Hartlepool, no nordeste de Inglaterra, é neste momento o epicentro do terramoto político em Inglaterra e uma cidade que ajuda a explicar muito do que aconteceu no Reino Unido nos últimos cinco anos. Desde que este círculo eleitoral foi criado, em 1974, o Partido Trabalhista (Labour) sempre foi o partido mais votado, inclusive em 2019, quando, a nível nacional, o partido então liderado por Jeremy Corbyn registou o seu pior resultado em legislativas em largas décadas. Mas tudo mudou na passada quinta-feira.
Jill Mortimer, candidata do Partido Conservador, ‘esmagou’ Paul Williams, arrecadando 51,9% dos votos em Hartlepool contra os 28,7% conseguidos pelo seu adversário do Labour. Em causa estava a eleição antecipada para um assento na Câmara dos Comuns, na sequência da demissão do deputado trabalhista Mike Hill, que deixou o lugar vago após ver-se envolvido num escândalo de assédio sexual.
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A pesada derrota em Hartlepool teve consequências imediatas no Labour e o caos irrompeu durante o fim de semanas nas hostes trabalhistas, com demissões, promoções e trocas de acusações num partido que ainda tenta encontrar forma de enterrar o legado de Jeremy Corbyn e definir um rumo que lhe permita vir a disputar o poder ao Partido Conservador de Boris Johnson em 2024.
Num ambiente de cortar à faca, a derrota em Hartlepool e o fracasso em recuperar lugares nos bastiões tradicionais do Labour nas eleições locais impediram qualquer celebração pelas reeleições dos mayors Sadiq Khan, em Londres, ou de Andy Burnham, em Manchester, ou até da vitória nas eleições galesas, onde os trabalhistas mantiveram a maioria no parlamento regional do País de Gales. No entanto, tendo em conta a expectativa criada, Keir Starmer acabou por chumbar neste que foi o seu primeiro teste eleitoral desde que assumiu a chefia do Labour em abril do ano passado.
“De forma geral, os resultados não foram um desastre para o Labour, mas também não mostraram um progresso suficiente para que o partido possa ser visto como um opositor viável a ganhar as próximas eleições gerais”, sintetiza ao Observador Steven Fielding, professor de História Política da Universidade de Nottingham. Quanto a Hartlepool, é inegável que se tratou mesmo um desastre, embora a ameaça de perda deste bastião estivesse bem presente.
“A eleição em Hartlepool foi uma grande decepção e criou muito do caos visto no partido desde então, mas não deveria ter sido uma surpresa. Foi mais o abalo final das eleições gerais de 2019 do que propriamente alguma coisa nova”, sublinha ao Observador Paula Surridge, professora de Sociologia Política na Universidade de Bristol.
Para compreender melhor o que significa Hartlepool para o Labour, é preciso recuar até ao referendo à permanência do Reino Unido na União Europeia. Em 2016, neste bastião trabalhista, 70% dos eleitores votaram a favor do Brexit, o que levou a que esta cidade portuária, de certa forma, se transformasse num símbolo da desilusão de muitos britânicos do nordeste inglês com a integração europeia, dando início a uma transferência de votos da esquerda britânico para os partidos mais eurocéticos.
Três anos volvidos, nas eleições gerais de 2019 que viriam a dar a maioria absoluta aos Tories (Partido Conservador), o círculo eleitoral de Hartlepool manteve-se fiel ao Labour (que ganhou com 37,7% dos votos), mas revelou outro fenómeno: 28,9% dos eleitores votaram nos conservadores, enquanto outros 25,8% optaram pelo Partido do Brexit, que a nível nacional era encabeçado por Nigel Farage. Ou seja, feitas as contas, os dois partidos que representam os eleitores eurocéticos somavam mais de 50% dos votos. Em 2021, com o Partido do Brexit fora da equação, é fácil adivinhar para onde foram estes eleitores.
Mudanças no governo sombra: uma remodelação “muito mal gerida”
Depois de começarem a ser conhecidos os resultados, sobretudo depois de Hatlepool, KeirStarmer foi rápido a assumir a responsabilidade pelo desfecho aquém das expectativas na “super quinta-feira” (quando se realizaram não só eleições locais em Inglaterra, mas também regionais na Escócia ou no País de Gales), com uma declaração que sintetiza o que tem falhado no partido. “Muitas vezes falámos só para nós próprios, em vez de falarmos para o país, e perdemos a confiança dos trabalhadores, especialmente em lugares como Hartlepool. Pretendo fazer o que for necessário para o consertar”, disse Starmer, na passada sexta-feira, citado pelo The Guardian.
“Super quinta-feira” junta eleições locais em Inglaterra com regionais na Escócia e País de Gales
No entanto, durante o fim de semana, instalou-se o caos, com a imprensa britânica a noticiar o afastamento de Angela Rayner, número dois do Labour e até então coordenadora das campanhas eleitorais do partido, no que foi interpretado, sobretudo na ala esquerda do Labour, fiel a Jeremy Corbyn e onde Rayner é popular, como uma tentativa de Starmer sacudir água do capote e responsabilizar outra pessoa pelos resultados aquém da expectativa. A deputada Kim Johnson, do círculo de Liverpool, falou mesmo num “ato desprezível de cobardia”, evidenciando-se as divisões existentes no partido, com trocas de acusações sobre a liderança de Starmer.
Mas, afinal de contas, AngelaRayner acabaria por ser promovida dentro do partido, sendo escolhida como por KeirStarmer para ministra-sombra de Estado, o que fará com que seja a alternativa ao atual ministro conservador, Michael Gove, uma mudança em menos de 48 horas, marcada por avanços e recuos e trocas de acusações na imprensa, que ainda não convenceu os trabalhistas de que a paz esteja estabelecida dentro do partido.
