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The Godfather
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Marlon Brando, no papel de Vito Corleone, e Al Pacino, o filho Michael, na rodagem de "O Padrinho", que se estreou a 14 de março de 1972

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Marlon Brando, no papel de Vito Corleone, e Al Pacino, o filho Michael, na rodagem de "O Padrinho", que se estreou a 14 de março de 1972

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"O Padrinho": 50 anos da obra-prima que ninguém queria fazer

Como um dos filmes mais populares e influentes da História foi feito contra todas as probabilidades, entre escolhas difíceis, lutas de egos, pouco dinheiro e muita ambição. Por Bruno Vieira Amaral.

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Um escritor falido

Em 1967, Mario Puzo era um homem à beira do precipício. Escrevia a metro, que nem um louco, numa “pulp magazine”, histórias sensacionalistas para um público pouco exigente, para conseguir sustentar cinco filhos e o vício do jogo. No mais fundo de si, este nova-iorquino de ascendência italiana sonhava ser um Dostoievski, mas também queria ser rico, dois projetos de vida dificilmente compatíveis.

Andava às voltas com uma ideia para um romance sobre a Máfia de Nova Iorque com base no testemunho, transmitido pela televisão para todo o país, de Joseph Valachi, um mafioso arrependido que, em 1963, trouxe aquele universo clandestino para primeiro plano e pôs os norte-americanos a imaginar que mundo seria aquele de códigos de honra seculares, lealdades ferozes e vinganças sangrentas.

Só que Puzo já não tinha grande crédito junto dos editores. Os seus romances anteriores tinham tido críticas mornas e, pior do que isso, vendas fracas, tão fracas que, além do adiantamento de três mil dólares pelo último romance, o autor não tinha recebido mais nada. O editor só estava disposto a pagar-lhe um novo adiantamento para o tal “romance da Máfia” quando Puzo lhe entregasse 100 páginas.

O escritor, sempre a correr atrás do prejuízo, teve de aceitar, mas assim que se apanhou com o dinheiro, interrompeu a escrita do livro. Na verdade, não era aquilo que queria escrever. Aquele ainda não era o seu Crime e Castigo, era apenas um livro pensado para agradar ao público com o seu cortejo de personagens excessivas, enredos simultâneos, homicídios criativos e muito sexo, a receita que tinha aprendido a cozinhar nas revistas “pulp”. Não era assim que um escritor ascendia ao panteão dos grandes génios literários.

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Porém, indiferentes às ambições literárias de Puzo, os editores começaram a acreditar que podiam ter tropeçado numa mina de ouro e antes sequer de o escritor ter completado um terço do livro já circulavam notícias sobre o tal “romance da Máfia”, notícias que chegaram depressa aos ouvidos dos produtores de Hollywood, sempre à procura do próximo sucesso editorial que pudessem adaptar ao cinema. Quando ainda nem tinha acabado o livro, Puzo recebeu 12,5 mil dólares dos estúdios Paramount pela venda dos direitos, uma fortuna para um escritor falido, mas uma ninharia em comparação com o que vinha aí.

Author Mario Puzo.

O escritor Mario Puzo fotografado em 1969, o ano em que foi publicado o livro "O Padrinho"

Getty Images

Dois anos depois, quando Puzo já tinha entregado uma primeira versão do livro – que considerava básica e a necessitar de um grande trabalho de revisão – aquela quantia pareceria irrisória. Depois de devorar o manuscrito numa noite, um editor fez uma proposta para os direitos de publicação do livro em capa mole, o chamado “paperback”: 375 mil dólares. Puzo achou que estavam a gozar com ele. O máximo que uma editora alguma vez tinha pagado era 400 mil dólares e O Padrinho – que esteve para se chamar Máfia – ainda haveria de bater esse recorde.

