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Em Portugal, a 3 de outubro, falava-se em mais 10 anos de Web Summit e num novo unicórnio com ADN português, a Talkdesk. Contudo, em Paris, o que acontecia em Lisboa nem era tema de conversa. O maior evento de tecnologia do mundo, a CES [Consumer Electronic Show], teve uma pré-apresentação, liderada pelo responsável do evento, Gary Shapiro. O executivo é considerado constantemente uma das pessoas mais influentes em Washington D.C.. Em conversa com o Observador, o presidente executivo da CTA (Consumer Technology Association) assumiu sem rodeios que não aposta que a União Europeia vá ser líder na inovação.
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No passado, Gary Shapiro, jurista de formação, fez parte da equipa que levou a Sony e outras eletrónicas a poderem continuar a vender gravadores de vídeo domésticos (alguma editoras eram contra), com o “caso Betamax”. Contudo, é por estar à frente da CTA que Gary Shapiro é uma das pessoas que se tem de conhecer na indústria tecnológica. A CTA tem membros como a Amazon, a Apple, a Google ou a Microsoft, além de mais de duas mil tecnológicas, pelas quais faz lobbying nos Estados Unidos e Canadá.
A associação é ainda responsável por organizar a CES, que se realiza todo os anos em Las Vegas e onde é revelada a tecnologia que os consumidores vão querer comprar em cada ano. O executivo colabora ainda com algumas das principais publicações americanas, como cronista, e é também autor de dois livros. O último, “Ninja Innovation: The Ten Killer Strategies of The World’s Most Successful Businesses” [o “Ninja Corporativo”, em português], foi um bestseller do New York Times.
Em entrevista, afirma que nunca esteve em Portugal e, sem problemas, mostra que só conhece de nome a Web Summit, o mais parecido que temos com a CES. Contudo, é um evento que ainda associa à Irlanda. Quanto ao ecossistema do investimento tecnológico, foca-se no mercado europeu e reitera o que disse num painel na CES Unveiled Paris, onde reuniu empresários e políticos franceses: “Há legislação a mais na União Europeia (UE)”. Medidas como o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados e a nova diretiva sobre direitos de autor são, para Gary Shapiro, “um obstáculo à inovação” e a “tensão entre o velho e o novo” vai continuar a condicionar o futuro da tecnologia.
A legislação europeia é um “obstáculo” à inovação
Quanto ao RGPD, disse na CES Unveiled Paris que “a proteção de dados é um problema de primeiro mundo”. Esta lei é um problema para a inovação?
Sim. A UE enfrenta muitos obstáculos à inovação. Alguns são culturais, outros têm a ver com a diferença nas línguas, outros são regulação a mais. Ponho o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados [RGPD] neste último exemplo. Faz com que seja mais difícil começar uma empresa, há demasiadas regras, demasiados impostos, demasiadas restrições a trabalhadores e à flexibilidade. Mas a Europa enfrenta também outros desafios em comparação com os EUA, Israel ou a até a China, como a falta de investimento em startups. Acho que a Europa é um local incrível e adoro vir cá, mas não vou apostar que vá ser um líder na inovação. Não tem sido há anos.
Por exemplo, a forma como se lida com a privacidade na União Europeia, é vista nos Estados Unidos como uma maneira de restringir empresas como a Google e o Facebook, mas estas vão conseguir adaptar-se. Já as pequenas startups vão ter desafios. Apesar de se estar a defender algo tão importante como a privacidade, tem um impacto enorme na sociedade. Os direitos do indivíduo, que são só basilares na Europa, são muitos diferentes da China, onde se aplicam os direitos do grupo. A inovação tem de encontrar o seu caminho e ser fomentada, ou então o crescimento da inovação vai ser afetado e vai afetar o crescimento da sociedade.
Foi contra o SOPA e o ACTA [legislação americana e acordo internacional que, em 2011 e 2012, criaram polémica por quererem restringir conteúdos na Internet]. A nova diretiva de direitos de autor em discussão na UE segue alguns dos mesmos princípios. Também é contra?
Sim. Achamos que é terrível por muitas razões. A diretiva não deixa que um consumidor vá a um evento desportivo e tire uma fotografia. Não há exceções. É ridículo. Está a tirar direitos aos consumidores e a dá-los às grandes empresas que são donas dos conteúdos. Há uma tradição de que os consumidores têm direitos também. Os lobistas da indústria de conteúdos conseguiram tudo o que queriam pela Europa e isso é triste.
Não estivemos envolvidos nisso e, em retrospetiva, foi provavelmente um erro. Foi um grande corte no direito dos consumidores, feito por uma indústria que quer ter o monopólio. Acho que as pessoas devem ter certos direitos, como tirar fotografias quando vão a um evento. Não é uma lei equilibrada, não é justa e foi apenas um favor que foi feito aos grandes e ricos detentores de conteúdos. Não tem em conta que os consumidores podem ser criadores que partilham conteúdos, como enviar uma fotografia a um amigo. Acho que é muito triste e trágico.
