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Os três procuradores que investigam o processo que provocou a demissão do primeiro-ministro determinaram que existem mais de 20 escutas telefónicas que ligam António Costa aos factos sob investigação.
Estas escutas telefónicas, que não foram realizadas diretamente ao telefone do primeiro-ministro, mas que resultam de conhecimento fortuito (por Costa ter falado com alguém que estava sob escuta), terão ocorrido entre o dia 11 de novembro de 2020 e este ano, inclusive.
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Estas conversas de António Costa aconteceram com os principais suspeitos do processo, nomeadamente com o chefe de gabinete Vítor Escária, com o “melhor amigo” Diogo Lacerda Machado e com o atual ministro João Galamba — todos constituídos arguidos nos autos do DCIAP, sendo que Lacerda e Escária estão sob detenção judicial e a aguardar primeiro interrogatório para que lhes sejam decretadas medidas de coação.
Mas não só. Conversas entre o ex-ministro do Ambiente João Matos Fernandes e António Costa sobre as “declarações de impacto ambiental” que estão sob suspeita de irregularidade também foram consideradas relevantes para a investigação criminal. Os telefonemas aconteceram em períodos distintos — os primeiros quando Matos Fernandes ainda era ministro do Ambiente e as restantes já com o engenheiro civil fora do Executivo. Matos Fernandes não é arguido, mas é considerado suspeito pelo Ministério Público dos crimes de corrupção passiva e de prevaricação.
Contactado pelo Observador, o primeiro-ministro diz desconhecer as escutas em questão. “Não sei a que conversas se referem”, garante António Costa, acrescentando: “Não comento processos judiciais, muito menos que desconheço em absoluto”.
O primeiro-ministro rejeita em absoluto que alguma tenha sido informado de que um membro do seu Governo estaria sob escuta. “Não”, afirma taxativamente.
Suspeita de que António Costa sabia que estava a ser escutado
As conversas entre Costa e Matos Fernandes são também vistas pelos investigadores como indíciárias de que houve fugas de informação. Tudo porque o primeiro-ministro e o ex-ministro combinaram em dois momentos diferentes encontros pessoais para falar sobre os procedimentos administrativos relacionados com a exploração do lítio e do hidrogénio, evitando falar ao telefone sobre o tema.
Aliás, numas dessas conversas, António Costa exaltou-se mesmo perante a insistência do então ministro Matos Fernandes, que pretendia falar ao telefone sobre assuntos que diziam respeito a factos relacionados com o projeto do lítio e do hidrogénio: “Já te disse, falaremos disso mais tarde!”.
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Esta reação de António Costa é vista pelos investigadores como uma tentativa de não falar ao telefone sobre este tipo de matérias, existindo a suspeita de que o primeiro-ministro saberia que estava a ser escutado.
Aliás, o semanário Expresso já tinha noticiado em janeiro de 2021 a existência de três escutas telefónicas que teriam sido enviadas para o conselheiro Joaquim Piçarra, então presidente do Supremo Tribunal de Justiça para posterior validação.
Foi preservada uma conversa com Marcelo e outra com Santos Silva — mas sem relevância para a investigação
Há ainda duas escutas preservadas com o registo de conversas do primeiro-ministro com personalidades que não são suspeitas no processo. Enfatize-se que as conversas terão ocorrido a partir de outro telefone de um suspeito que estava sob escuta — uma vez mais, não foi o telefone de António Costa que foi diretamente escutado.
Uma destas interceções registou uma conversa entre António Costa e o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa; e outra registou um telefonema entre o primeiro-ministro e Augusto Santos Silva, presidente da Assembleia da República.
Contudo, o Observador sabe que as mesmas não têm relevância para a investigação. Só foram juntas aos autos porque se verificou um alteração do paradigma legal e, em nome dos direitos da defesa, passou a ser mais difícil ordenar a destruição de escutas a partir de 2007.
A certidão com os factos que envolvem António Costa, extraídos do inquérito criminal do lítio e do hidrogénio verde, saiu esta terça-feira da Procuradoria-Geral da República e entrou nos serviços do Ministério Público do Supremo Tribunal de Justiça. Ao longo dos últimos quatro anos, as comunicações entre a procuradora-geral Lucília Gago e os dois presidentes do Supremo Tribunal de Justiça sobre factos relacionados com o primeiro-ministro demissionário foram particularmente intensas.
Todas as escutas telefónicas que envolvem António Costa foram validadas pelo Supremo Tribunal de Justiça. A maior parte foi validada pelo conselheiro Henrique Araújo, presidente do STJ desde junho de 2021, sendo que as escutas realizadas entre 11 de novembro de 2020 e junho de 2021 foram repostas nos autos pelo vice-presidente do STJ após uma primeira decisão de eliminação do conselheiro Joaquim Piçarra, antecessor de Araújo.
Ex-presidente do STJ mandou destruir escutas de António Costa…
Tal como aconteceu com o processo Face Oculta, em que o então primeiro-ministro José Sócrates foi apanhado em escutas feitas ao telefone de Armando Vara e de outros arguidos, também os procuradores do processo do lítio e do hidrogénio tiveram que solicitar autorização ao presidente do Supremo Tribunal de Justiça para juntar as conversas de António Costa aos autos do processo em investigação.
