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Os primeiros camiões com ajuda humanitária começaram a entrar na Faixa de Gaza hora e meia depois do início do cessar-fogo, às 5h da manhã (hora local, 3h em Lisboa). Dois deles, como conta o The Guardian, traziam faixas que diziam “Juntos pela Humanidade” e “Pelos nossos irmãos em Gaza”. Seriam os primeiros de 200 num só dia, um número imensamente superior ao que tem sido habitual desde que a Faixa de Gaza começou a ser atacada por Israel, em resposta aos ataques do Hamas em solo israelita a 7 de outubro.
A chegada de tanta ajuda humanitária (que inclui comida, medicamentos e também combustível para por os geradores a funcionar) só foi possível porque o cessar-fogo acordado entre Israel e o Hamas, com mediação do Qatar e ajuda de Egipto e Estados Unidos, aguentou. Foi a primeira pausa no conflito que já matou milhares de pessoas ao longo das últimas sete semanas.
À medida que vários palestinianos tentavam regressar do sul da Faixa para o norte — apesar dos panfletos deixados pela aviação israelita que avisavam da continuação dos ataques após o fim do cessar-fogo — ao longo do dia, a outra metade do acordo era colocada em marcha. Pouco passava das 16h (hora local, menos duas em Lisboa) quando começaram a surgir relatos de que o primeiro grupo de reféns acordado iria de facto ser libertado. A confirmação surgiu primeiro por declarações de responsáveis egípcios, depois pelo gabinete de Benjamin Netanyahu e por fim pelo Qatar, principal mediador.
O porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros daquele emirado deu os detalhes mais tarde, quando as imagens de vários carros da Cruz Vermelha a atravessar o posto fronteiriço de Rafah já circulavam mundo: ao todo, foram libertados 13 reféns israelitas (idosas, crianças e as respetivas mães, incluindo uma cidadã luso-israelita), 10 cidadãos tailandeses e um filipino. Do outro lado, na Cisjordânia, uma multidão aguardava com expectativa (e tensão, com os militares israelitas a dispararem gás lacrimogéneo) a libertação de 39 mulheres e menores de idade palestinianos de uma prisão israelita, que acabaria por acontecer já depois de o sol se por.
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— Israel War Room (@IsraelWarRoom) November 24, 2023
Ao final desta sexta-feira, era já claro que o acordo mediado pelo Qatar tinha surtido efeito ao longo do primeiro dia. O cessar-fogo não foi quebrado, o que permitiu a milhares de palestinianos tentarem reconstruir partes da sua vida na Faixa de Gaza e caminhar pelas ruas; e os dois lados mantiveram a sua parte do acordo, libertando reféns e prisioneiros. Resta saber se nos próximos quatro dias de cessar-fogo (que podem ser estendidos para dez caso o Hamas liberte mais reféns do que o acordado) tudo continuará a correr de forma suave.
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O acordo que convinha a Israel e ao Hamas, movido pelas opiniões públicas
Mas como se explica que tenha sido possível esta negociação entre um governo israelita que até aqui tem tido uma postura pública belicista e um grupo terrorista que matou e violou civis?
O primeiro fator a ter em conta é o da pressão da opinião pública em Israel, um país democrático onde, historicamente, a ideia de trazer de volta os reféns sempre teve um enorme peso. À medida que as famílias das pessoas raptadas a 7 de outubro foram tornando mais audíveis as suas críticas ao governo, mais a estratégia militar pura e dura para Gaza foi perdendo apoio. Uma sondagem do Instituto pela Democracia de Israel mostra que, desde meados de outubro até agora, o número de pessoas que defende que a prioridade seja a negociação aumentou 15%.
O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, já a braços com uma taxa de popularidade baixa na sequência da sua polémica reforma judicial e do descalabro de segurança do 7 de outubro, percebeu-o. Os restantes membros do gabinete de guerra, que incluem o líder da oposição Benny Gantz, também. As agências de segurança como o Shin Bet e a Mossad não se opuseram, considerando que a libertação de prisioneiros palestinianos não era preocupante, por serem mulheres e menores de idade e não combatentes, como nota o Haaretz. Afinal, nada que surpreenda num país onde as trocas de prisioneiros têm sido habituais ao longo da História, mesmo quando o rácio não é favorável a Israel.
Inicialmente, alguns dos membros mais à direita da coligação de governo opuseram-se a qualquer acordo com o Hamas, mesmo que para salvar reféns. Na noite de quarta-feira, porém, apenas três dos 38 membros do executivo votaram contra a proposta: o ministro da Segurança Itamar Ben-Gvir e outros dois membros do seu partido de extrema-direita, o Otzma Yehudit.
