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Se, em Moscovo, os copos se erguiam para brindar a Aleksandr Lukashensko, nas redes sociais, os opositores do Presidente da Bielorrússia contavam espingardas. Viram, na revolta contra o regime de Vladimir Putin, uma oportunidade para se livrarem do seu próprio ditador, apesar de poucos analistas preverem o sucesso de uma jogada desse tipo. Mesmo que, agora, o oligarca russo Yevgeny Prigozhin diga que “o objetivo não era derrubar o regime”, a verdade é que, no sábado, o mundo assistiu ao fundador do Grupo Wagner avançar em direção à capital russa, acompanhado de milhares de mercenários. A cerca de 200 quilómetros de Moscovo, onde as ruas estavam carregadas de obstáculos, preparadas para travar um golpe de Estado, foi um telefonema de Lukashensko para Prigozhin que fez o russo carregar no travão. Inverteu a marcha e seguiu para Minsk.
Como é que um grupo de mercenários infligiu o maior ataque à autoridade de Putin em 20 anos
O telefonema entre os dois homens que se conhecem há 20 anos, segundo um assessor do Presidente bielorrusso, foi uma conversa “muito masculina” que “faria corar as mães”.
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No imediato, a imagem de Lukashensko sai reforçada: torna ainda mais sólidos os laços com a Rússia de Putin, passa a ser visto como um potencial mediador do conflito com a Ucrânia, e ganha pontos dentro do seu próprio país graças à fugaz ascensão geopolítica. Mas, entre a parte da população da Bielorrússia que tem pouca simpatia pela vizinha Rússia — e entre os políticos de Minsk no exílio — a chegada de Prigozhin, visto como um criminoso de guerra, não foi bem recebida. E pelo Ocidente também não.
Na NATO, Polónia, Letónia e Lituânia já pediram o reforço das defesas da fronteira com a Bielorrússia devido à presença do Grupo Wagner.
Lukashenko “mostrou que ainda é útil para a Rússia” e para Putin
Entre os brindes no Kremlin e a contagem de espingardas na oposição, os primeiros têm muito mais peso para Lukashenko que, através de uma jogada de relações públicas, vendeu a imagem de pacificador junto do público que lhe importa, enquanto a ligação com a Federação Russa sai fortalecida. E esse é o maior ganho que vai conseguir.
“Lukashenko simplesmente mostrou que ainda é útil para a Rússia, e é por isso mesmo que ainda está em Minsk”, defende John Lechner. O investigador, que está atualmente a escrever um livro sobre Prigozhin, sublinha que Lukashenko conseguiu mostrar a Putin que não deve descartá-lo. Por outro lado, ao dar abrigo a Prigozhin e aos seus mercenários, ganha uma espécie de guarda pessoal de elite, disse Lechner em declarações à Al Jazeera.
O analista russo Nikolay Mitrokhin concorda. “Se Prigozhin ficar na Bielorrússia e administrar o Grupo Wagner, ou algo semelhante, isso aumentará a influência política de Lukashenko, que terá o seu próprio exército privado”, defendeu o professor da Universidade de Bremen, Alemanha. Por outro lado, “também mostra aos líderes das antigas repúblicas soviéticas que ainda é um intermediário astuto que pode resolver conflitos agudos ou, pelo menos, diminui-los”.
Mas se a presença de Prigozhin pode ajudar a colher frutos a Oriente, no Ocidente o efeito será o contrário. Lukashenko continua a ser conhecido como o último ditador da Europa e Prigozhin é um criminoso de guerra, dois detalhes a que os governos da União Europeia e dos Estados Unidos não deverão fechar os olhos.
É essa a análise de Igar Tyshkevich — analista bielorrusso sediado em Kiev e que, nos últimos dias, deu várias entrevistas — já que ao tornar-se um porto seguro para os mercenários do Grupo Wagner e para o seu fundador, Lukashenko perde qualquer hipótese de restaurar laços com o Ocidente (o que não parece ser um dos seus principais interesses).
“É por isso que Lukashenko entrou num formato tradicional desta fase da sua carreira política – venceu taticamente, mas estrategicamente colocou-se numa posição muito complicada”, sublinha Tyshkevich.
Sviatlana Tsikhanouskaya, a líder da oposição bielorrussa, que vive exilada, pediu aos compatriotas para não desperdiçarem a oportunidade. Em 2020, foi candidata às presidenciais contra Lukashenko, depois de o seu marido Sergei Tikhanovsky — o candidato anterior — ter acabado na prisão, antes de os bielorrussos votarem. Ela própria acabou condenada a uma pena de prisão de 15 anos, já depois de ter deixado o país.
