista Vogue de 2011, Asma era descrita como “a rosa do deserto”. O recém-eleito Presidente libertou presos políticos da oposição ao seu pai e criou fóruns de discussão para intelectuais, aliviando a repressão. A nível económico, retirou vários monopólios ao Estado, estabelecendo um mercado livre e abrindo a primeira bolsa de valores no país. Esse primeiro ano ficou conhecido como “a primavera de Damasco”.
Mas o mercado ficou dominado por empresas que pertenciam à elite política e a abertura para o diálogo político não se refletiu na democratização das instituições. Em 2001, mil intelectuais sírios apresentaram uma petição para a criação de novos partidos e uma democracia multipartidária. Em resposta, o regime acabou com os fóruns de discussão e prendeu novamente ativistas políticos. Damasco era — novamente — “o reino do silêncio“, como definiu o opositor Suheir Atassi, citado pelo Le Monde.
Tal como o seu pai, Assad continuava a rodear-se de pessoas próximas em Damasco. Na região, a instabilidade internacional crescia. Em 2003, os Estados Unidos invadiram o Iraque; em 2005, o primeiro-ministro libanês foi assassinado e o Ocidente apontou o dedo à Síria; em 2006, deflagrou a guerra entre Israel e o Hezbollah. Assad procurou aproximar-se de aliados e adversários ao dialogar com Washington, Paris, Teerão e Ancara.
Mas uma nova primavera viria a pôr fim a todas as tentativas de Assad estabilizar o seu regime. A pedra no charco foram as revoluções na Tunísia e no Egito que começaram a Primavera Árabe. As ondas chegaram à Síria com um grafitti em Deera, no sul do país: “A tua vez está a chegar, doutor”.
A Primavera Árabe e a longa guerra civil (2011-presente)
Os jovens responsáveis pela frase foram presos, espancados e as unhas foram-lhes arrancadas, lembra o Le Monde. A violência com que o regime respondeu às ações dos jovens e aos pedidos de clemência dos pais gerou uma onda de protestos. Os primeiros em Deera em março de 2011, mas rapidamente alastraram ao resto do país.
As forças do regime responderam com detenções e violência contra os manifestantes. Alguns manifestantes armaram-se, alguns soldados de Assad desertaram e fortaleceram-se grupos de revolta armada pelo país todo. O maior destes grupos foi o Exército Livre da Síria, que contou com o apoio da Turquia, do Qatar e da Arábia Saudita. Multiplicaram-se outros grupos, que contam com o apoio de al-Qaeda e grupos extremistas islâmicos.
O antigo embaixador dos Estados Unidos na Síria, diz que a guerra civil despoletada em 2011 será o legado de Assad. “Vai ficar para a História como um ditador brutal que atirou o seu país para uma guerra horrivelmente destrutiva e sangrenta”, afirmou Robert Ford, citado pelo Wall Street Journal. O jornal norte-americano lembra a longa lista de crimes contra a Humanidade que o regime de Assad é acusado de ter cometido durante a guerra. Ataques com gás cloro e gás sarin, utilização de explosivos improvisados lançados do ar contra áreas em que os rebeldes estavam ou o cerco de cidades tomadas pelos rebeldes — que obrigaram os civis a sobreviver alimentado-se de relva, denunciaram as Nações Unidas.
Com o apoio aéreo da Rússia e de milícias ligadas ao Irão, entre elas o Hezbollah, a contraofensiva de Assad avançou contra as posições rebeldes, que tinham mais força no norte do país. Em 2012, uma nova Constituição foi aprovada por referendo para entregar a autonomia aos territórios curdos no nordeste do país, que, com o apoio dos Estados Unidos, se focaram no combate às forças do autoproclamado Estado Islâmico. “Mas foi muito pouco, muito tarde”, como escreve o Le Monde.
Em 2013, os Estados Unidos traçaram a utilização de armas químicas como ferramenta de guerra como uma linha vermelha e ameaçaram intervir diretamente. Assad cedeu, destruindo o arsenal químico. No ano seguinte, as tropas do regime conseguiram recuperar Homs, a pouco menos de 200 quilómetro de Damasco, pondo fim aquele que foi um dos cercos mais longos da guerra civil. Em 2016, as tropas do regime reconquistaram Alepo, a segunda maior cidade, depois de uma longa ofensiva.
Em treze anos de guerra, foram mortas mais de 500 mil pessoas. 12 milhões de pessoas ficaram deslocadas, quase metade da população pré-guerra de 23 milhões, e chegaram à Turquia, Líbano e Jordânia. Em 2015, cerca de um milhão de sírios tinha chegado à Alemanha, através da rota dos Balcãs.
“Ao contrário do seu pai, com quem se podia negociar, Bashar é um mentiroso compulsivo. Todos os que tentaram negociar com ele saíram queimados. A única estratégia é ‘ele ou o caos’”, relatou, à data, uma pessoa próxima do regime sírio ao Le Monde. Vários analistas argumentam que as mudanças de posição de Assad foram uma tentativa de sair da sombra do pai e até do irmão e assumir-se a título próprio.
A queda de um regime que se destruiu a partir de dentro
Um cessar-fogo mediado pela Turquia e a Rússia pôs fim à contraofensiva do regime, em março de 2020. No ano seguinte, Bashar al-Assad foi reeleito Presidente, com 95% dos votos. Mas desde aí a guerra esteve apenas “em lume brando”, define o Wall Street Journal. Os vizinhos do Médio Oriente pareciam estar resignados com o regime de Assad, mas Ocidente nunca deixou de aplicar sanções.
Internamente, a grave crise económica que o país enfrentava, o colapso do setor bancário em 2019, a inflação galopante e a falta de acesso a bens essenciais continuaram a alimentar o descontentamento interno, mesmo entre as alas mais próximas dos Assad.
O lume reacendeu-se agora com a ofensiva do grupo rebelde Hayat Tahrir al Sham (HTS), que tomou a capital este domingo, depois de uma ofensiva que começou no norte do país e avançou até Damasco em menos de duas semanas e encontrando pouca resistência no caminho. Ao contrário do que aconteceu em 2011, Assad não contou com o apoio da Rússia ou do Hezbollah, ambos atores principais dos seus próprios conflitos, com a Ucrânia e Israel respetivamente.
Aron Lund, analista de segurança na Suécia, argumenta ao Wall Street Journal que o regime se destruiu a partir de dentro. “O regime quebrou. Não tem a ver com o tamanho da pancada, foi a porta”, afirma. Os rebeldes, que preparavam a ofensiva há um ano, encontraram a porta e conseguiram deitar abaixo o regime que os Assad construíram ao longo de décadas.