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Tendo em conta a experiência que tem em Washington, uma lei como esta passaria nos Estados Unidos?
Não, não acho que uma lei como esta passasse em Washington porque, independente do que dizem e da inabilidade da presidência em conseguir fazer coisas, há medidas que precisam de atos do Congresso. O Congresso opera de forma transparente e todas as partes têm o direito a serem ouvidas. Há tantos grupos diferentes, como o nosso [CTA], que iriam ser ouvidos nisto. Isto foi algo que passou na União Europeia sem um processo no qual pessoas puderam realmente ter dito alguma coisa.
Estive recentemente em Bruxelas e fiquei mesmo surpreendido por ver como é que os grupos de lobying [influência] da indústria de conteúdos operam, estava sempre a cruzar-me com eles. Basicamente, são empresas que querem que o governo aprove legislação que tire direitos aos consumidores e que os dê aos detentores de conteúdos.
Se a lei for aprovada em dezembro/janeiro, a CTA vai retirar investimento na União Europeia?
Não, de todo. Temos eventos. Nos Estados Unidos e no Canadá fazemos lobbying a influenciar governos. Não fazemos muito isso na Europa ou na Ásia ou noutros locais do mundo. O nosso foco é nos Estados Unidos. Os eventos podem ser diferentes em todo o lado do mundo, mas é diferente. Há grupos de associações nesses sítios e escolhem que assuntos devem defender. Mas posso dizer, com toda a honestidade, que há empresas americanas que não estão contentes com o que a União Europeia fez.
Isto vai tirar a capacidade de os consumidores terem informação. Por exemplo, a legislação não deixa que os motores de pesquisa tenham hiperligações para os media sem autorização. Ou seja, os consumidores ficam com este acesso barrado, bem como as vantagens destes serviços. Se os media quiserem cobrar o acesso ou ter cookies, não há mal, podem fazê-lo. Mas negar aos consumidores a possibilidade de serem encontrados nestes motores? Isso retira o benefício que os motores de pesquisa em todo o mundo representam para os consumidores. É um roubo aos direitos dos consumidores e do benefício da Internet. É outra vez como a proteção de dados: é um problema de primeiro mundo a ser ‘resolvido’ pelos detentores de conteúdos, porque dizem que têm o direito de nem sequer estarem num motor de pesquisa. Acho isso inacreditável.
Nos EUA, temos uma coisa que é o Fair Use [uso razoável de conteúdos por terceiros] e isso é a lei. Podemos referir outros conteúdos protegidos por direitos de autor com limites, como o benefício público. É com base nisso que os motores de pesquisa podem ter hiperligações para quase tudo. Depois, o consumidor americano, o cidadão, tem todos esses benefícios e pode saber que media existem, por exemplo. Depois, se quiserem ir ao site desses media e quiserem pagar ou não, é uma escolha feita pelo consumidor. Mas com esta nova lei, os media passam a decidir se querem sequer que os consumidores saibam que existem. Isso magoa os motores de pesquisa, magoa os consumidores. É uma das razões porque não gostamos.
“O maior obstáculo que sinto é que nos tornámos complacentes”
Está há mais de duas décadas à frente do maior evento tecnológico do mundo, a CES. Qual é o maior obstáculo de organizar um evento destes?
Somos o evento número um no mundo. O evento número um de negócios no mundo. O evento número um de inovação. O maior obstáculo que sinto é que nos tornámos complacentes. Temos sempre de mudar, temos de inovar, temos de fazer as coisas de forma diferente, temos de agradar as nossas audiências. Isso é muito importante.
O que vieram fazer a Paris?
É o nosso sexto ano em Paris com um evento Unveiled [“Revelado”, em português]. Temos este tipo de eventos em todo o mundo. São desenhados para dar um pequeno vislumbre do que é a CES, em Las Vegas, e juntar pessoas. Juntamos empresas que são inovadoras com outras empresas, e elas fazem negócios. E depois conectamo-las com os media. Paris é uma cidade linda, é uma cidade global, e estamos muito contentes por estar aqui a fazer isto. Estivemos em Amesterdão recentemente a fazer o mesmo.
É o primeiro ano em que estão a fazer uma parceria com o Mondial [um dos maiores eventos de automóveis do mundo]. Por que é que juntaram os dois eventos?
Vimos uma oportunidade para expandir o nosso evento e beneficiar da audiência que eles trazem e expô-la à CES.
CES. O que foi a maior feira de tecnologia do mundo fazer a Paris?
CES, Portugal e Web Summit? “Lo Siento”
Disse que nunca tinha estado em Portugal…
Lo siento… Como se diz “I’m sorry”, em português?
Peço desculpa.
[com dificuldade na pronúncia] Peço desculpa.
Mas não precisa de pedir desculpa por causa disso.
