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ILUSTRAÇÃO: Ana Martingo/OBSERVADOR
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Ana Martingo/OBSERVADOR

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IVAucher. Incentivo ao consumo ou "benesse" para quem já ia gastar na mesma?

Governo quer ajudar restauração, hotelaria e cultura. Mas empresários mal conhecem o IVAucher e alguns especialistas dizem que arrisca a não ser mais que "benesse" para quem já ia gastar na mesma.

Foi uma das medidas mais emblemáticas do Orçamento do Estado para 2021 e prometia muito. À boleia de mecanismos criados no estrangeiro, como o britânico “Eat Out to Help Out” (comer fora para ajudar), o Governo anunciou um programa para incentivar o consumo nos setores mais afetados pela pandemia: a restauração, o alojamento e a cultura, permitindo acumular o IVA gasto nesses setores e gastá-lo mais tarde. Mas, à medida que o programa avança e vão sendo conhecidos alguns números, surgem dúvidas sobre se o IVAucher será capaz de cumprir a sua finalidade – ou se não será mais do que uma “benesse” para quem já ia gastar na mesma, ou seja, puxando pouco pela economia.

Aliás, vários especialistas criticam, ao Observador, a fraca comunicação do programa nos meses em que foi possível acumular o IVA. E apontam fragilidades à forma como está a ser operacionalizado — mais concretamente, à “desconfiança” que pode surgir nos consumidores por terem de associar o número de contribuinte aos dados do cartão bancário, entregando-os a uma plataforma gerida por uma empresa que poucos conhecem e que nem tem um logótipo do Governo que permita facilmente atestar a sua autenticidade.

Os empresários dizem que “ainda é cedo” para perceber se o IVAucher levou (e vai levar) a mais consumo, mas mostram, sobretudo, desconhecimento do programa. Muitos querem “esperar para ver” se aderir compensa. Do lado do Governo, perante o que parecia caminhar para ser um desastre – com várias associações a queixarem-se da “burocracia” e dos custos associados à adesão – virou-se o jogo: em poucas semanas foi negociado um novo modelo em que, agora, as pessoas pagam a totalidade das despesas mas depois veem aparecer nas suas contas bancárias a devolução de 50% (enquanto houver saldo).

IVAucher muda. Descontos vão, afinal, ser feitos por devolução na conta do cliente no dia seguinte

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Essa foi uma negociação feita diretamente com os bancos, contornando totalmente um “elefante na sala” que é a SIBS, a dona da rede Multibanco e que tem os (mesmos) bancos como acionistas.

E a prometida injeção de 200 milhões de euros nos setores mais fragilizados? O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais explica ao Observador que essa expetativa tinha por base o consumo verificado nos primeiros três meses do ano nas atividades abrangidas e, por isso, foi o valor inscrito no Orçamento do Estado de 2021 quando ainda se acreditava que o programa ia arrancar em janeiro — foi adiado por causa do confinamento.

Para António Mendonça Mendes, a medida de avaliação do sucesso deve passar por comparar a despesa feita nos setores abrangidos em junho, o único mês apurado, com os valores gastos em 2020 e 2019. E o saldo acumulado revela despesas superiores ao mês de 2020 e quase em linha com as registadas no mesmo mês de 2019, antes da pandemia, assinala. Mas os especialistas ouvidos pelo Observador dizem que é preciso ter outros fatores em conta, nomeadamente o cansaço da pandemia, os avanços na vacinação ou as poupanças acumuladas, que podem ter impulsionado mais o consumo.

IVAucher. Como posso aderir e gastar o que acumulei? Um guia de utilização

“Já ouvi falar, mas não sei o que é. Você não me sabe explicar, pois não?”

Mesmo tornando mais simples a adesão por parte dos comerciantes, o Governo tem pela frente um desafio de divulgação que, por sinal, será difícil. É certo que as empresas ainda têm tempo para aderir e, até agora, não tiveram de fazer nada além de dar fatura aos clientes quando eles pedem, como habitualmente. Mas, a um mês do início da fase de desconto, muitos negócios estão perfeitamente alheados em relação ao programa.

