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João aterrou em agosto nos Estados Unidos para frequentar o 12.º ano, mas acabou por regressar a Portugal duas semanas depois
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João aterrou em agosto nos Estados Unidos para frequentar o 12.º ano, mas acabou por regressar a Portugal duas semanas depois

RODRIGO MENDES/OBSERVADOR

João aterrou em agosto nos Estados Unidos para frequentar o 12.º ano, mas acabou por regressar a Portugal duas semanas depois

RODRIGO MENDES/OBSERVADOR

O "american dream" que se tornou um pesadelo. João foi estudar para os Estados Unidos e acabou explorado pela família de acolhimento

Estudante português era obrigado pela família que o acolheu a levantar-se às 5 da manhã para trabalhar na quinta. Há mais jovens com queixas das condições promovidas pela agência norte-americana ASSE.

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O aeroporto de Dane County, no estado de Wisconsin, não é grande. Não comparado com o de Lisboa, onde João (nome fictício) conhece todos os cantos. Mas quando se voa mais de seis mil quilómetros com a expectativa de viver o “sonho americano” no último ano do secundário, é fácil sentir-se pequeno. O jovem, porém, mal teve tempo para ter essa sensação.

Assim que encarou a multidão parada na zona das chegadas, viu a bandeira portuguesa e o seu nome escrito num cartaz colorido que dizia “Bem-vindo aos Estados Unidos”. A segurá-los estava uma mulher, que trazia vestida uma camisola com a inscrição “best host mom ever” (a melhor mãe de acolhimento de sempre), e um homem e dois jovens a acompanhá-la – com as palavras “pai”, “irmão” e “irmã” estampadas nas respetivas t-shirts. O entusiasmo era tanto que, naquele momento, nenhum alarme soou na cabeça de João. Nem com o cartaz que a sua “nova irmã” segurava, ao lado da bandeira nacional: “Bem-vindo a esta família louca”.

Quando, aos 12 anos, João manifestou a vontade de ir estudar para os Estados Unidos, a mãe, Filipa (nome fictício), soube logo que teria de passar os cinco anos seguintes a poupar dinheiro. No ano passado, assim que o filho fez 17 anos, contactou a Multiway, uma empresa que promove programas de intercâmbio e cursos no estrangeiro.

"Eles não querem que eu fale contigo. Dizem que se quero adaptar-me à nova cultura, tenho de me desligar totalmente da família, dos amigos e de Portugal. Nem música portuguesa me deixam ouvir."
João (nome fictício), português que foi estudar para os Estados Unidos

Ao Observador, a mãe de João explica que, em Portugal, há duas entidades a “promover este tipo de cursos, com valores idênticos”, ou seja, rondando os 11.765 euros: “a Multiway e a AFS”, sendo que só a primeira trabalha com a ASSE [a agência norte-americana que faz a ligação com as empresas internacionais e que assume a responsabilidade pelos jovens quando eles chegam àquele país].

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A AFS é uma associação de juventude e voluntariado, sem fins lucrativos, que integra uma rede internacional de organizações não governamentais presente em mais de 60 países. A diferença é que os programas de intercâmbio que a associação promove são facilitados por voluntários, enquanto que a Multiway “é a base de adultos a acolher os miúdos“, explica Filipa, justificando o porquê de ter escolhido esta empresa.

Inscreveu depois João nos exames necessários para se candidatar ao 12.º ano de escolaridade nos Estados Unidos e ambos frequentaram as reuniões de preparação organizadas pela empresa — um dos objetivos era entender as dinâmicas com as famílias de acolhimento.

“Esclareceram-nos logo que, se algo não corresse bem, nomeadamente se eles não se adaptassem às famílias, removiam-nos da casa no espaço de 30 minutos“, conta ao Observador. “Disseram que iam logo buscá-los em caso de emergência. Não garantiam trazer malas e roupa, mas, pelo menos, o passaporte.”

Com estas informações, Filipa e João ficaram descansados. Apesar da distância, sabiam que, se houvesse algum problema, bastaria o jovem entrar em contacto com o coordenador local da ASSE para tudo ficar resolvido em meia hora.

