No momento em que Yevgeny Prigozhin anunciou que ia conduzir uma insurreição contra o poder militar do Ministério russo da Defesa, o líder da organização paramilitar revelou que tinha ao seu lado 25 mil homens dispostos a ir “até ao fim” na chegada a Moscovo. “Estamos prontos para lutar e para morrer”, prometeu o homem que começou por ser o simples cozinheiro de Vladimir Putin. Apesar da força das palavras de Prigozhin, nada fazia prever que os mercenários fossem capazes de tomar uma cidade com a importância estratégica de Rostov e que conseguisse marchar sem aparente oposição até às portas de Moscovo. Resta saber como é que um grupo desta dimensão conseguiu ameaçar o Kremlin e infligir o maior golpe para a a autoridade de Putin em 20 anos.

Que poder conseguiram os Wagner, dentro e fora da Rússia, para recentrarem todas as atenções da guerra na Ucrânia num conflito dentro da própria Rússia? Aparentemente, atendendo ao filme dos acontecimentos, muito. Ainda que não exista qualquer referência oficial ao número de soldados que fazem parte do exército privado que tem tido uma ação relevante durante a invasão da Rússia à Ucrânia, nem tão pouco sobre o número de paramilitares envolvido nesta marcha até Moscovo — suspensa por decisão do próprio Prigozhin sob o pretexto de evitar um “banho de sangue” –, a forma como o grupo conseguiu avançar pelo território russo foi uma prova inequívoca do poderio militar dos mercenários.

Com as informações que existem até ao momento, é ainda prematuro explicar como é que Prigozhin conseguiu bloquear Moscovo com relativa facilidade. Os especialistas em política internacional vão variando entre várias teses, complementares ou não: os Wagner terão tido o apoio no terreno de fações das forças armadas russas descontentes com o rumo da guerra; podem ter tido o conforto de alguns setores ligados à elite política e económica; e ou a adesão setores da sociedade civil que exigem mudanças na guerra da Ucrânia.

Durante os meses em que o grupo Wagner protagonizou alguns dos momentos mais relevantes da guerra na Ucrânia, todos os números apontavam para a presença de 20 mil paramilitares a combater território ucraniano em nome desta organização. E, ainda que os números nunca tenham sido claros, Prigozhin chegou mesmo a dizer que durante a batalha de Bakhmut morreram 20 mil soldados, sendo que metade pertenceriam ao grupo Wagner.

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Entre os homens de Prigozhin estão prisioneiros que foram recrutados para lutar na Ucrânia numa altura em que, alegadamente, começou a haver uma escassez de soldados do lado do Kremlin. Esse reforço feito nas prisões russas foi confirmado e motivado pelo próprio líder do grupo Wagner, que aliciou os prisioneiros para aceitassem ir para a frente de guerra e que se insurgiu contra quem discordou: “Aqueles que não querem que os prisioneiros lutem nas companhias militares, mandem os seus filhos para a linha da frente. Militares e prisioneiros ou os teus filhos, tu é que decides.”

“Quer poder e influência.” Com a hipótese de Putin ficar fora de cena, poderá o líder do grupo Wagner tornar-se o seu sucessor?

Da influência crescente às sanções

O grupo Wagner foi fundado em 2014 por Yevgeny Prigozhin e tornou-se um braço de Vladimir Putin. Uma das primeiras missões realizou-se na Crimeia, numa altura em que vários mercenários foram acusados de terem atuado sem identificação para apoiar as tropas russas pró-separatistas. A relação próxima entre Prigozhin e Putin terá sempre facilitado o trabalho conjunto entre as tropas do Kremlin e os mercenários — o que veio a confirmar-se na guerra na Ucrânia e que poderá ter tido um ponto final nesta rebelião que tinha como objetivo chegar a Moscovo.