Num restaurante em Elvas o gerente admitiu que a primeira vez que ouviu falar do IVAucher foi quando o jornalista do Observador lhe perguntou se já tinha aderido. Outro empresário da restauração, em Oeiras, comentou: “Já ouvi falar, mas isto é mesmo à portuguesa. Este Governo é muito bom a lançar coisas mas não informa – depois a pessoa é que tem de andar à procura, à procura…”, comentou.

“Tenho de me ir informar… Não sei como é que suposto, depois, eu receber, como é que as pessoas pagam, etc. Você não me sabe explicar, pois não?”, perguntou. Qualquer jornalista que pegue no telefone para tentar falar com o gerente de um restaurante por esse país fora sobre o IVAucher corre o risco de acabar a chamada a dar uma pequena ação de formação sobre os traços gerais do programa.

"Já ouvi falar, mas isto é mesmo à portuguesa. Este Governo é muito bom a lançar coisas mas não informa – depois a pessoa é que tem de andar à procura, à procura... Você não me sabe explicar, pois não?”
Dono de restaurante em Oeiras

Sérgio Costa, gerente do Restaurante Cernelha, no Cartaxo, também já “ouviu falar”: “Ouvi alguma publicidade, mas não sei o que é. Tenho de perguntar ao contabilista se vale a pena aderirmos, mas ele agora está de férias”. Mesmo sem saber como vai funcionar, Sérgio Costa adianta: “Não me parece que vá aderir porque, pelo aspeto, deve ser uma coisa que obriga a ir ao computador [quando os clientes estão a pagar a conta] e isso, nas horas dos almoços e jantares, não dá jeito”.

Em Castelo Branco, no Restaurante Palitão, Cláudia Ramos também parecia não saber o que era o programa mas, afinal, era só uma questão de sotaque. A empregada de mesa estava sob a impressão de que o nome se lia de forma mais afrancesada – o ivouché. Afinal, sabe o que é: “Sim, sim, já temos tido aqui pessoas que agora pedem mais fatura para depois poder gastar – como funciona, não sei bem, mas já algumas pessoas falaram nisso, sobretudo malta mais novinha”.

A funcionária ficou um pouco dececionada, porém, quando percebeu que, ao contrário da ideia que tinha, os descontos acumulados não têm necessariamente de ser gastos, depois, no mesmo restaurante. “Ah não? Pensava que era assim… ora, bolas”.

Restaurantes devem aderir (mas há quem vá “esperar para ver”)

Daniel Serra, presidente da Associação Nacional de Restaurantes (Pro.Var), confirma que essa é a perceção geral dos empresários da restauração: “A grande maioria diz que vai esperar para ver. Não vê isto com grandes olhos, desconfia do programa”, afirma, ao Observador. Sobretudo porque lhes foi comunicado que a adesão teria custos — um entrave que será entretanto ultrapassado, no novo modelo noticiado pelo Observador esta segunda-feira.

Ainda assim, Daniel Serra admite que o programa possa vir a ter “algum interesse” e ser um “benefício adicional” para os restaurantes na fase de desconto, que começa em outubro. Quem aderir poderá ser “um bocadinho mais beneficiado porque o consumidor vai aproveitar para consumir o voucher”. É por isso que está a aconselhar os empresários a aderir, mas para esperarem mais uns tempos até o fazerem — para perceber se haverá alterações, se será realmente benéfico para os restaurantes. “Haverá aqui uma semana, quinze dias para ver o que vai acontecer”, refere.

O funcionário de um restaurante encerra o espaço às 13h, horas do início do recolher obrigatório do estado de emergência no âmbito das medidas de contenção da covid-19, em Lisboa, 14 de novembro de 2020. Com 191 concelhos em risco em Portugal, o Conselho de Ministros decretou o encerramento de todos os estabelecimentos comerciais e restauração a partir das 13h00 até às 08h00 do dia seguinte, tanto no sábado como no domingo, para além do confinamento obrigatório para toda a população dos concelhos em risco a partir das 13h. ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA

“A grande maioria diz que vai esperar para ver. Não vê isto com grandes olhos, desconfia do programa”, diz presidente da Pro.Var.

ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA

Também a Associação Portuguesa de Hotelaria, Restauração e Turismo (APHORT) considera que “ainda é cedo” para perceber se o IVAucher é ou não uma “medida interessante” e se haverá grande adesão por parte consumidores e das empresas. “Das primeiras vezes que foi falado, as pessoas mostraram-se um pouco céticas”, indica o presidente, Rodrigo Pinto Barros. O responsável da APHORT acredita que o programa possa fazer sentido quando em causa estão “somas elevadas”. “Agora, um café com uma nata… sinceramente, não me parece.”

Para já, a associação não tem recebido pedidos de esclarecimento sobre o programa, “até porque o setor estava preocupado em trabalhar”. “Não me parece que uma das preocupações tenha sido o IVAucher.”

Alojamento local tenta contornar recusa do Airbnb

No lado dos alojamentos locais, o otimismo é maior. Ainda que o IVAucher não venha “salvar o ano”, pode “ter o seu interesse” ao permitir, sobretudo quando se acumulou quantias mais elevadas, fazer “escapadelas de fim de semana” que não estariam normalmente a planear, diz Eduardo Miranda, presidente da Associação do Alojamento Local em Portugal (ALEP).

Mas há uma pedra no caminho: o Airbnb já confirmou publicamente que não vai aderir ao IVAucher, alegando incompatibilidades técnicas entre a tecnologia do sistema de pagamento e a sua plataforma. Isto pode afastar o alojamento local das ofertas onde se pode descontar o IVA acumulado, já que muitos proprietários recebem cerca de 90% das suas reservas através de plataformas como o Airbnb, onde o cliente paga antecipadamente à plataforma, ou o Booking. Por outro lado, há casos em que a maioria dos clientes são estrangeiros, o que desincentiva a aderir ao IVAucher.

Para contornar essa posição do Airbnb, a ALEP quer criar um site que identifique os alojamentos que disponibilizam o desconto do IVAucher, de forma a que os clientes possam saber quem aderiu e fazer depois a reserva diretamente com o anfitrião. O Observador questionou a Booking sobre que posição vai tomar, mas ainda não obteve resposta. A plataforma, no entanto, permite em muitos casos que o pagamento seja feito só no alojamento, o que possibilitará a aplicação do desconto nos casos em que estes adiram.

Eduardo Miranda, presidente da ALEP, diz que o IVAucher não vai "salvar o ano" do alojamento local mas pode ter um efeito positivo

KIMMY SIMÕES/OBSERVADOR

Para que o programa corra como desejado no setor é ainda preciso que uma das modalidades de adesão anunciadas se concretize realmente. Quando foi anunciado, o Governo garantiu que seria criada uma aplicação sem custos, através da qual o hóspede poderia pagar e o alojamento receber o dinheiro. Só que, entretanto, “não nos foi confirmado que essa app iria mesmo ser desenvolvida e estaria pronta”. Essa questão será decisiva num setor em que a “grande maioria” dos alojamentos não tem terminais de pagamento.

No setor da hotelaria, há quem, apesar das dúvidas da eficácia do programa, já tenha aderido. É o caso do grupo hoteleiro Vila Galé. Ao Observador, Gonçalo Rebelo de Almeida, administrador, diz que só a partir de outubro será possível aferir melhor o impacto do programa, mas salienta que “todas as medidas que possam estimular a procura na hotelaria e por atividades turísticas terão efeito positivo”. Se o IVAucher vai conseguir esse feito, ou não, é a incógnita dos próximos meses.

Um incentivo ao consumo ou uma “benesse” para quem já ia gastar na mesma?