As eleições de 2020 deram a vitória a Lukashenko, contestada por parte da comunidade internacional, com diversos países ocidentais a considerarem os resultados fraudulentos. Já o apoio de Putin foi fundamental para acalmar as convulsões nas ruas de Minsk. Com maior ou menor apoio, desde 1994 que Lukashenko se mantém no poder da antiga república soviética, o que lhe concedeu o título de último ditador da Europa.
“Para Lukashenko, esta é a hipótese de ver renascer a sua influência na Rússia, da mesma maneira que a tinha no final dos anos 1990 com o Estado da União”, defende outro analista sediado em Kiev. Aleksey Kushch refere-se ao acordo feito entre Lukashenko e Boris Yeltsin, então Presidente da Rússia. A ideia era fundir os estados nos moldes da extinta URSS. No entanto, Lukashenko sonhava ser ele a liderar os dois países, ideia que caiu por terra quando Yeltsin, doente e com problemas de alcoolismo, nomeou Putin seu sucessor.
Desde então, na relação entre Minsk e Moscovo, Lukashenko tem sido sempre a figura secundária. Depois da invasão da Ucrânia, permitiu à Rússia estacionar ainda mais tropas no seu território, tem servido de zona de treino para militares russos, alberga armas nucleares russas e tem deixado que o país vizinho ataque a Ucrânia a partir do seu território. A linha vermelha de Lukashenko tem sido enviar militares seus para o palco de guerra.
Se isso não acontece oficialmente, entre os opositores do regime há quem se tenha juntado à guerra, mas do lado de Kiev. É o caso do Regimento Kastus Kalinouski que, no sábado, lançou um apelo à revolução: “Soldados, reservistas, bielorrussos, esperem pelo nosso sinal.”
Uma vitória sem efeitos duradouros. “O papel de Lukashenko foi provavelmente técnico”
Mesmo que o papel de Lukashenko nos acontecimentos de sábado não faça mudar de opinião os seus opositores, o Presidente da Bielorrússia sai da situação a ganhar. Pelo menos, no imediato. É essa a opinião de vários analistas internacionais, entre eles o politólogo bielorrusso Artyom Shraibman.
“Os serviços de imprensa de Lukashenko e de Putin, que falam sobre o incrível papel do político bielorrusso em salvar a Rússia da turbulência, não são as fontes de informação mais credíveis sobre esta guerra”, começa por escrever Shraibman num artigo de opinião no Zerkalo. O site, propriedade do principal canal de notícias independente na Bielorrúsia, o Tut.by, foi considerado pelo governo de Minsk como extremista.
“Na verdade, o papel de Lukashenko foi provavelmente técnico”, escreve o politólogo, argumentando não ser do interesse do Kremlin expor ao grande público os mediadores mais significativos do conflito com Prigozhin. Shraibman aponta mesmo o nome — citado em vários canais russos no Telegram — de Alexei Dyumin, antigo guarda-costas de Putin e agora governador da região de Tula, como o do verdadeiro pacificador.
Ainda assim, Lukashenko tem motivos para se sentir vitorioso, segundo o politólogo bielorrusso, que trabalha com o Carnegie Russia Eurasia Center. “Do ponto de vista do apoio dentro do país (entre o público crédulo nas notícias oficiais) e da gratidão de Moscovo pelos serviços prestados, e ainda significativos, Lukashenko sairá vitorioso da situação. Pelo menos num futuro próximo.” No entanto, essa situação acabará por se alterar, até porque o destino de Minsk e de Moscovo ficam ligados por um cordão umbilical.
“Num futuro mais distante, o destino da Bielorrússia será determinado pela trajetória de desenvolvimento do regime russo, que recebeu o golpe político mais grave das últimas décadas, porque expôs o grau da sua fragilidade, da hostilidade interna e do caos”, conclui o analista. Sobre Prigozhin, Shraibman diz apenas que ir para a Bielorússia “não significa ficar na Bielorrússia”.
No primeiro discurso público, Alexander Grigoryevich veste a pele de mediador
Esta terça-feira, três dias depois do motim do Grupo Wagner, Alexander Lukashensko falou sobre a conversa que manteve com Prigozhin que, garantiu, já se encontra na Bielorrússia.