Tal autorização é obrigatória por lei e impõe-se sempre que há o chamado conhecimento fortuito. Ou seja, quando acidentalmente o primeiro-ministro, o Presidente da República ou até o presidente da Assembleia da República são acidentalmente escutados. Como estas três figuras do Estado têm direito a foro especial, o presidente do STJ atua como juiz de instrução criminal e avalia a importância das escutas para a investigação em curso, por promoção do Ministério Público.
António Costa é suspeito e será investigado no Supremo Tribunal de Justiça
As primeiras escutas telefónicas que envolvem António Costa a serem juntas as autos foram precisamente aquelas que foram avaliadas pelo conselheiro Joaquim Piçarra, então presidente do STJ.
No momento das conversas, João Pedro Matos Fernandes era ministro do Ambiente e já era considerado suspeito de corrupção passiva e prevaricação, razão pela qual o seu telefone estava sob escuta. Estão em causa conversas que ocorreram nas seguintes datas:
- 11 de novembro de 2020 às 19h17m
- 16 de novembro de 2020 às 18h43m
- 18 de novembro de 2020 às 16h22m
- 2 de dezembro de 2020 às 16h29m, às 21h59m e outra 22h02m
Do ponto de vista prático, são seis conversas telefónicas que correspondem a quatro sessões de intercepção telefónica.
Os temas abordados foram, ao que o Observador apurou, três:
- 11/11/2020 — Contactos institucionais sobre o luto nacional/nota de pesar pela morte do arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles.
- 16/11/2020 — Marcação de uma reunião tendo por objeto a avaliação ambiental estratégica, que os investigadores suspeitam que seja um dos procedimentos administrativos dos projetos do lítio e do hidrogénio que estão sob suspeita de irregularidades, como o Observador já avançou.
- 18/11/2020 — Conversa relativa ao mesmo tema do telefonema de dia 16.
- 2/12/2020 (16h30) – António Costa e João Pedro Matos Fernandes combinam um café para conversarem “com calma” sobre a avaliação ambiental estratégica, numa continuação do telefonema anterior.
- 2/12/2020 (21h58) – O primeiro-ministro e o ministro do Ambiente conversam sobre a suspensão de obras inscritas no FEDER, de molde a libertar verbas a encaminhar para o apoio à restauração e afins na sequência da situação pandémica
- 2/12/2020 (22h02) – Matos Fernandes indica os projetos que podem ser suspensos.
Depois de ter validado outras escutas telefónicas que considerou relevantes para os autos, o conselheiro Joaquim Piçarra considerou que nenhuma destas intercepções tinha relevância e ordenou a sua destruição, invocando que estavam em causa temas habituais da governação que estariam a coberto de segredo.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre as escutas em que surge António Costa.
… mas Ministério Público recorreu e STJ deu-lhe razão
Os procuradores João Paulo Centeno, Hugo Neto e Ricardo Correia Lamas decidiram recorrer desta decisão para as seções criminais do STJ.
Ao contrário do seu antecessor, conselheiro Noronha de Nascimento — que, numa célebre decisão que veio a ser considerada ilegal pelo Tribunal Constitucional, não admitiu qualquer recurso sobre a destruição das famosas escutas telefónicas que envolviam o então primeiro-ministro José Sócrates no inquérito sobre a alegada prática de atentado contra o Estado de Direito —, o conselheiro Joaquim Piçarra admitiu o recurso dos procuradores do DCIAP em janeiro de 2021.
Em síntese, os procuradores argumentavam que as conversas tidas entre António Costa e Matos Fernandes não estavam ao abrigo de qualquer espécie de segredo, muito menos do segredo de Estado. E solicitavam a revogação do despacho do conselheiro Joaquim Piçarra.
Tal recurso só veio a ser decidido por Nuno Gonçalves, vice-presidente do STJ, por acórdão emitido em junho de 2021. E nesse acórdão, sabe o Observador, o conselheiro concluiu o seguinte:
- Invocou o acórdão do Tribunal Constitucional que tinha considerado as sucessivas decisões de Noronha de Nascimento, de não admitir recurso das suas próprias decisões de ordenar a eliminação das escutas telefónicas de José Sócrates, para concluir que era possível ao Ministério Público recorrer da decisão de Joaquim Piçarra;
- Invocou jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que passou a defender que as escutas não devem ser destruídas para assegurar também os direitos de defesa dos arguidos;
- Considerou que a Lei n.º 48/2007, que alterou o Código de Processo Penal, levou a uma mudança de paradigma legal. Isto é, a decisão de o juiz de instrução criminal (que é o papel processual que o presidente do STJ desempenha neste caso) de ordenar a destruição de escutas telefónicas deixou de se fundamentar apenas no critério da relevância para a prova. A lei passou a impor dois critérios para a destruição de escutas: elas teriam que ser manifestamente estranhas ao processo e teriam que dizer respeito a matérias abrangidas por segredo de Estado.
Assim, e mesmo considerando que algumas conversas eram manifestamente estranhas ao processo, o vice-presidente Nuno Gonçalves entendeu que o despacho de Joaquim Piçarra deveria ser revogado e todas as escutas telefónicas mantidas nos autos do processo em investigação por não estarem abrangidas pelo segredo de Estado.
Texto atualizado às 23h30 para clarificar que António Costa nunca esteve diretamente sob escuta
Artigo editado às 12h59 do dia 10 de novembro para corrigir uma informação: as escutas que envolvem António Costa mantêm-se nos autos do processo do DCIAP e não fazem parte da certidão extraída para o Supremo Tribunal de Justiça