Vinte e cinco euros num ano ou dois euros por mês. Esta tem sido a narrativa do Governo para suavizar na opinião pública o impacto da medida que está a desviar as atenções daquele que era o protagonista escolhido para o Orçamento do Estado (OE) de 2024. Em vez de ser o OE da redução do IRS, passou a ser o OE do “escândalo fiscal” que é o aumento do imposto único de circulação (IUC).
Com simulações que dão conta de subidas de até 1000% no imposto cobrado sobre automóveis e motas anteriores a 2007, e apanhando a boleia de uma petição contra este aumento que já recolheu 270 mil assinaturas, a direita, e o PSD em particular, parece ter escolhido o IUC como principal arma de ataque ao OE e vai propor a sua eliminação em sede de proposta de alteração. À esquerda também se ouviram críticas (o PAN foi um dos partidos que levantou a voz no debate quinzenal com o primeiro-ministro) e até dentro do PS haverá desconforto com uma medida que à partida penaliza rendimentos mais baixos (a quem se associa a posse de veículos antigos). O Governo tem fechado a porta a qualquer recuo neste matéria e António Costa foi categórico no debate quando retaliou face ao “escândalo fiscal” invocado pelo líder da IL, Rui Rocha.
“O escândalo fiscal significa aumento máximo de 25 euros por ano. Faz esse escândalo no ano em que o aumento são 60 euros no salário mínimo nacional, em que um casal com dois filhos e um rendimento de 1500 euros vai pagar menos 874 euros de IRS. Fazer política implica fazer escolhas. O senhor deputado tem de escolher, mais 25 euros de IUC ou 874 euros de IRS? A minha escolha é simples, quero baixar os impostos sobre os rendimentos do trabalho e dos pensionistas, quero maior justiça social. A oposição tem de decidir se a emergência climática é todos os dias ou não”.
Por trás da não cedência não estarão tanto preocupações de natureza orçamental — o programa de abate aos automóveis antigos até custa mais (pelo menos nas previsões do Orçamento, que aponta para um gasto de 129 milhões nesse plano de abate e de uma receita adicional de 84 milhões com a reforma ambiental do IUC) — nem apenas ambições de descarbonização do parque automóvel. Haverá também, sabe o Observador, a convicção de que esta penalização não atingirá tanto as classes de menores de rendimentos como seria de esperar. Isto porque é nos segundos e terceiros carros das famílias que é mais comum encontrar os veículos mais antigos (aqueles que ficam para os filhos depois dos pais comprarem modelos novos).
Gasóleo mais penalizado. Efeito total dos aumentos das taxas pode demorar 4 a 9 anos
As simulações feitas pela consultora PwC, a pedido do Observador, sobre os impactos de curto prazo (no próximo ano) e os de médio e longo prazo, confirmam as duas versões das contas (os 25 euros e os 1000%).
Só que os 25 euros de aumento por ano terão que ser pagos ao longo de vários anos. Por causa do travão anual introduzido há casos em que o aumento das taxas vai demorar nove a 10 anos a produzir o seu efeito total — isto se o proprietário não se livrar entretanto da viatura que é aliás um dos objetivos apontados para esta reforma que é acompanhada do incentivo ao abate. No final, os aumentos são quase sempre superiores a 100% face ao IUC de 2023 e há casos de subidas entre 800% e os 1000% quando estão em causa modelos mais antigos — um Seat Ibiza de 1994 com 1.896 de cilindrada e a gasóleo ou um Ford Fiesta de 1998 também com motor diesel com 1.608 de cilindrada.
Em termos absolutos, há aumentos ente os 100 e 200 euros. As maiores penalizações são para os carros a gasóleo e com cilindradas mais elevadas. E todos os motociclos vão ser afetados, já que até esta proposta o seu IUC não tinha componente ambiental. Ainda que nos dois exemplos apresentados o efeito do agravamento de taxas se esgote logo no primeiro ano porque é inferior ao travão de 25 euros.