A família de acolhimento de João (nome fictício) foi buscá-lo ao aeroporto, com cartazes a dar as boas-vindas e a bandeira portuguesa

Falava com família às escondidas e limpava estrume de cavalo: a “adaptação” à “cultura norte-americana”

Às 21h30 de 28 de agosto, João aterrou nos Estados Unidos. Ainda faltava uma semana para o início do ano letivo — os estudantes têm de ir mais cedo para se adaptarem à família que os vai acolher. A receção que lhe fizeram no aeroporto fazia crer que não seria necessário muito tempo até se sentir confortável.

Assim que chegaram a casa, os “pais de acolhimento” levaram-no a conhecer o quarto onde iria dormir durante os dez meses do programa. Era na cave, tinha o chão forrado a alcatifa, uma cama, uma secretária de madeira, uma janela e uma estante de metal a fazer de armário. Até aí, tudo parecia bem. O verdadeiro pesadelo começou no dia seguinte, às cinco da manhã.

Foi essa a hora que João foi acordado pela família. Apesar do cansaço acumulado das longas horas de voo e das poucas horas de sono, o jovem não contestou. Obedeceu e seguiu o “pai”, a “mãe” e o “irmão”. Saíram de casa, entraram numa carrinha e seguiram viagem, sem dizer uma palavra.

João não sabia bem o que o esperava e, mesmo que quisesse decorar o caminho, era impossível. Tudo era novo. A única coisa que decorou foi a duração do percurso – 20 minutos – e o destino: um rancho.

Aí, lembrou-se da folha fornecida pela ASSE com a descrição da família, em que esta dizia ter “cavalos” e que gostava de “passar muito tempo na quinta”. “Adoramos estar lá fora e caminhar. Estamos sempre a passear com os cães”, informava ainda o documento a que o Observador teve acesso.

Quando lá chegou, no entanto, percebeu que o documento omitia grande parte do que a família fazia quando passava “tempo na quinta”. “O rancho não era deles, eles trabalhavam para o proprietário”, afirma Filipa. “Eles tinham quatro cavalos e, em troca do trabalho, não tinham de pagar para os ter lá.”

João nunca pensou que a condição para fazer parte da família era também participar nas atividades feitas nesse rancho. “Ele e o ‘irmão’ tinham de tirar os cavalos das boxes – só havia quatro boxes, mas dezenas de cavalos –, depois tinham de limpá-las e aos cavalos e a seguir remover o estrume”, descreve a mãe.

“Isto acontecia até à hora de almoço. Depois almoçavam, uma daquelas barritas norte-americanas de carne (beef jerky, que consiste em carne seca vendida em pacotes), e à tarde prosseguiam“, explica Filipa ao Observador, acrescentando que aí tinham de limpar e varrer um “barracão” onde eram armazenadas as ferramentas.

João (nome fictício) tinha à sua espera umas botas para trabalhar na quinta. E se não comprasse a própria comida, almoçava e jantava carne seca, acusa a mãe

O dia de “trabalho” terminava por volta das 18h, hora a que regressavam a casa e jantavam o que tinham almoçado. Isto acontecia todos os dias da semana. “Não havia sábados, domingos ou feriados. Era todos os dias”, garante Filipa.

Nos primeiros dias, João guardou para si o que a família o obrigava a fazer no tempo em que, alegadamente, deveria estar a conhecer a cidade, a aprender a “cultura norte-americana” e a conhecer pessoas novas. No entanto, ao final do terceiro dia, a mãe começou a perceber que algo não estava certo.

“Porque ele falava assim”, diz Filipa, imitando um sussurro. “Perguntava-lhe por que falava tão baixo e ele dizia: ‘Porque não posso estar ao telefone‘.” Foi aqui que a mãe começou a fazer mais perguntas.

“Eles não querem que eu fale contigo. Dizem que se quero adaptar-me à nova cultura, tenho de me desligar totalmente da família, dos amigos e de Portugal”, terá respondido João, segundo a mãe. “Nem música portuguesa me deixam ouvir.”

