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Os médicos de família das USF modelo B — unidades que já representam a maioria dos centros de saúde em Portugal — estão a perder centenas de euros por mês na parte do vencimento correspondente ao desempenho. Em causa estão os novos indicadores aprovados em dezembro pelo anterior governo — e considerados “extremamente exigentes” –, sobretudo os relacionados com a prescrição de medicamentos e exames. No entanto, os médicos garantem que os doentes não estão a ser afetados e que continuam a poder aceder aos fármacos e meios de diagnóstico necessários.
Em dezembro do ano passado, os Ministérios das Finanças e da Saúde (liderados, na altura, por Fernando Medina e Manuel Pizarro, respetivamente) publicaram uma portaria em que são definidos os indicadores do novo índice de desempenho das equipas das unidades de saúde familiar de modelo B — o modelo mais avançado de organização dos cuidados de saúde primários, onde os profissionais recebem um subsídio em função do desempenho.
Entre os 43 indicadores do novo índice que avaliam o desempenho dos profissionais (e que os médicos especialistas em Medicina Geral e Familiar têm de cumprir na totalidade para acederem ao suplemento máximo de desempenho, de 2.860 euros brutos por mês), há dois que são fortemente contestados: a prescrição de medicamentos por utente e a prescrição de meios complementares de diagnóstico e terapêutica (como exames e análises) por utente. O primeiro vale 8% da ponderação e o segundo 10%.
“É completamente desadequado”. Médicos só podem prescrever 133 euros de medicação por utente/ano
Para os médicos ouvidos pelo Observador, os dois indicadores têm um peso excessivo na avaliação de desempenho e os valores máximos associados a cada um (o valor, em euros, que um médico pode prescrever anualmente em medicamentos e exames a um doente) são demasiado baixos. “Alguns indicadores têm um peso excessivo e o teto do custo da prescrição de medicamento por utente é completamente desadequado“, diz a médica Maria João Tiago, da USF de São João da Talha, em Loures. No caso dos medicamentos, a portaria estabelece um valor a gastar por doente, durante o ano de 2024, entre os zero e os 133 euros. Um valor que a especialista diz estar “desatualizado” face à realidade (nomeadamente, ao aumento dos custos dos medicamentos e à introdução de fármacos inovadores, mais caros).
Maria João Tiago dá um exemplo. “Só uma caixa de insulina, muitas vezes, custa 160 euros [preço total, sem comparticipação]. Os novos anticoagulantes custam mais de 100 euros por mês”, sublinha a médica, acrescentando que com pouco mais de 130 euros “não se consegue rastrear a população de uma lista”. “É um valor que não é atualizado há anos“, critica.
“Os indicadores são extremamente exigentes. Os custos têm aumentado, mas os patamares não foram atualizados. A medicação para atingirmos o controlo da diabetes, por exemplo, é agora muito mais cara”, alerta também o presidente da Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar, André Biscaia. O mesmo se passa com os meios complementares de diagnóstico e terapêutica, que têm um teto máximo de 47 euros/ano por doente.
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O resultado é que a esmagadora maioria dos médicos não consegue manter-se dentro dos limites estipulados pela portaria para a prescrição de medicamentos e exames, o faz com que perca pelo menos 18% do suplemento referente ao desempenho, ou seja, cerca de 515 euros — dos 2.86o euros totais.
Perdas ascendem a 500 euros e insatisfação cresce entre os médicos
“Em muitos casos, não é possível atingir os níveis remuneratórios máximos por causa destes dois indicadores“, adianta o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar. Nuno Jacinto diz que os médicos já não atingiam este objetivos no modelo anterior, que vigorou até final do ano passado, mas não eram penalizados, uma vez que não afetava o rendimento. Agora o cenário é diferente e estão em causa centenas de euros por mês.
“Isto não podia estar dentro dos indicadores. O governo ouviu-nos [quando preparou as novas regras], mas foi igual a zero, fizeram o que quiseram”, critica André Biscaia, que alerta que os médicos das USF modelo B estão a ser penalizados com as novas regras (em vigor há já seis meses) e que está a crescer a insatisfação. “Se as pessoas começarem a perceber que não conseguem atingir os objetivos, vão começar a sair para o privado. E não estamos a conseguir atrair pessoas suficientes para repor os médicos que vão saindo”, avisa o especialista em Medicina Geral e Familiar da USF Marginal, em Cascais.
“É uma perda de vencimento. O governo dirá que não é uma perda — e que é um valor que não se ganha”, realça Nuno Jacinto, adepto do modelo anterior de desempenho que, diz, “permitia dar mais estabilidade às equipas”. Agora, vinca, “o equilíbrio é mais difícil”.
O vencimento dos médicos das USF modelo B divide-se em três partes: o salário base, o suplemento pelo tamanho da lista (atribuído aos clínicos que aceitam aumentar a lista de utentes até aos 1.900, acima dos 1.750 obrigatórios para o modelo B) e o suplemento relacionado com o desempenho. As USF modelo B representam já a maioria dos centros de saúde existentes em Portugal, pelo que o impacto dos novos indicadores de desempenho é grande. Segundo o Bilhete de Identidade dos Cuidados de Saúde Primários, há agora 657 unidades deste tipo (que correspondem a 50,3% do total de centros de saúde), um grande aumento que se deveu à passagem a modelo B de todas as USF modelo A, no início deste ano.