Mas eu devia ir a Portugal, quero ir a Portugal.
Esperamos vê-lo em Portugal um dia. Quem sabe na Web Summit? Já ouviu falar no evento?
Acho que já falei numa Web Summit. Não me lembro bem.
Em Dublin?
Não, se foi só em Dublin e em Lisboa, então nunca falei numa Web Summit. Há outra que também se chama algo assim, em Amesterdão, onde já estive, ou na Bulgária. Estive nesses. Mas ouvi dizer que a Web Summit na Irlanda era um grande evento.
Vai ser possível termos um CES Unveiled Porto, Coimbra ou Lisboa, por exemplo?
Não sei. Não em 2019. Mas o futuro é um termo muito vago. Escolhemos cidades que atraem muitas pessoas à volta de um local. Por isso, Paris e Amesterdão são um bom exemplo. Já fizemos eventos semelhantes em Varsóvia, na Suécia, em Tóquio, em Praga.
Perguntei isto porque este ano houve investimento de Portugal em enviar startups à CES, em Las Vegas, e até houve um prémio para inovação para o país. Por que é que este ano houve este reconhecimento?
Os prémios de inovação são escolhidos por juízes independentes, principalmente jornalistas, e nunca estive na sala para ver como é que escolhem os vencedores. Sei que é muito disputado e que querem produtos realmente inovadores. E por isso é que a escolha dos vencedores é justa, não nos envolvemos nessa seleção.
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“O consumidor europeu tecnológico demora mais tempo a adaptar-se”
Teve um papel crucial no “caso Betamax” [Sony Corp. of America v. Universal City Studios, Inc], que passou a permitir a gravação de conteúdos com gravadores de vídeo domésticos nos Estados Unidos. Qual é, para si, o próximo processo Betamax?
[Pausa] Isso é uma ótima pergunta. Acho que há uma tensão entre indústrias antigas e novas indústrias. Foi o que vimos no caso dos gravadores de vídeo: tecnologia versus a indústria da música e do cinema. Agora, a tensão é entre a tecnologia e outras indústrias: Os taxistas contra a Uber e a BlaBla, hotéis contra o AirBnB, motoristas contra carros autónomos, trabalhadores de alguns sectores contra a inteligência artificial.
As pessoas estão a tentar preservar o seus trabalhos e a maneira como faziam as coisas, da mesma maneira que houve muitas leis contra os carros, quando estes foram introduzidos. Os carroceiros queriam proteger o que faziam e chegou a haver uma lei num local que dizia que nenhum carro podia circular mais rápido do que um cavalo. Há sempre leis como essa. Acho que é o velho contra o novo. O velho combate sempre, que tenta utilizar o governo.
Foi isto que a batalha dos gravadores de vídeo foi. E vai continuar a ser no futuro. É importante que não deixemos que o governo seja utilizado como um obstáculo às novas tecnologias, que podem fazer diferença nas nossas vidas, que podem manter-nos saudáveis, melhor alimentados, a viver mais tempo e mais seguros. O governo deve ser o facilitador da inovação.
Qual é a diferença entre o consumidor tecnológico americano e o europeu?
O consumidor europeu tecnológico demora mais tempo a adaptar-se. Por exemplo, os americanos já têm em mais de um terço dos lares uma coluna inteligente. Perguntam-lhes coisas sobre o tempo ou o trânsito. Na Europa, isso ainda nem sequer começou. Na área das telecomunicações, a Europa tem sido algumas vezes mais avançada. Com o 3G, estava à frente do mundo, mas com o 4G não está. Vamos ainda ver o que vai acontecer com o 5G. Depende muito da tecnologia e da necessidade. Contudo, penso que os europeus são mais focados nos direitos individuais do que são na inovação. A Europa e os Estados Unidos são mais ou menos do mesmo tamanho e os EUA têm cinco vezes mais unicórnios bem sucedidos.
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Num país como Portugal, periférico na União Europeia, qual o melhor conselho que dá a quem quer criar uma startup?
Não percam tempo e dinheiro a criar um plano muito extenso cheio de estatísticas e factos. Esse tipo de plano de negócio não é uma boa ideia. Peguem na vossa ideia e testem com clientes potenciais. De qualquer forma possível. Oiçam os inputs, e aí mudem o plano e continuem a mudá-lo. Só depois é que devem investir o dinheiro todo em criar quer seja o produto, o serviço ou a app. Mas não percam tempo a criar o que pensam na vossa cabeça ser a versão perfeita do vosso produto ou serviço ou app, porque vão estar errados. Definitivamente vão estar errados. Os únicos que podem dizer se estão certos ou não são os vossos consumidores. E devem ouvir os vossos consumidores.
E conselhos a unicórnios?
Se se tornaram um unicórnio fizeram as coisas bem.
*O jornalista esteve no CES Unveiled Paris a convite da Consumer Technology Association, organizadora da CES