Se fosse por Filipa, João regressava nesse mesmo dia a Portugal. Mas essa não era a vontade do jovem, que tinha esperança de que, quando a escola começasse, tudo ficasse bem.

O Observador contactou nos últimos dias a Multiway para pedir esclarecimentos sobre o caso de João e sobre outras possíveis queixas, mas a empresa recusou-se a responder às perguntas. Também a norte-americana ASSE foi questionada sobre o caso, mas não enviou qualquer resposta até à publicação deste artigo.

Caroline “estava feliz” até ficar doente. E nem com o corpo coberto de manchas a levaram ao médico

Ainda que angustiada e com um sentimento de impotência, Filipa deixou-o ficar. Também ela esperava que tudo melhorasse com o início do ano letivo. Mas nada terá mudado. Só as horas a que o “despertador” tocava.

Com o início das aulas, levantavam-se às 4h30 para ir para o rancho, de forma a conseguirem estar às 8h na escola”, assegura a mãe. “Com a mesma roupa. Não havia banho pelo meio.”

Ainda que não houvesse tempo para a higiene, faziam sempre uma paragem no supermercado para arranjarem pequeno-almoço. Mas até aí, segundo a mãe, havia negligência. “A senhora comprava para os dois filhos e não comprava para o meu. Ele tinha de pagar com o cartão dele”, conta.

E não era só para a primeira refeição do dia que João tinha de recorrer ao seu dinheiro. Apesar de Filipa garantir que, no contrato, está escrito que a família tem de dar “três refeições por dia”, não terá sido isso que aconteceu.

“Chegavam a ir ao supermercado, para comprar jantar – porque eles só comiam lasanhas congeladas e outros processados – e o meu filho tinha de pagar o dele“, recorda.

A questão da comida e do trabalho não eram as únicas coisas que preocupavam Filipa. “Antes de ele ir para os Estados Unidos, tínhamos concordado que ele teria explicações online de Matemática, pois teria de fazer o exame em Portugal. Tínhamos falado disso com a Multiway e garantiram-nos que não havia problema”, recorda.

“Pouco depois de lá chegar, perguntou-me quando começavam as explicações. Achei estranho. Ele é bom aluno, mas ninguém quer ter explicações”, aponta a mãe.”Perguntei porque queria saber e ele disse: ‘Ah, porque pelo menos durante essa hora posso estar sentado‘.”

"A coordenadora local da ASSE disse que eu podia fazer coisas, como disparar uma arma, desde que não publicasse no Instagram. Mas isso é absolutamente ilegal."
Caroline Plöeckl, jovem alemã que foi estudar para os Estados Unidos

“Como assim? Este rapaz parece que está preso na Rússia ou noutro sítio qualquer”, pensou. O que Filipa não sabia é que não era a única mãe preocupada à distância com as condições em que o filho estava a viver nos Estados Unidos.

Nessa altura, já Sandra Plöeckl escrevia cartas ao embaixador alemão nos Estados Unidos e queixava-se ao promotor alemão que, como a Multiway em Portugal, levara a filha da Alemanha para frequentar um programa intercâmbio em território norte-americano. No caso da jovem alemã a experiência foi proporcionada ao abrigo de uma bolsa, criada por acordo entre o Congresso dos Estados Unidos da América e o Bundestag alemão — “Programa de Patrocínio Parlamentar” (PPP), que é chamado de “Congress Bundestag Youth Exchange” (CBYX) nos EUA.

Segundo Caroline, a jovem alemã que voou para o país com apenas 17 anos, seis dias antes de João, os problemas com a ASSE começaram “logo no início”. “Quando fazia alguma questão à minha coordenadora local, ela muitas vezes nem respondia”, conta ao Observador.

“Além disso, ela afirmou que eu podia fazer coisas, como disparar uma arma, desde que não publicasse no Instagram. Mas isso é absolutamente ilegal”, recorda Caroline.

Os problemas da jovem alemã, no entanto, nada tiveram a ver com armas. E também não foram essas que a levaram a mudar de família de acolhimento apenas dois meses após ter chegado aos Estados Unidos.