Até aqui, o IVAucher tem sido “claramente um flop, apelida Daniel Serra, da Pro.Var. Por um lado, isso vê-se na “desconfiança” dos empresários, em parte motivada pelos custos de adesão anunciados inicialmente. Por outro lado, defende, nota-se nos números revelados pelo Ministério das Finanças relativamente a junho, um mês ainda marcado pelas medidas restritivas (como limitação à circulação): os contribuintes apenas acumularam 10% (21 milhões) do valor previsto pelo Governo para o total dos três meses de acumulação (200 milhões).

Para o fiscalista da Deloitte Afonso Arnaldo, o Governo não pode falhar nos objetivos. Mas concorda que, a avaliar pelos números conhecidos, o programa não parece ser um grande sucesso, nem terá o impacto de 200 milhões de euros que se previa no OE. Ainda assim, Afonso Arnaldo considera que o IVAucher tem potencial para ser prolongado no tempo para alguns setores, até porque é mais uma arma no combate à evasão fiscal — ao estimular os consumidores a pedir fatura. E é isso  que o Governo pretende fazer, revelou ao Observador o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, aplicando o modelo no próximo ano à Fatura da Sorte.

Governo admite usar modelo do IVAucher para substituir Fatura da Sorte em 2022 com descontos em compras

O Governo rejeita a ideia de que o IVAucher não esteja a ter sucesso e salienta que, em junho, houve um “aumento significativo das faturas, base de tributação, e respetivo IVA em relação ao ano de 2020, alcançando níveis próximos do período homólogo pré-pandemia”. Os dados oficiais de junho revelam que os 21 milhões de euros acumulados representam uma subida de 48% face a junho de 2020 e apenas dois milhões de euros abaixo de 2019, no pré-pandemia.

Com o maior desconfinamento em julho e agosto, meses que (mais do que junho) são tradicionalmente meses de férias, o Governo antecipa que o aumento do consumo “é uma tendência que se espera acentuar nos meses de julho e agosto”. Mas será possível atribuir algum desse aumento do consumo à existência do IVAucher? Ou seria consumo que teria acontecido de qualquer forma?

Mendonça Mendes, secretário de Estado das Finanças, tem liderado a execução deste programa.

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Segundo Sandra Maximiano, especialista em economia comportamental e professora do ISEG, a comparação com o ano passado ou 2019, que o Governo tem feito, é a forma mais fácil de tentar aferir o sucesso da medida, mas não é totalmente correta, já que há uma série de outros fatores em jogo: junho de 2020 foi uma fase inicial da pandemia, em que ainda havia muito receio, não tínhamos uma vacina, como agora. Muita gente nem férias fez fora de casa com medo do contágio, nem queria estar em espaços públicos. Resultado: consumiu menos do que o habitual. Agora, depois de um segundo confinamento, as pessoas querem sair, conviver; pouparam durante meses, têm uma “maior predisposição para gastar”; a vacina trouxe algum otimismo. Por isso, já era natural que o consumo subisse por si só.

Portugueses acumularam 21,2 milhões de euros em junho no IVAucher

Também José Araújo, contabilista que é candidato às próximas eleições para a Ordem dos Contabilistas Certificados, tem uma avaliação muito crítica do programa – por uma razão muito simples: se “o objetivo foi estimular a procura nestes setores, tenho muitas dúvidas que isso irá acontecer porque a fase de acumulação ocorreu numa fase em que as pessoas normalmente já consomem mais (férias de verão) e porque a fase de desconto/utilização também pode acontecer exclusivamente numa altura em que as pessoas já consomem bastante mais, com feriados, fins de semana prolongados e, claro, as compras de Natal”.

Para o cidadão, o programa não é mau – a julgar pelo sucesso de alguns cartões de pontos e de fidelização que existem em Portugal, os portugueses gostam deste tipo de descontos e se é dada uma benesse, a maioria vai aproveitar. Mas isso não significa que isto acrescente muita coisa quando se olha para o objetivo inicial – que era apoiar as entidades e os setores mais afetados pela pandemia”, afirma José Araújo.