Embora, tenha afirmado não ser um herói — nem ele, nem Putin, nem Prigozhin — não deixou de detalhar os contornos da conversa e os argumentos que usou para levar o oligarca russo a puxar o travão de mão. “Durante a primeira ronda, trocámos palavrões durante cerca de 30 minutos. Mais tarde, analisei a conversa e o número de palavrões era dez vezes superior ao das palavras normais”, disse o Presidente citado pela agência estatal Belta.
Ao longo do discurso, Lukashenko contou como deu conselhos a Putin, como convenceu Prigozhin a parar e lhe exigiu que não houvesse derramamento de sangue. E, claro, falou da sua opção de abrir a porta do país aos wagneritas, com quem quer aprender sobre a experiência de guerra. “Se os comandantes vierem para a Bielorrússia e nos ajudarem, se nos disserem o que é importante agora, isso não tem preço. É isso que queremos dos Wagner neste momento”, disse Lukashenko.
À população, garantiu não haver motivos para recear o grupo armado. “Vamos estar muito atentos ao que fizerem.”
“No momento mais perigoso da biografia de Putin, Lukashenko estava lá para ajudar e servir o seu chefe de Moscovo”, disse Pavel Slunkin, antigo diplomata bielorrusso, citado pelo Washington Post. “Lukashenko ganha pontos por servir o seu sócio e por mostrar ao Ocidente que está próximo de Putin para que possa vender os seus serviços como mediador — o que é um absurdo, porque ele faz parte da guerra.”
O que pode ser um absurdo para o Ocidente, não é em Moscovo. Vladimir Solovyov, um dos mais conhecidos propagandistas do Kremlin, foi efusivo nos aplausos a Lukashenko. “As excelentes relações entre os nossos Presidentes, mais uma vez, salvaram o Estado da União de um desastre terrível. Em 2020, fomos em seu auxílio e agora, é claro, o papel de Alexander Grigoryevich [Lukashenko], a sua sabedoria, o seu talento como negociador não pode ser subestimado.”
Putin frágil pode criar problemas domésticos na Bielorrússia
Hanna Liubakova é jornalista, investigadora e uma das especialistas do Atlantic Council — think tank norte-americano que já se pronunciou sobre os acontecimentos. A bielorrussa segue uma linha de pensamento semelhante à do politólogo Artyom Shraibman: “Embora a posição de Lukashenko possa ser fortalecida por esta mediação inesperada, a longo prazo, o seu regime enfrentará as repercussões da insurreição liderada pelo Grupo Wagner.”
Na opinião da jornalista, a crescente desmotivação em relação às ações da Rússia “podem levantar preocupações entre os círculos verticais de poder, militares e de elite dentro da Bielorrússia”. Assim, acredita que os “desenvolvimentos caóticos no país vizinho” levarão a questionar as políticas de Lukashenko.
“Com a autoridade de Putin enfraquecida, o regime em Minsk pode encontrar-se com apoio reduzido da Rússia. Desde o início da invasão em grande escala, Lukashenko declarou lealdade inabalável ao Kremlin, permitindo ataques e usando o território bielorrusso como campo de treino, desconsiderando a vontade da maioria dos bielorrussos”, afirma Hanna Liubakova, que considera que o Presidente do seu país fez “uma aposta arriscada na rápida vitória da Rússia na guerra contra a Ucrânia, apostando tudo nesse resultado”.
O problema, aponta, é que a rebelião de Prigozhin indica uma crise política na Rússia e destrói o mito da invencibilidade e poder esmagador de Moscovo.
Aliás, Hanna Liubakova aponta para as declarações recentes dos principais opositores de Lukashenko — Sviatlana Tsikhanouskaya e o Regimento Kastus Kalinouski — que aproveitaram o momento para apelar às elites. “A insurreição da Wagner será mais um argumento para apresentar a Rússia como fonte de instabilidade e conflito. Atrai os bielorrussos que se querem manter afastados da guerra contra a Ucrânia.”
Esse é o lado negro da ligação que se estreita entre os dois Presidentes, já que a fraqueza de um afeta a força do outro. “Isto liga ainda mais Lukashenko a um navio que está a afundar-se”, defende Tomas Jermalavicius, do Centro Internacional de Defesa e Segurança da Estónia.
Mas enquanto o regime de Putin se mantém à tona, Lukashenko torna-se num “amigo muito, muito precioso”, uma amizade que tem preço. “Essa preciosidade vale dinheiro – será reembolsada financeiramente, porque é assim que funciona a amizade bielorrussa-russa”, reforça, por seu lado, Shraibman, que volta a alertar para os perigos que o Presidente da Bielorrússia enfrenta se Putin sair derrotado ou enfraquecido de um conflito doméstico.