“A minha primeira família de acolhimento quis livrar-se de mim, porque alegadamente a minha presença na casa causava ansiedade. Além disso, eu supostamente também causava problemas no casamento dos meus ‘pais'”, explica Caroline, segundo aquilo que lhe foi dito pela ASSE. Já a jovem, pensa que a razão verdadeira para a “expulsão” de casa teve a ver com uma mudança no trabalho do “pai” e com problemas com o “irmão”.

Caroline acabou por encontrar um refúgio temporário na casa de um amigo do seu treinador de ténis, para onde se mudou um mês depois. “Tive de ser eu a encontrar uma família, porque a representante da ASSE não conseguia”, esclarece ainda.

Fora o facto de estar por sua conta em risco a procurar um sítio para ficar, Caroline estava “muito feliz” com a vida que levava nos Estados Unidos, como descreveu a mãe na carta enviada ao embaixador, que também foi endereçada ao Presidente Joe Biden, à Primeira-dama e à vice-Presidente, Kamala Harris.

“Ela estava envolvida no liceu. Era aluna de mérito, estava no jornal da escola, fazia parte das equipas de ténis e de wrestling e também estava nos clubes de leitura e de francês. Fez imensos amigos norte-americanos”, conta a mãe.

Tudo piorou quando encontrou a segunda família de acolhimento, em novembro. “Comecei a ter muitas enxaquecas e tonturas. Não fiz nada, porque assumi que estava com uma gripe”, revela ao Observador. “No entanto, no final de dezembro, comecei a ficar com a pele vermelha e com comichão. Decidi ir às urgências e receitaram-me medicamentos.”

Quando se mudou para a nova casa, Caroline começou a ter enxaquecas, tonturas e manchas vermelhas na pele

“Comecei a tomá-los, mas estava cada vez mais doente. No início de janeiro, comecei a ter manchas vermelhas por todo o corpo.” Preocupada com o que podia ser a reação da família de acolhimento caso lhe contasse – visto que esta já tinha menosprezado os seus sintomas – Caroline preferiu falar com o treinador.

“Ele disse-me para ir ao médico e eu pedi para ele falar com a minha mãe de acolhimento. Estava com muito medo que ela me proibisse de continuar a fazer wrestling“, continua a jovem. “Houve um dia, no entanto, em que tive de sair do treino, porque estava a sentir-me muito mal e disse à família de acolhimento para me levarem ao médico. Eles recusaram.

A mãe, Sandra, ainda falou com a ASSE e com o coordenador local para pressionarem a família a levá-la ao médico, mas eles disseram que não o podiam fazer. Aí, contactou a CBYX para a removerem da família. “O pesadelo estava prestes a começar“, recordou a mãe, na carta.

“O comportamento de Roberta não nos deixou alternativa”

As queixas de alunos europeus não vêm apenas de Portugal e da Alemanha. Roberta Fariello não abandonou os Estados Unidos por escolha. Mas, sim, porque foi obrigada.

A jovem voou para Ontário, na Califórnia, a 4 de agosto e regressou “forçadamente” a Roma a 5 de novembro, dois dias após ter recebido a carta a expulsá-la do programa de intercâmbio. E, tal como nos dois casos anteriores, os problemas começaram logo no início. Aqui, a alegada má experiência não foi com ASSE, mas sim com a agência Terra Lingua.

“Embora fosse suposto a Roberta ser acolhida num quarto sozinha, a primeira família de acolhimento decidiu receber outra estudante. Ambas foram alojadas num pequeno quarto com sete metros quadrados”, revelou o pai, Salvatore, numa queixa feita ao Comité para a Segurança dos Alunos de Intercâmbio Estrangeiros (CSFES), criado em 2004 para defender os alunos de intercâmbio negligenciados pelas famílias ou pelas agências que gerem a sua experiência.