Sobretudo sabendo-se que os descontos acumulados no IVAucher podem ser gastos, por exemplo, na compra de livros como prendas de Natal – algo que boa parte dos portugueses já faz – José Araújo tem muitas dúvidas de que os cidadãos sintam uma urgência em gastar os descontos acumulados. “Acha que eu, em outubro ou novembro, por exemplo, vou deixar de ir a um restaurante para ir a outro porque o segundo aderiu ao IVAucher e o primeiro não? Penso que não: vou ao restaurante que quero e se não aproveitar o desconto naquele dia aproveito noutro qualquer”.

Desconto é automático, não vai poder “guardar para o Natal”

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O IVAucher é um programa de adesão voluntária, mas a partir do momento em que começa a fase de desconto (1 de outubro) não é possível escolher as despesas onde se quer beneficiar do desconto – nem escolher a percentagem de desconto que se quer utilizar. Ou seja, na prática, a partir de 1 de outubro a partir do momento em que usa o seu NIF (e um cartão bancário com o qual aderiu ao IVAucher), os descontos são aplicados automaticamente – e a 50%, sempre – em toda e qualquer despesa que o contribuinte faça nos setores abrangidos. Ou seja, não vai poder “guardar o desconto acumulado” para as compras de livros no Natal, por exemplo (só poderá fazer isso se apenas se registar no IVAucher perto do Natal ou se só nessa altura usar um cartão bancário que está associado)

Faltou mais comunicação quando as pessoas estavam a acumular saldo

Para o fiscalista Afonso Arnaldo, o IVAucher é uma boa ideia que usa instrumentos já existentes como o programa E-fatura. Mas, para além da colaboração do setor financeiro, que era essencial desde o início, ficou a faltar uma campanha forte de divulgação junto dos consumidores para os incentivar a gastar mais no trimestre em que podiam acumular o saldo. Se o objetivo era apoiar os setores mais afetados, devia ter-se promovido o incentivo logo, comunicando que essa despesa adicional seria recuperável através dos descontos a partir de outubro. “Atualmente, quantos consumidores terão a noção de que podem converter o IVA acumulado em descontos de 50%?“.

Qualquer campanha que se faça agora para os comerciantes já não vai a tempo de incentivar maiores gastos para aproveitar os descontos porque o prazo para acumular saldo acabou no final de agosto. Ao Observador, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Mendonça Mendes, justifica porque não foi feita uma campanha mais intensa. Havia ainda restrições às viagens de lazer e restauração em junho — a cerca nos fins de semana na área da Grande Lisboa só terminou em julho — e alguma incerteza sobre os próximos passos do desconfinamento.

Contribuintes com atividade aberta têm de classificar faturas até 24 de setembro

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O fiscalista da Deloitte Afonso Arnaldo deixa ainda um aviso aos contribuintes que têm atividade aberta e rendimentos de categoria B — trabalho independente, profissionais liberais e empresários em nome individual. Têm de validar as faturas até 24 de setembro para elas entrarem no sistema que contabiliza o saldo do Ivaucher, especificando se as despesas foram feitas em contexto de trabalho ou pessoal. Só neste último caso é que contam para o desconto.

Como o Negócios já tinha avançado, o Governo gastou quase 34 mil euros mais IVA para publicitar o programa. Fê-lo investindo no evento de apresentação, que contou com a presença de jornalistas, e na criação de uma imagem, do slogan e de um vídeo explicativo. Ou seja, deixou de lado publicidade institucional em meios mais tradicionais e que tendem a chegar a mais pessoas — como outdoors, televisão, rádio, jornais — e mais modernos — como as redes sociais.

Mas haveria formas de “potenciar a eficácia do programa” sem custos acrescidos, diz Sandra Maximiano. “Dando exemplos de como é que se pode gastar o desconto. ‘Uma refeição que custava X vai passar a custar-lhe Y’. Isso iria aliciar a continuar a consumir. Ou disponibilizar uma calculadora para esse cálculo”. São técnicas de “nudge” (um termo da economia comportamental para descrever as técnicas desenhadas para influenciar as pessoas a tomar determinada escolha) que ajudam o contribuinte “a querer fazer parte”.