Nos últimos meses, o líder do grupo Wagner, Yevgeny Prigozhin, desdobrou-se em críticas contra o Ministério da Defesa russo, chefiado por Sergei Shoigu, e contra o comandante das tropas russas, Valery Gerasimov. A frustração era visível, mas quase ninguém estava à espera que, esta sexta-feira, a milícia paramilitar decidisse entrar por território russo, num movimento que o Serviço Federal de Segurança equiparou a um apelo à guerra civil.

Na cabeça de Yevgeny Prigozhin, aqueles dois responsáveis militares, em quem o Presidente russo confia quase de olhos fechados, são a causa dos insucessos militares russos na Ucrânia, que, na versão do chefe da milícia paramilitar, já originou a morte a mais de 100 mil pessoas. “Incompetentes”, chegou a descrever o líder do grupo Wagner.

Este sábado, no entanto, Prigozhin, uma criação de Putin, atingiu diretamente e de forma inédita o Presidente russo. “Ninguém pretende entregar-se por exigência do Presidente [russo], do Serviço de Segurança Federal ou de quem quer que seja. Os russos não podem continuar a viver imersos na corrupção, na mentira e na burocracia”, disse o líder do Grupo Wagner — Putin, por sua vez, ameaçou esmagar qualquer ameaça, falando em “facada nas costas” e prometendo punir “aquele que organizou e preparou a rebelião militar traiu a Rússia e responderá por isso”.

Atendendo às informações avançadas pela própria imprensa russa, Putin esteve muito longe de esmagar militarmente o Grupo Wagner. Prigozhin, que negociou diretamente com Lukashenko, presidente bielorruso, terá conseguido satisfazer três das condições que impunha para suspender a marcha: o caso aberto pela procuradora-geral russa contra Prigozhin deve cair; os combatentes do grupo Wagner que participaram na guerra na Ucrânia terão imunidade legal; e o parlamento russo discutirá a situação e o estatuto do Grupo Wagner.

“[O Kremlin] queria dissolver o Grupo Wagner. Partimos a 23 de junho. Num dia, ficámos a pouco menos de 200 km de Moscovo e não derramámos uma única gota do sangue”, congratulou-se Prigozhin, tentando provar, mais uma vez, que a sua demonstração de força tinha sido bem sucedida.

Nos últimos anos, o grupo Wagner esteve ativo com soldados e combates em países africanos, nomeadamente na República Centro-Africana, na Líbia, no Moçambique e no Mali, com vários países a pediram apoio aos mercenários para proteção de minas de diamantes e de ouro, mas também para fornecer segurança contra grupos militantes islâmicos.

“O grupo Wagner é hoje o ator russo mais influente em África, e as suas atividades e empresas de fachada exercem uma influência maligna sobre o continente”, revelava Julian Rademeyer, investigador na The Global Initiative against Transnational Organized Crime, à DW, durante a Conferência de Segurança de Munique.

O especialista frisou que o grupo “não atua sozinho” e que outros grupos associados ao Wagner estão “presentes em mais de uma dezena de países africanos” e que “opera politicamente”, nomeadamente com envolvimento em “regimes autoritários”. Por outro lado, terá também envolvimento económico em áreas como “a mineração, extração e na indústria madeireira, para obter riqueza”.

“Essas atividades constituem uma influência maligna para o continente. Pode dizer-se que os homens da Wagner fortalecem ditaduras em África”, referia o especialista na conferência que se realizou em março, quando a guerra na Ucrânia já decorria e quando já era conhecida a influência dos Wagner no terreno.Por outro lado, além de África, há também relatos de que o exército privado atuou na Síria, onde lutou ao lado das forças pró-governo e com a missão de proteger campos de petróleo.

A influência do grupo Wagner não só na Rússia como em vários países reflete-se também na necessidade que o Ocidente tem de sancionar o exército privado de Prigozhin. A UE tem o grupo na sua “lista negra” de entidades acusadas de ameaçar a integridade territorial, soberania e independência da Ucrânia, mas também os EUA e o Reino Unido o fizeram.

O ódio às chefias militares e um mercenário ambicioso: o que se passou para o grupo Wagner começar uma “rebelião armada”?