No documento que enviou ao Observador, Salvatore Fariello explicou ainda que a dinâmica familiar em que viviam era “problemática”. “Eles tinham câmaras apontadas para o quarto delas. Deitavam-se muitas vezes sem jantar e eram repreendidas se iam à cozinha procurar comida. As luzes do quarto eram desligadas às 22h. A Roberta foi ameaçada de que não deveria contar a ninguém os problemas que estava a ter em casa, ou era alvo de uma ação disciplinar”, continuou.

Roberta, contudo, não seguiu o conselho. Desde cedo, pôs os pais a par de tudo o que se estava a passar. “Como ficámos muito preocupados, eu e a minha mulher contactámos a agência italiana que faz a ligação com a norte-americana Terra Lingua, de forma a encontrar uma solução. A resposta foi terrível. Disseram-nos que não tínhamos razões válidas para nos preocuparmos“.

Terá jogado a favor da jovem o facto de os seus pais não terem sido os únicos a queixar-se. Os da sua colega de casa também tinham contactado a agência do respetivo país, tendo nessa altura a coordenadora da Terra Lingua percebido “que havia sérias razões de segurança” para mudar as estudantes de família.

Famílias foram informadas pela Multiway que, se algo corresse mal ou se os filhos não se adaptassem às famílias de acolhimento, eram removidos de casa, num espaço de 30 minutos.

A agência acabou por mudá-las para uma família que morava bem longe da escola que frequentavam. E com isso nasceu outro obstáculo. “Tinham de acordar às 5h30 todos os dias para ir para a escola, porque a ‘mãe’ tinha de chegar ao trabalho às 7h. Ficavam sozinhas à espera que as portas abrissem durante quase duas horas. O que era perigoso e desconfortável certamente”, contou o pai.

Já depois das aulas, a situação não era muito diferente. “Tinham de esperar entre três a quatro horas na rua para que a ‘mãe’ as fosse buscar para irem para casa”, acrescentou Salvatore.

Para resolver o problema, os pais das jovens falaram entre si e sugeriram à Terra Lingua pagar um táxi que as levasse e as fosse buscar à escola. “O resultado foi: um dia depois, a Roberta recebeu uma carta a dizer que tinha de sair imediatamente do programa e voltar para Itália.”

“A justificação para a decisão eram as mentiras incríveis que a agência norte-americana deu sobre Roberta. Disse que era perigosa e que fazia bullying à Carla [colega de quarto], que era uma rapariga problemática”, acrescentou o pai.

O Observador teve acesso ao documento escrito pela Terra Lingua que refere alguns comportamentos que a jovem italiana terá tido durante a estadia nos Estados Unidos. “Apesar de lhe terem pedido repetidamente para não o fazer, quando estava zangada, Roberta batia com uma bola de ténis contra a parede partilhada com a família do condomínio vizinho. Os vizinhos, preocupados com os gritos e as pancadas, contactaram várias vezes a família de acolhimento”, escreveu a representante.

Roberta batia com as portas do quarto e da casa de banho quando não conseguia o que queria; Roberta mantinha repetidamente conversas telefónicas em que gritava continuamente num tom agudo preocupante, causando tensão e medo na casa e levando os vizinhos a considerar a possibilidade de telefonar à polícia; Roberta chamava repetidamente “estúpidos” aos pais e à irmã anfitriões; Carla pediu várias vezes para mudar de escola, porque Roberta andava a falar dela a outros alunos e a sua saúde mental estava a piorar”, acrescentou a agência, dizendo ainda que “a lista continua”.

A Terra Lingua salientou que “compreende a desilusão com a situação”, mas que “por vezes os adolescentes comportam-se de forma diferente quando estão sob o cuidado de outros”. “O comportamento de Roberta não nos deixou alternativa”, rematou, explicando a razão para a expulsão.

Após esta resposta, os pais de Roberta tentaram, por todos os meios possíveis, expor o que tinha acontecido à filha. Além do CSFES, falaram com o Ministério Público norte-americano e outras organizações italianas. E foi nessa altura que descobriram o fórum: “Não mandem os vossos filhos para a América”.