Outra forma seria, por exemplo, informar em que percentil de gastos é que cada pessoa está e como compara com o resto da população — seria “quase como fazer uma competição entre cidadãos”. Ou dizer: “Você está a contribuir assim para a economia”. Estratégias que, acredita Sandra Maximiano, podiam levar a uma maior adesão.

Avaliar se o IVAucher funciona realmente como um incentivo ou antes como um bónus para consumos que já existiriam de qualquer forma não é fácil. Segundo a economista Sandra Maximiano, idealmente teríamos de replicar o mês de junho de 2021, sem o incentivo, para o comparar com o mesmo mês com o incentivo, o que, naturalmente, não é possível. Uma forma mais realista seria ter um período experimental, por exemplo, introduzindo o benefício por regiões e comparando os resultados das regiões com e sem IVAucher. Como isso não foi feito, há outras vias de, pelo menos, tentar avaliar alguns dos efeitos.

Uma delas, como vimos, é a comparação homóloga, que não está isenta de falhas. Também mais simples seria tentar perceber se houve uma “reação imediata” assim que o programa entrou em vigor, a 1 de junho (um dia em que foi divulgado pelos meios de comunicação social, com vários explicadores sobre o tema). “Seria interessante ver, por exemplo no setor da cultura, em que as pessoas compram bilhetes com alguma antecedência, se houve ou não um pico logo a seguir ao anúncio. Pode ter havido pessoas que pensaram: ‘Tenho estes bilhetes, compro já e começo a acumular’”. Esses dados não são, no entanto, conhecidos.

A fase dos descontos vai dar para perceber melhor a eficácia da medida. “As pessoas têm aversão à perda. Sentem que aquilo foi algo que ganharam e que vão ter de usufruir. Por exemplo, seria interessante ver se, à medida que o programa se aproxima do final, se verifica um pico de consumo”, refere Sandra Maximiano, que defende que o programa deveria acabar antes do Natal, uma altura já de elevado consumo, para evitar que os contribuintes esperem até lá para aderir.

"As pessoas pensam: é mais informação privada, ainda por cima bancária, que vai para o Governo. Há muita gente que faz uma seleção do que pede com número de contribuinte ou não porque chega a um momento em que tem aquela sensação: E se vou ser fiscalizado por estar a gastar mais do que ganho? Para as pessoas que pensam assim, deixa de ser um incentivo."
Sandra Maximiano, economista e professora do ISEG

Já o contabilista José Araújo antecipa que, apesar da “benesse” para os consumidores, no que diz respeito ao (pretendido) estímulo à economia será “um flop”. “Porém, também penso que quem lançou o programa não estará muito preocupado se for um flop – estava mais preocupado em anunciar uma medida, na altura do orçamento, para (supostamente) apoiar os setores.”

Associar NIF ao cartão bancário causa “desconfiança”

Sandra Maximiano não tem dúvidas de que o IVAucher é “um incentivo óbvio porque está-se a dar um desconto para usar no futuro”. A questão é perceber se, pela forma como foi desenhado (e comunicado), vai surtir o efeito desejado pelo Governo, de atingir pelo menos os 200 milhões de euros.

O programa, defende a economista, pode causar “alguma desconfiança” no consumidor, desde logo pela necessidade de associar o número de contribuinte ao cartão bancário. Embora essa associação já possa ser feita, só será efetivamente necessária na fase de descontos, a partir de outubro. Mas Sandra Maximiano nota que, pela forma como a informação passou para o público, “o que ficou na cabeça de muita gente é que teria logo de dar os dados do cartão”.

“As pessoas pensam: é mais informação privada, ainda por cima bancária, que vai para o Governo. Há muita gente que faz uma seleção do que pede com número de contribuinte ou não porque chega a um momento em que tem aquela sensação: E se vou ser fiscalizado por estar a gastar mais do que ganho? Para as pessoas que pensam assim, deixa de ser um incentivo.”