A edição de capa dura chegou às livrarias em 1969 e depressa se tornou um sucesso na lista dos mais vendidos. Nas primeiras semanas, só tinha um livro à sua frente: O Complexo de Portnoy, de um tal Philip Roth, que conseguira esse feito de vender muito e ter reconhecimento artístico, vá, um Dostoievski que vendia milhares de exemplares. Puzo, para já, só tinha as vendas, mas estas continuavam a aumentar e, no início de 1970, o livro chegou mesmo ao topo da tabela.

Um estúdio falido

O sucesso do livro foi recebido com preocupação pelos responsáveis da Paramount. “Acredito que eles não teriam ficado tristes se o livro desaparecesse dos mais vendidos. Só que não havia maneira de desaparecer”, disse Albert S. Ruddy, que veio a ser um dos produtores do filme. É verdade que os estúdios tinham comprado os direitos por uma ninharia, mas o fenómeno em que o livro se tornara obrigava a uma adaptação. E com um bulldozer cultural nas mãos, o investimento no filme teria de ser grande, coisa que a Paramount não queria fazer.

Em 1968, o filme “Dois Irmãos Sicilianos” (“The Brotherhood”) tinha sido um enorme fracasso e os chefões do estúdio não queriam outro filme de mafiosos que se estampasse nas bilheteiras. A ideia era fazer de conta que não tinham os direitos do livro e esperar que a onda passasse. Mas os estúdios rivais da Universal fizeram uma proposta de um milhão de dólares e foi aí que a Paramount percebeu que não havia volta a dar: tinha mesmo de fazer um filme de O Padrinho (que se haveria de estrear há 50 anos, a 14 de março de 1972).

Quando a Paramount o convidou para realizar “O Padrinho”, a produtora, a American Zoetrope, estava quase na falência e, para equilibrar as contas pessoais, Coppola escrevia argumentos, como o de “Patton”, que viria a ser dirigido por Franklin J. Schaffner. A questão na cabeça de toda a gente era: porquê Coppola para realizar um filme que adaptava um best-seller?

Havia razões muito fortes para a prudência da Paramount. Ainda era um dos grandes estúdios de Hollywood mas encontrava-se num caminho de recuperação lenta. Sucessos como “Os Dez Mandamentos” já eram pré-história e precisavam rapidamente daquelas torneiras de dólares que faziam a alegria dos patrões. Em 1966, Charles Bluhdorn, um investidor que tinha por hábito comprar empresas em dificuldades, recuperá-las e vendê-las com lucro, comprou os estúdios. De cinema não percebia nada, por isso o bom-senso aconselhava a que se rodeasse de pessoas que estivessem por dentro do negócio. E foi exatamente isso que ele não fez.

Para liderar a empresa contratou Robert Evans. Diz-se que a escolha terá sido feita pela mulher de Bluhdorn por causa do aspeto físico de Evans. Ator falhado, filho de um famoso dentista nova-iorquino, tinha mais ar de galã do que de produtor, com o seu bronzeado permanente e sorriso ofuscante que depressa lhe valeu a designação de o “pavão playboy da Paramount”. Mas, contra todos os prognósticos, começou a mostrar resultados, e os sucessos de “A Semente do Diabo” e “Um Golpe em Itália” deram-lhe margem na liderança do estúdio. Tudo o que ele não queria agora era meter-se num filme gigante que adaptava um livro de enorme sucesso e que obrigasse a um investimento brutal. A proposta milionária da Universal obrigava-os a fazer o filme, mas iam tentar fazê-lo dentro de um orçamento muito apertado.

Robert Evans

O produtor Robert Evans, que entre a década de 60 e 70 liderava os destinos dos estúdios Paramount

Bettmann Archive

Uma das primeiras decisões foi a contratação de Mario Puzo para escrever o argumento. Puzo nunca tinha escrito um argumento na vida, mas a Paramount deu-lhe todas as condições para trabalhar com calma – assistentes, hotéis, dinheiro para despesas, etc. – e a promessa de 2,5% da futura receita líquida do filme. Não que Puzo agora precisasse. O primeiro objetivo fora alcançado: ser rico. O segundo, ser um autor respeitado, um Dostoievski, era mais esquivo. O Padrinho era um romance de cordel com muito sangue e sexo, lembrado pelos leitores pela cena da cabeça do cavalo e pelas dimensões equídeas do membro viril de Sonny Corleone. Não era literatura de primeira água.