Com centenas de publicações, vários pais e filhos italianos queixam-se da forma como foram recebidos nos Estados Unidos. Uns recorrem apenas às palavras para explicar o “pesadelo” passado com as famílias de acolhimento. Outros partilham fotografias para mostrar o “lixo” em que viviam.

Algumas das fotografias partilhadas por famílias de alunos que fizeram intercâmbio nos Estados Unidos sobre as condições em que viviam

Quando foi a vez de Filipa descobrir este fórum — que também tinha denúncias relativas à norte-americana ASSE e não apenas da Terra Lingua –, ficou em choque. “Comparado com outros, o que aconteceu ao João não foi nada”.

Da discussão com a “mãe” ao tratamento de silêncio: os últimos dias de João na casa da família de acolhimento

Uma das vezes, após João desligar repentinamente a chamada com Filipa – algo que acontecia com frequência –, a mãe ligou imediatamente para a diretora da Multiway, Rosa Marques, para discutir o problema da comida e das horas de trabalho no rancho.

“Ela disse-me que tínhamos toda a razão”, lembra. “Aliás, disse inclusivamente que o seguro que eles levam daqui (de saúde, riscos e acidentes) nem cobriria qualquer uma dessas atividades, pois não era suposto ele estar a desempenhar essas funções.”

Filipa alega que Rosa Marques aconselhou o filho a falar com a mãe de acolhimento, visto que os contactos feitos com a coordenadora local não surtiram efeito. “Ela nunca lhe respondeu e chegou mesmo a expulsá-lo de um grupo de Whatsapp que tinham. Ele entrou em paranoia quando isso aconteceu.”

João acabou por seguir o conselho e falou com a “mãe”. “A senhora passou-se”, resume Filipa. “Desatou aos gritos, a dizer que não estava para o aturar. E a meio da discussão saiu para o quintal. Aí, ele ligou à Rosa, que falou com a senhora em alta-voz e disse que as coisas não podiam continuar assim.”

A “mãe” terá sido intransigente e recusado seguir as ordens da diretora da Multiway, que, perante esta resposta, aconselhou o jovem a trancar-se no quarto, pois “iam tentar arranjar-lhe uma nova família”, como tinha sido prometido nas reuniões.

Achávamos que ia demorar só entre 30 minutos a duas horas. Mas sendo até razoáveis, podia demorar um dia ou dois”, aponta Filipa. “Mas não arranjaram nada. Em vez disso, apareceu um coordenador local novo, que entretanto o meu filho percebeu que trabalhava com o pai de acolhimento.”

A proximidade de Troy – nome do coordenador local – com a família não era, contudo, a única coisa suspeita na sua atitude. “No primeiro dia, apareceu em casa dele e levou o meu filho para o meio do campo para falar com ele“, conta a mãe. “Tinha o livro de regras da ASSE e disse-lhe que ele (João) é que não estava a cumprir.”

“Depois, deu-lhe uma data de papéis para ele assinar.” Nesse momento, João seguiu um conselho que a mãe lhe dera na altura em que começaram a nascer os problemas: “Obedecer até arranjarmos uma solução”. E assinou os ditos papéis.

“Ele é menor. Ele assinou o quê exatamente?”, questiona Filipa. “Contactei o Troy várias vezes e nunca me respondeu.”

"A família tinha câmaras apontadas para o quarto das estudantes. Deitavam-se muitas vezes sem jantar e eram repreendidas se iam à cozinha procurar comida. As luzes do quarto eram desligadas às 22h. Foram ameaçadas de que não deveriam contar a ninguém os problemas que estavam a ter em casa, ou eram alvo de uma ação disciplinar"
Salvatore Fariello, pai de jovem italiana que estudou nos Estados Unidos

Na mesma altura em que Troy apareceu, a família também deixou de falar ao jovem. “Viviam em silêncio. Nem os miúdos, nem a mãe lhe falavam. Só o pai é que lhe ia dizendo qualquer coisa.”

João viu, então, na escola o único local onde podia falar. E era com uma pergunta que começava muitas das conversas: “Posso dormir em tua casa?”.