Para esses contribuintes, mais céticos, teria sido preferível, por exemplo, um incentivo automático, na hora. Ou então um programa que permitisse ir a um restaurante um determinado número de vezes para poder ter direito a um desconto na refeição seguinte.

A desconfiança também pode surgir no próprio site de adesão (onde os contribuintes podem inscrever-se no IVAucher, associando o NIF ao cartão bancário). Embora seja de fácil utilização — algo que os contribuintes, por si só, “não estão habituados em páginas de organismos públicos” —, não há nenhum logótipo do Governo que dê garantias de que aquela é a página correta e não uma fraude. Em vez disso, é feita referência a uma empresa (a SaltPay) que a grande maioria dos contribuintes nem conhece.

A página inicial do site do IVAucher não tem qualquer referência ao Ministério das Finanças, responsável pela medida

“Quando o abri, eu própria disse: ‘Deixa lá ver se é o site oficial’. É que são dados bancários…”. Se às novas gerações, habituadas desde cedo ao digital, pode não fazer tanta confusão, Sandra Maximiano acredita que esse pode ser um fator de resistência para os restantes.

A economista considera ainda que o incentivo é “muito rebuscado” para o nível de literacia financeira em Portugal. Elogia que seja possível acompanhar o saldo, quer numa app, quer no site das Finanças — onde tenderão a ir os contribuintes mais velhos. Mas concorda que foi ainda pouco comunicado — e um “incentivo mal comunicado é pouco eficaz”.

Um atraso conveniente e um “elefante na sala” chamado SIBS

Inspirado em programas semelhantes lançados no Reino Unido e noutros países, o IVAucher foi uma das medidas mais emblemáticas do Orçamento do Estado (OE) para 2021, apresentado como um estímulo às atividades económicas mais penalizadas pela crise pandémica. O programa foi, até, pré-anunciado por António Costa, numa Cimeira do Turismo, alguns dias antes de surgir no OE, em outubro de 2020.

Ao contrário do que estava previsto, porém, o programa não entrou em vigor logo no primeiro trimestre de 2021 – algo que o Governo justificou com o facto de no início do ano ter surgido um pico pandémico e um novo confinamento. Não fazia sentido, por essa razão, estar a incentivar as pessoas a consumir quando se lhes pedia, ao mesmo tempo, para ficarem em casa.

Mas foi conveniente, esse atraso, tendo em conta como foi difícil criar condições para que o programa saísse do papel – o exemplo mais claro dessas dificuldades foi o facto de só no fim de agosto, a poucas semanas da fase em que os contribuintes podem começar a usar os descontos, o Governo decidir que, afinal, os descontos não são imediatos (e negociou-se com a banca uma solução técnica para fazer um cashback na conta no dia seguinte).

O atraso foi conveniente, tendo em conta como foi difícil criar condições para que o programa saísse do papel. O exemplo mais claro dessas dificuldades foi o facto de só no fim de agosto, a poucas semanas de começar a fase em que os contribuintes podem começar a usar os descontos, o Governo decidir que, afinal, os descontos não são imediatos.

Essa foi uma solução técnica que o Governo negociou diretamente com os bancos, contornando totalmente um “elefante na sala” que é a SIBS, a empresa dona da rede Multibanco e que tem como acionistas esses mesmos bancos (os principais a operar em Portugal).

A operacionalização do programa parecia ser uma tarefa à medida da SIBS, dada a implantação que a rede Multibanco tem em Portugal. E isso foi mais do que apenas uma perceção: no início de outubro de 2020 a secretária de Estado do Turismo, Rita Marques, revelou em entrevista à Lusa que “há alguns meses” estava a ser trabalhada com a SIBS uma plataforma para gerir o IVAucher.