“Se o regime de Putin falhasse ou enfraquecesse dramaticamente, seria um golpe significativo para a estabilidade do regime de Lukashenko – alguns diriam que seria um golpe fatal”, conclui Shraibman.
Lukashenko terá um papel mais importante na política russa, mas oposição fica agitada
Foi no Telegram que a líder da oposição falou pela primeira vez, num vídeo com pouco mais de três minutos. “Putin pode tentar arrastar os militares bielorrussos para o seu próprio conflito interno para tornar-nos parte desse conflito”, frisou Sviatlana Tsikhanouskaya na sua mensagem. “Putin e Prigozhin não são amigos da Bielorrússia e vocês não têm de escolher o lado de qualquer um deles”, acrescentou a política, sublinhando que os bielorrussos têm de defender os interesses, a segurança e a soberania do seu próprio país.
A líder da oposição apelou ainda ao próprio exército do país, dizendo que não se pode ficar à espera que a Rússia deixe a Bielorrússia em paz. “Agora é a melhor hora para expulsar os militares russos do nosso país. Se desperdiçarmos esta oportunidade, a Rússia fará connosco o mesmo que fez com a Ucrânia.”
Já nesta segunda-feira, em declarações à Bloomberg, Sviatlana Tsikhanouskaya sublinhou que a oposição “rejeita a presença de tropas russas, armas nucleares e wagneritas no território” do país. “Lukashenko não é um pacificador, não tem legitimidade e não representa o povo bielorrusso”, acrescentou a líder da oposição.
Olga Karach, da organização humanitária bielorrusa Nash Dom [Nossa Casa], recorda exatamente as presidenciais de 2020 e os protestos que tomaram conta das ruas de Minsk, e de como a Rússia foi rápida a enviar ajuda a Lukashenko, garantindo que os protestos eram esmagados e os opositores presos ou enviados para o exílio. “Antes, Lukashenko estava no papel do suplicante que não conseguia restaurar a ordem no seu próprio país sozinho… Agora é Putin quem só pode restaurar a ordem com ajuda externa.”
A ativista de direitos humanos acredita que, depois dos acontecimentos de sábado, o Presidente bielorrusso sairá beneficiado na política interna, disse à Deutsche Welle. “A sua autoridade irá crescer, especialmente entre o aparato de segurança”, acredita, o que, ao mesmo tempo, pode enfraquecer a oposição política.
“Lukashenko terá um papel mais importante na política interna e externa da Federação Russa. Não me parece que haja muitas pessoas, nem em Moscovo nem no Kremlin, que vão gostar deste cenário”, concorda Yauheni Preiherman, analista bielorrusso, diretor do think tank Minsk Dialogue Council on International Relations.
A líder da oposição não foi a única a apelar à revolução. “As condições adequadas para derrubar a ditadura estão a aproximar-se.” Foi com estas palavras que o Regimento Kastus Kalinouski, que luta pela Ucrânia no conflito com a Rússia, deixou claro de que lado está durante as convulsões do fim de semana. “Este é o começo do fim da grande tirania. Apelamos a todos os militares bielorrussos: não participem no conflito interno da Rússia; a guerra civil não é da nossa conta”, escreveram os membros do regimento na sua página oficial de Telegram.
Esta mensagem não pode ser ignorada pelo chefe de Estado da Bielorrússia, explica Yauheni Preiherman, analista bielorrusso. “Lukashenko tem interesse em prevenir uma grande crise na Rússia. A grande preocupação do governo de Minsk é que os combates na Ucrânia possam espalhar-se para o território bielorrusso”, disse o especialista à alemã Deutsche Welle.
Na mensagem dos militares, apela-se a que os bielorrussos façam uma escolha: cumpram “ordens criminosas” ou permanecem fiéis ao povo bielorrusso. Segundo o Regimento Kastus Kalinouski, há na Bielorrússia uma reserva de militares e de civis, que estão prontos para libertar o país da ocupação.
A mensagem termina exatamente com um apelo a que todos se juntem a essas reservas: “Vamos precisar de pessoas para tomar medidas decisivas. Junte-se a batalhões de autodefesa. Cada cidade, cada rua tem de estar preparada para controlar o seu território e manter a ordem. Soldados, reservistas, bielorrussos, esperem pelo nosso sinal.”
O apelo, na opinião de Preiherman, se tivesse sucesso, poria bielorrussos a lutar ao lado dos ucranianos contra o regime de Putin. “O interesse de Lukashenko é impedir que isso aconteça”, conclui Preiherman.