“Tiveste azar com a família. Eles são conhecidos por serem estranhos”

Não é completamente verdade que a família de acolhimento de João tenha deixado totalmente de lhe falar. Segundo a mãe, fora os momentos em que aproveitavam para insultar o seu corte de cabelo – tendo inclusivamente dito que já tinham marcado cabeleireiro para um corte a “pente zero” –, houve outros em que diziam abertamente que “já não o queria em casa”.

“Foi na escola que ele encontrou a sua salvação”, revela agora Filipa. “Começou logo a relacionar-se com alguns miúdos, que lhe disseram que tinha tido azar com a família. Porque na terra eram conhecidos por serem estranhos.”

Aliás, João chegou mesmo a saber, por um diretor de turma, que a família já tinha acolhido em tempos outro estudante de intercâmbio e que “também tinha corrido mal e que ele se tinha ido embora”. Agora só faltava o jovem fazer o mesmo.

Nos Estados Unidos há pouco mais de uma semana e com a família de acolhimento a querê-lo na rua, João viu-se obrigado a pedir um favor aos amigos que acabara de fazer: um sítio onde dormir. Houve um que acabou por dizer que sim. E a mãe dele também se mostrou disponível a acolher João enquanto a situação não estivesse resolvida.

“Esse amigo foi com ele a casa buscar algumas coisas. Eu disse logo ao João para não se preocupar com o resto das coisas, para levar apenas o passaporte e o computador”, recorda Filipa. “E ele respondeu-me: ‘Mãe, o passaporte, o computador e os carregadores estão sempre na minha mochila. E, quanto à roupa, nem a tirei da mala.’

“O meu filho esteve lá uma semana e dois dias e nunca tirou a roupa de dentro da mala, porque não havia armário no quarto. Só me apercebi nesse dia”, conta Filipa, alertando que também só soube nesse momento que nas divisões ao lado do quarto estavam coelhos e galinhas.

O jovem rumou, então, para a nova casa, onde durante cinco dias foi habituado a comida a sério e a tarefas domésticas que envolviam apenas loiça suja ou pó no quarto. Só que, na mesma altura, em que a família tentava articular com a ASSE um sítio definitivo para ele ficar, surgiu outro obstáculo.

“A família desse colega ia de férias nesse domingo. Iam ficar 15 dias em Chicago.” Apesar de Filipa ter agradecido a hospitalidade do colega de João e da sua mãe, havia uma regra que se impunha. “Tal como ele não foi para lá para trabalhar, também não foi de férias. Foi para estudar.”

Foi nesse momento que João cedeu. “Mãe, se calhar está mesmo na altura de voltar. Não tenho onde dormir”, confessou. Meses mais tarde, foi Caroline a formular essas palavras. Não à mãe, mas à polícia.

Uma chamada para o 911 que ditou a expulsão de Caroline

Após a família de acolhimento não ter levado a jovem alemã ao médico, a coordenadora local da ASSE fez uma visita à casa onde viviam, alegando que esta se tinha queixado de “urina e fezes de gato espalhados pela casa”. “Nunca disse isso”, sublinha ao Observador.

Após a representante virar costas, a família expulsou-a imediatamente de casa. “Queria ficar na casa de uma amiga, mas a coordenadora não permitiu”, recorda. “Por isso, na noite de 19 para 20 de janeiro, liguei ao 911 (linha de emergência norte-americana), mas a polícia não me deu qualquer proteção.”

Caroline diz que tentou explicar que estava a ser mal tratada pela ASSE e que tinha “medo” da coordenadora local, mas que as autoridades nada fizeram. “Só me levaram para quatro sítios diferentes até a agência me vir buscar.”

Nessa noite, a jovem acabou por ficar com a coordenadora num hotel. No dia seguinte, quando se preparava para ir à escola, reparou que o cartão do telemóvel não funcionava. “Nós tínhamos um contrato com a primeira família de acolhimento e ainda pagávamos o tarifário. Simplesmente, cancelaram o cartão e disseram que tinha sido a ASSE a ordená-lo.”