Da parte do Hamas, também existiam incentivos para aceitar este acordo: liberta apenas 50 dos quase 300 reféns que tem neste momento, enquanto que Israel permite a saída de 150 prisioneiros palestinianos (embora nenhum seja combatente do Hamas). O facto de o líder do Hamas em Gaza, Yahya Sinwar, ser também ele um antigo prisioneiro que foi libertado é apontado por muitos como uma das razões pela qual é particularmente sensível a esta questão: “Penso que Yahya Sinwar ordenou o ataque a Israel precisamente para conseguir que fossem libertados prisioneiros palestinianos”, afirmou há alguns dias Hagai Hadas, antigo negociador israelita, numa entrevista ao Haaretz.
Para além disso, é uma forma de o Hamas tentar manter alguma popularidade junto da população de Gaza, que tem sido arrasada por bombardeamentos constantes. “Tem havido muitos sacrifícios, muitas perdas, muitos danos. Eles precisam de apresentar algo em troca”, resumiu ao Wall Street Journal o investigador palestiniano da Universidade de Birzeit, Ghassan Khatib.
Guerra recomeça daqui a dias e pode ser ainda mais sangrenta — nem ter um fim claro à vista
Não se pense, contudo, que por ambos os lados estarem satisfeitos com o atual acordo isso se traduza numa extensão do cessar-fogo. A opinião dos especialistas é que, sem um acordo político, isso é altamente improvável: “Aquilo que normalmente acontece é que os tiros param durante algum tempo, mas cedo recomeçam, porque alguém se sente ameaçado”, resumiu à CNN o antigo comandante da NATO Wesley Clark.
Como resume Patrick Wintour, editor de Diplomacia do The Guardian, nenhum dos lados tem interesse em estender esta pausa nos combates: “O Hamas perderia influência se libertasse todos os reféns. E não pode fazer demasiadas cedências, porque perde apoio para outros grupos militares rivais em Gaza, como a Jihad Islâmica”, explica. Quanto a Israel, um cessar-fogo permanente “arrisca deixar as estruturas do Hamas intactas”, algo que Netanyahu prometeu que não iria acontecer com esta guerra.
A missão israelita em Gaza é a de “decapitar o Hamas”, têm assegurado os líderes do país repetidamente. “O objetivo era o da destruição total do movimento, incluindo a sua liderança. A campanha [militar] está longe de já ter conseguido isso”, resumiu Jean-Loup Samaan, do Instituto do Médio Oriente da Universidade de Singapura, ao Financial Times.
Sabendo disso, o ministro da Defesa israelita, Yoav Gallant, repetiu esta quinta-feira que a campanha será retomada “com intensidade” após o fim do cessar-fogo e deverá prolongar-se durante pelo menos mais dois meses. O foco deverá deixar de ser o norte da Faixa da Gaza e passar a ser o sul, em concreto a cidade de Khan Yunis, onde Israel pensa que estão escondidos os principais líderes do Hamas. Mas, com a população que fugiu do norte encurralada no sul, aquilo que se prevê é uma mortandade ainda maior do que a atual fase da guerra.
É por isso que alguns, como o colunista Uri Misgav do Haaretz, se questionam sobre se Netanyahu não estará também a tentar estender a duração do conflito por questões pessoais. “Enquanto depender de Netanyahu, a guerra nunca irá acabar”, escreve o jornalista, que aponta para o adiamento do inquérito às falhas de 7 de outubro (só terá lugar depois de o conflito terminar) e para o facto de que, se Netanyahu sair do cargo de primeiro-ministro, perderá imunidade e será julgado por corrupção nos atuais processos que enfrenta.
Outros não vão tão longe e afirmam que Israel está apenas determinado em cumprir a missão que inicialmente definiu de arrasar o Hamas — e que era fortemente apoiada pela população israelita nos dias a seguir a 7 de outubro. Mas Telavive continua sem responder à pergunta “E depois?”. Se o Hamas for eliminado, quem ficará a governar Gaza? Os Estados Unidos já deixaram claro que gostariam de ver uma solução encabeçada pela Autoridade Palestiniana (que controla a Cisjordânia), mas Netanyahu tem dito que não.
O “vácuo” deixado pelo Hamas, aponta Jean-Loup Samaan, arrisca-se a ser um problema no futuro até para a própria “segurança dos israelitas” que deverá criar um fenómeno de “mission creep”, diz, usando a expressão militar inglesa para quando o objetivo inicial de uma missão se altera. “[Os soldados israelitas] vão acabar por ficar em Gaza um período muito mais longo do que esperavam. Esse é o resultado natural de uma operação militar sem um claro plano político”, prevê.