Keir Starmer sucede a Jeremy Corbyn na liderança do Partido Trabalhista
“Já era esperada uma remodelação no governo sombra de Starmer, mas esta remodelação foi muito mal gerida em termos mediáticos”, afirma Steven Fielding.
Starmer aproveitou para fazer outras remodelações no seu governo sombra (na prática, são os políticos na linha da frente à oposição ao executivo de Boris Johnson), afastando figuras como Nick Brown, Valerie Vaz ou Anneliese Dodds , e promovendo Rachel Reeves, Alan Campbell ou Shabana Mahmood. Esta segunda-feira, de acordo com a BBC, numa reunião com os seus ministros-sombra, Starmer tentou passar a mensagem, de que ele, e mais ninguém, é o responsável pelos resultados da última quinta-feira, prometendo passar os próximos meses a falar para os eleitores que não votaram no partido. Os danos internos, no entanto, já foram causados.
“Todos esperavam que os apoiantes de Corbyn criticassem a liderança, mas a força das críticas vinda de outras partes do partido foi mais surpreendente e talvez sugira que o apoio a Starmer, de uma forma mais ampla, seja bastante leve”, admite Paula Surridge.
Principal desafio: recuperar os eleitores do ‘Leave’
Quando assumiu a liderança do partido, em abril de 2020, Keir Starmer herdou um Labour muito dividido, a tentar sarar as feridas causadas pela liderança polarizadora de Jeremy Corbyn e com uma longa travessia do deserto pela frente para conseguir recuperar do descalabro das eleições gerais de 2019.
A estratégia elencada por Starmer, que se apresenta como um líder mais moderado e centrista do que o seu antecessor, passava por recuperar os eleitores na chamada “muralha vermelha”, no centro e norte de Inglaterra, bastiões onde os trabalhistas tinham o apoio da classe trabalhadora, mas que, com o Brexit, viram esse eleitorado escapar para o Partido Conservador. Uma estratégia que tem tido um “sucesso limitado”.
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“O Brexit continua a dividir o povo britânico, mas os conservadores uniram os eleitores do ‘Leave’, enquanto os eleitores do ‘Remain’ continuam divididos entre os partidos de centro e de esquerda, o que prejudica os trabalhistas”, afirma ao Observador Lawrence McKay, professor de Ciência Política da Universidade de Southampton, considerando que “apelar aos eleitores do ‘Leave’ mantendo a sua base de eleitores do ‘Remain’” será o grande desafio do líder da oposição, ao mesmo tempo que os Verdes crescem no Reino Unido, o que poderá roubar ainda mais votos aos trabalhistas.
Além disso, Starmer tem desempenhado o papel de líder da oposição num período particularmente conturbado, uma vez que a pandemia de Covid-19 tem ocupado praticamente todo o espaço mediático. Se numa fase inicial o Labour conseguiu estar colado aos Tories nas sondagens, à medida que o plano de vacinação, considerado um sucesso no Reino Unido, foi avançando, também a popularidade do governo britânico cresceu.
Como consequência, o Labour tem vindo a cair nas sondagens, incapaz até de ganhar politicamente com as polémicas em que Boris Johnson tem estado envolvido, desde a remodelação do seu apartamento até ao financiamento para pagar a ama do seu filho.
Liderança de Starmer em risco?
Às dificuldades de passar uma mensagem a nível nacional, esperando que a pandemia de Covid-19 e o Brexit, aos poucos, deixem de dominar toda a agenda mediática e política, o Labour tenta ainda sarar as divisões do afastamento de Jeremy Corbyn, suspenso das suas funções dentro do grupo parlamentar trabalhista devido às acusações de antissemitismo, sendo que o fantasma do ex-líder trabalhista continua presente.
No domingo, Corbyn escreveu um artigo para o Independent, onde avisou o seu sucessor de que “as pessoas votam quando se sentem inspiradas”, defendendo que “são novas ideias, e não remodelações que vão trazer a esperança de volta”. Os apoiantes de Corbyn estão alerta para qualquer passo em falso de Starmer.
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“Os membros [da esquerda do] Labour escolheram Starmer não pelas suas políticas, mas porque acharam que ele seria o tipo de figura que os poderia levar de volta ao poder. Se Starmer continuar mal nas sondagens, eles podem deixar de aceitar um caminho que percecionam como uma forma de Starmer comprometer os valores de esquerda”, antevê o politólogo Lawrence McKay, que no entanto acredita que o líder do Labour “sobreviverá por agora”.
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No mesmo sentido, também Paula Surridge crê que a “liderança de Starmer não corre um risco imediato”, apesar de a socióloga da Universidade de Bristol admitir que “não ficaria surpreendida” caso houvesse um desafio ao líder do Labour antes das próximas eleições gerais, previstas para 2024, um cenário que poderá estar dependente de Starmer conseguir encolher a diferença para Johnson nas sondagens a nível nacional.
Caso tal não aconteça, há outro problema para os trabalhistas, uma vez que, como nota Steven Fielding, neste momento, não se vislumbra “nenhum candidato credível” com capacidade para desafiar Starmer na liderança do Labour, além de que os problemas não iriam desaparecer por si só.
“Qualquer pessoa que viesse a substituir KeirStarmer teria de enfrentar os mesmos problemas: um partido dividido e um eleitorado dividido. E ninguém no Labour tem uma fórmula mágica para resolver estes dois problemas”, sentencia o docente da Universidade de Nottingham.