Mais 222 Unidades de Saúde Familiar tipo B a partir de janeiro
O governo anterior decidiu disseminar o modelo mas, por outro lado, dificultou o cumprimento de objetivos de desempenho, dizem os médicos. “Não podemos pedir aos hospitais que gastem pouco e aos cuidados de saúde primários que também gastem pouco. Temos de gastar nalgum lado para depois as pessoas não terem complicações no futuro“, defende Nuno Jacinto, acrescentando que as verbas têm de ser aplicadas na “prevenção”, ou seja, nos centros de saúde.
Cuidados aos utentes estão salvaguardados, garantem os médicos
“Há fármacos novos para várias doenças (diabetes, hipertensão, doença renal crónica) que mostraram ganhos na qualidade de vida e que têm preços muito elevados. Por um lado, o Estado diz-nos que estes fármacos estão disponíveis, mas não podem ser prescritos e passam o ónus para as equipas”, critica o especialista.
E, perante a novas metas de desempenho, que opção estão os médicos a tomar: prescrever medicamentos e exames de acordo com as melhores práticas clínicas ou limitar essas prescrições, de forma a não prejudicar o rendimento? “Descurar os cuidados é algo que não acontece nem pode acontecer. As equipas acabam por colocar o interesse do doente acima de tudo o resto“, garante o presidente da associação que representa os médicos de família, acrescentando que, se os médicos “quisessem cumprir as metas, seria muito difícil dar cuidados de qualidade aos utentes”.
“Se não, era fácil, não passávamos medicamentos e exames e rapidamente os indicadores estariam cumpridos”, realça Nuno Jacinto. Uma realidade confirmada pelo presidente da Associação da Associação Nacional das Unidades de Saúde Familiar. “Não vamos estar a prejudicar as pessoas por causa dos indicadores”, diz André Biscaia.
“Não são estes indicadores que me impedem de fazer seja o que for. Não podemos deixar de prescrever, nem acredito que os colegas o façam por causa do desempenho”, garante também Maria João Tiago. O médico André Biscaia lembra que “o facto de a maior parte das unidades não estar a conseguir atingir os objetivos quer dizer que as pessoas estão a ser tratadas” convenientemente. No BI dos Cuidados de Saúde Primários, percebe-se que a atual mediana do índice de desempenho das USF modelo B é de 72,4 em 100, o que significa que não são apenas os 18% referentes à prescrição de medicamentos e de exames que os médicos têm dificuldades em cumprir.
Há outros dois indicadores que geram críticas entre os clínicos ouvidos pelo Observador: os internamentos hospitalares evitáveis e a capacidade de realização de consultas de doença aguda (um indicador que está associado ao número de idas dos utentes às urgências hospitalares). À semelhança dos dois primeiros, estes outros dois indicadores têm um peso importante: valem 7% e 10% do total do índice, respetivamente.
Idas às urgências hospitalares e internamentos também prejudicam desempenho
“Em relação às idas às urgências (de pessoas com asma grave, diabetes, doença pulmonar obstrutiva crónica, insuficiência cardíaca, etc), é impossível conseguirmos [cumprir] esse indicador, ou seja, controlar doentes que, em poucos quilómetros, chegam a um hospital”, sublinha a médica de família Maria João Tiago. Uma posição secundada por Nuno Jacinto, também médico na USF Salus, em Évora.
“Este indicador mede, entre os doentes que foram ao serviço de urgência, qual a percentagem que passou pela USF antes. Temos de perceber se o utente foi à urgência porque não tem alternativa no centro de saúde (e aí a USF tem melhorar) ou se o utente tinha hipótese de ir ao centro de saúde e foi à urgência por sua iniciativa”, sublinha o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, deixando uma pergunta: “Que responsabilidade temos que os doentes se desloquem às urgências hospitalares, que são de acesso livre?”
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Sendo que o valor de desempenho mais comum nas equipas das USF é o de 72,4, isto significa que, para além dos indicadores relativos à prescrição de medicamentos e exames, haverá dificuldades em cumprir pelo menos uma das outras duas metas, relativas aos internamentos ou às idas às urgências hospitalares. Numa equipa que falhe estes quatro indicadores (de um total de 43 mas que, em conjunto, pesam 35% do desempenho), a perda ascende aos mil euros no caso dos médicos, 160 euros no caso dos enfermeiros (em 460 possíveis) e cerca de 50 euros para os assistentes técnicos (que, no limite, podem ganhar mais 147 euros na componente do desempenho).
Há dezenas de outros indicadores, com muito menor peso no desempenho, de que são exemplo a vigilância das grávidas e bebés, a utilização de consultas de enfermagem, o rastreio do cancro colorretal, a vacinação contra o tétano ou a gripe e o controlo de doentes diabéticos, hipertensos ou com DPOC.
Para o médico de família Jorge Roque da Cunha, da USF Travessa da Saúde (em Camarate, Loures), o Ministério da Saúde devia rever o diploma do anterior governo, aumentando “o peso dos indicadores de acesso e diminuindo o peso” dos indicadores referentes à prescrição de medicamentos e exames. Para Maria João Tiago, “é necessário aumentar os valores limite ou então diminuir o peso desses indicadores”.
O Observador questionou o Ministério da Saúde para perceber se o novo governo tem intenção de fazer alterações ao índice de desempenho das USF modelo B, mas não obteve resposta.