Foi aberto o concurso público para adjudicação do programa, onde todos acreditavam que a SIBS facilmente seria a escolhida, não só pela colaboração prévia mas, também, por ter uma implantação no mercado de pagamentos português que ajudaria o programa a chegar ao maior número de negócios e de pessoas possível. Porém, por razões que a SIBS nunca explicou publicamente, a empresa “entendeu não apresentar proposta”, como confirmou à Lusa no final de janeiro.

SIBS foi alvo de buscas pela Autoridade da Concorrência, que a considera “quase monopolista”

O Observador noticiou, já em julho, que nesse mês de janeiro a Autoridade da Concorrência fez buscas na sede da SIBS – uma empresa privada que o regulador já por várias vezes considerou que tem uma posição “quase monopolista”. Sobre o IVAucher, em particular, a Autoridade da Concorrência alertou, nessa altura, para riscos de limitação de concorrência e de que o programa fosse implementado numa solução fechada, “na medida em que não foram acauteladas obrigações de não discriminação e de abertura”.

E, assim, a Pagaqui – entretanto comprada por um grupo estrangeiro chamado Saltpay– acabou por se encontrar na posição de único concorrente. E, claro, venceu o concurso.

Monopólio? “Fintech” estrangeira apresenta queixa no Banco de Portugal contra a SIBS

Restauração preferia a descida do IVA

Embora não descartem totalmente que o IVAucher possa ajudar (ainda que ligeiramente) os setores mais afetados, os empresários preferiam ter visto um programa desenhado de forma diferente ou outras medidas que apoiassem diretamente a capitalização das empresas. “Faria mais sentido fazer apoios diretos aos setores, não um apoio indireto como este. As empresas precisam é de se capitalizar”, afirma o contabilista José Araújo, esclarecendo que não está a falar de “dar apoios a fundo perdido só porque sim, mas incluindo métricas de sucesso – ou seja, apoios reembolsáveis mas que se tornam não-reembolsáveis mediante o cumprimento de certos objetivos”.

Daniel Serra, da Pro.Var, acredita que seria mais apelativo para os restaurantes a descida do IVA (atualmente nos 13% na generalidade do setor), uma medida que tem também sido defendida pela AHRESP. A associação liderada por Ana Jacinto propôs ao Governo, em julho, a aplicação da taxa reduzida (6%) a todo o serviços de alimentação e bebidas, sinalizando que a medida já foi aplicada temporariamente noutros países da União Europeia. A proposta é uma de dez que a associação endereçou ao Governo.

Covid-19. AHRESP propõe plano com 10 medidas para compensar alojamento e restauração

Sobre o IVAucher, a AHRESP defendia que, como “não é de acesso universal e direto”, pode “limitar a sua abrangência e objetivo”. Por isso, propunha “uma verdadeira campanha de dinamização do consumo”, que poderia passar por atribuir um desconto direto de 50%, “aplicado diretamente no momento do consumo, e sem limite de utilização”.

Daniel Serra, da Pro.Var, também acredita que o programa ganharia mais se tivesse outro desenho e passasse a restringir o uso dos descontos apenas de segunda a quinta-feira, para incentivar o consumo nos dias mais “mortos” da restauração e não em dias, como os fins de semana, que já são mais movimentados. Uma alteração que iria aproximar o IVAucher ao programa criado pelo governo britânico no ano passado para incentivar o consumo: descontos diretos, até metade do valor da refeição adquirida de segunda a quarta-feira.

Essa proposta foi feita, logo no início, diretamente ao Governo. Mas houve resistência: por um lado da parte do próprio Executivo — para quem essa mudança seria uma “complicómetro” — por outro lado, das associações hoteleiras — que não consideram benéfico retirar a possibilidade de usar o desconto aos fins de semana. Ainda assim, a Pro.Var insiste que poderia haver regras diferentes consoante o setor.

Covid-19: desconto do Governo britânico dá empurrão a restaurantes portugueses

O empresário pede um reforço do Apoiar (um programa de apoios a fundo perdido às empresas mais afetadas) na restauração. “É extremamente importante porque 25% a 30% das empresas estão a equacionar, segundo um inquérito nosso, apresentar insolvência”.

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