De qualquer forma, o travão não evita que algumas das taxas sofram aumentos percentuais muito significativos já no próximo ano, chegando a ultrapassar os 100% em alguns dos modelos analisados pela PwC.
O limite anual de aumento de 25 euros replica um modelo que foi usado durante o tempo da troika para suavizar o aumento do IMI (imposto municipal de imóveis) provocado pela valorização extraordinária das casas. Mas neste caso o travão anual foi de 85 euros (ou um terço do aumento) e durou três anos.
Eliminar injustiça fiscal e renovar parque onde metade dos carros tem 15 ou mais anos
A reforma do imposto visa corrigir uma “injustiça” fiscal, nas palavras do ministro das Finanças, Fernando Medina, que foi criada com a substituição do antigo imposto automóvel pelo atual imposto sobre os veículos em cuja fórmula foi introduzida a ponderação das emissões de CO2 no valor das taxas. Até então, o critério era o da cilindrada. Nessa reforma de 2007, só as matrículas introduzidas após julho ficaram sujeitas às novas regras, o que gerou um enorme diferencial nas taxas aplicadas entre os carros matriculados em junho e julho do mesmo ano.
Segundo a proposta de Orçamento do Estado para 2024, metade dos seis milhões de automóveis ligeiros que pagam IUC estão livres da fatia que corresponde ao impacto ambiental. Ou seja, um total de três milhões de carros que, por serem mais antigos, são também os que, em tese, produzem mais emissões. A diferença entre as taxas pode ser de quatro vezes mais. “Em média, um veículo de categoria B (após 2007) paga cerca de quatro vezes mais (168,63 euros) do que um veículo pertencente à categoria A (44,21 euros). Essa diferença vê-se também na receita. Apesar de representarem metade do parque automóvel, os carros pré-2007 só contribuem com 21% da receita do imposto único de circulação — 488,6 milhões de euros em 2023 com um salto esperado de 20% para 586,7 milhões de euros em 2024, sobretudo por via deste agravamento de taxas.
Se há um ganho para o Estado — que irá prolongar-se por vários anos (só está quantificado o efeito no primeiro ano que é de 84 milhões de euros) –, outro argumento do Governo é a intenção de acelerar a renovação do parque onde metade dos veículos ligeiros tem 15 anos ou mais. Segundo a proposta do OE, que vai buscar estatísticas ao Ministério das Finanças, e com a exceção de 2016 e 2017, os anos em que foram registadas mais novas matrículas, perto dos 250 mil foram inscritas em 1999, 2000 e 2001.
O anuário da ACAP (Associação do Comércio Automóvel de Portugal) revela que em 2021 um quarto dos ligeiros tinha mais de 20 anos, enquanto os carros com mais de 15 anos correspondiam a 45,3% do total de carros em circulação.
Veículos importados usados foram mais de dois terços das matrículas novas em 2022
Estes dados podem ainda esconder uma fatia mais expressiva de carros usados comprados fora de Portugal, mas que entram no nosso mercado como novas matrículas. Estes números sempre foram elevados, mas segundo dados avançados pela ACAP relativos ao ano passado, a importação de carros ligeiros de passageiros usados representou 67% das novas matrículas registadas em Portugal. Esta percentagem corresponde a quase 105 mil ligeiros em segunda mão e traduz um salto muito expressivo face aos 20% a 25% de quota de mercado destes usados.
Esta evolução, que é explicada pela crise da cadeia logística que levou a uma falta de veículos usados em Portugal e tempos de espera na chegada de novos, contribui também para o envelhecimento do parque automóvel nacional e para o valor de emissões produzidas. A maioria destes “novos usados” será posterior a 2007, mas nas cilindradas mais altas poderá haver entrada de veículos mais antigos.
A proposta de OE relança um programa de abate automóvel cujo envelope financeiro estimado é de 129 milhões de euros para uma estimativa de abate de 45 mil veículos (o que dará um incentivo médio de 2.900 euros por veículo, ainda que o valor do apoio varie em função do modelo escolhido para substituir a viatura antiga, com os carros elétricos sem emissões a serem privilegiados).
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