As manchas foram desaparecendo assim que saiu da casa da família de acolhimento e ainda hoje desconhece a origem.

Como se não bastasse ter ficado sem telemóvel, esse não teria sido o único cancelamento a ser feito pela ASSE. “A agência disse-me que eu tinha sido expulsa da escola. Perguntei ao diretor e ele disse que não sabia de nada. Depois, a ASSE enviou-me para casa [Alemanha] sem qualquer razão”, conta.

"No dia em que saiu da casa da família, disse para não se preocupar com o resto das coisas e para levar apenas o passaporte e o computador. Ele respondeu-me: 'Mãe, o passaporte, o computador e os carregadores estão sempre na minha mochila'."
Filipa (nome fictício), mãe de João (nome fictício), estudante português que foi estudar para os Estados Unidos

“Os responsáveis ligados ao programa alemão acusaram-na de ter dito coisas más da família sem provas, apenas com base no que tinha ouvido. Mas nós levámos evidências do que dizíamos”, explicou a mãe.

Tal como os pais de Roberta, Sandra escreveu diversas cartas a explicar a situação da filha e a exigir que fosse feita justiça. E o conselho que ambas receberam de Danielle Grijalva, diretora e fundadora do CSFE, foi que levassem o caso à comunicação social dos respetivos países. Foi aí que nasceu o grupo de Whatsapp “Nightmare in the USA” (“Pesadelos nos Estados Unidos”, traduzido à letra). Grupo esse a que Filipa se juntou pouco depois.

“Não sou uma vítima. Sou um sobrevivente”

Bastou a mãe de João ouvir as palavras “Quero voltar para casa”, para arranjar logo forma de antecipar os voos. Era suposto o estudante português regressar apenas a 3 de junho deste ano, mas os percalços nos Estados Unidos anteciparam nove meses o abraço de Filipa. Chegou às 13h30 de 11 de setembro, com uma camisola da seleção vestida, calos nos dedos e feridas nas mãos. E com menos sete quilos.

“Nos primeiros dias, comeu e dormiu uma loucura. Teve imensos pesadelos em que acordava a meio da noite e me perguntava onde estava”, conta Filipa, dizendo que para si também foram tempos de aflição.

João ainda estava nos Estados Unidos quando Filipa decidiu que não ia deixar que o que lhe tinha acontecido ficasse sem resposta. Não queria dinheiro, apenas justiça.

Família de João (nome fictício) fez queixa ao Ministério Público, tendo a situação sido alvo de um inquérito, que acabou arquivado.

Além das várias reclamações que fez à Multiway e à ASSE, decidiu denunciar o caso às autoridades. “Expus a situação ao Ministério Público, ao primeiro-ministro, ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, à embaixada dos EUA em Lisboa, à embaixada portuguesa lá…”, esclarece.

A Procuradoria-geral da República confirmou ao Observador que a denúncia acabou mesmo por ser alvo de um inquérito, que correu termos no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, e que acabou por ser arquivado.

Filipa também escreveu ao Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, à Kennedy Foundation, ao Department of State, à Polícia Local norte-americana e, finalmente, à CSFES e encontra-se ainda a aguardar resposta.

Enquanto esteve no Wisconsin, João convenceu-se de que tudo o que lhe acontecera era culpa sua — tal como Roberta, que achou que tinha sido ela a causar o mal-estar à família, e tal como Caroline, que pensou que não devia ter feito aquela chamada para o 911. Quando chegou a Portugal, foi preciso algum tempo para tirar essa ideia da cabeça.

“Um dia, a minha cunhada chegou lá e disse: ‘João, não fiques triste. Foi um azar, não tens culpa. És apenas um vítima'”, recorda Filipa. Ao ouvir a última palavra, o jovem interrompeu-a: “Não, tia. Não sou uma vítima. Sou um sobrevivente.

O Observador contactou a Multiway para pedir esclarecimentos sobre o caso de João e sobre outras possíveis queixas, mas a empresa recusou-se a responder às perguntas. Também a ASSE foi questionada sobre o caso de João, mas não enviou qualquer resposta até à publicação deste artigo.

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