Um realizador falido

Foi isso que Francis Ford Coppola pensou quando leu o livro depois de ter sido inesperadamente convidado pela Paramount para o realizar. Para os estudantes de cinema, uma nova geração de aspirantes a cineastas influenciados pelo cinema europeu, Coppola era um deus. Aos 27 anos conseguira aquilo que pouquíssimos conseguiam ou podiam esperar: realizar um filme. “A Noite é Perversa” (“You’re a Big Boy Now”) era um filme na linha do que Coppola julgava que seria a sua carreira – filmes pessoais, esteticamente desalinhados com os valores da velha Holywood, filmes que respiravam liberdade e não aqueles monos que os estúdios continuavam a produzir. Mas, por necessidade de dinheiro, por amor aos musicais ou por acreditar que seria capaz de injetar a sua vitalidade pessoal num produto de estúdio, Coppola acabou mesmo por realizar um desses monos completamente obsoletos no final dos anos 60: um musical com um vetusto Fred Astaire, “O Vale do Arco-Íris”.

Se Puzo queria ser Dostoievski, Coppola queria ser Fellini, Godard, Antonioni. Não tinha qualquer interesse em realizar um filme baseado num romance sub-literário com sangue, sexo e esparguete. Apesar de ser descendente de italianos e ter alguma sensibilidade para aquele mundo, não era o típico descendente de italianos.

O filme foi um fracasso estrondoso, mas esse não era o único problema de Coppola. O seu desejo de independência e a sua megalomania tinham-no levado a fundar uma produtora que, na cabeça do realizador, competiria com os grandes estúdios. Mas quando a Paramount o convidou para realizar “O Padrinho”, a produtora, a American Zoetrope, estava quase na falência e, para equilibrar as contas pessoais, Coppola escrevia argumentos, como o de “Patton”, que viria a ser dirigido por Franklin J. Schaffner. A questão na cabeça de toda a gente era: porquê Coppola para realizar um filme que adaptava um best-seller? Para início de conversa, como acontece muitas vezes, Coppola não tinha sido a primeira escolha. As primeiras escolhas – Arthur Penn, Costa-Gavras e Otto Preminger, entre outros – não estavam disponíveis, por uma razão ou outra, para fazer o filme.

Ninguém, a não ser o próprio e os amigos, achava que Coppola fosse um génio e o próprio sabia que não era por essa razão que queriam que ocupasse a cadeira de realizador. Acontece que, descartadas as primeiras escolhas, era ele quem tinha as qualidades necessárias, do ponto de vista do estúdio, para estar à frente, por assim dizer, do filme: era italo-americano (o ponto essencial para Peter Bart, um dos diretores da Paramount), era argumentista (podia assim polir o trabalho de Puzo) e era um zé-ninguém, um jovem realizador sem um único sucesso no currículo. Tudo junto era o ideal para que os estúdios aproveitassem a contribuição de Coppola, pagassem pouco e, em simultâneo, mantivessem um controlo absoluto sobre o processo e o resultado final.

Movie Director Francis Ford Coppola Posing For A Photo

O realizador Francis Ford Coppola em 1972

Getty Images

O que Evans e Bart não esperavam é que Coppola se mostrasse relutante em aceitar a proposta. Como é que era possível? Um tipo que estava nas lonas, que não tinha onde cair morto, que tinha realizado três flops comerciais e o estúdio ainda lhe tinha de implorar para fazer “O Padrinho”? Mas se Puzo queria ser Dostoievski, Coppola queria ser Fellini, Godard, Antonioni. Não tinha qualquer interesse em realizar um filme baseado num romance sub-literário com sangue, sexo e esparguete. Apesar de ser descendente de italianos e ter alguma sensibilidade para aquele mundo, não era o típico descendente de italianos. O pai, Carmine, era músico de orquestra. Ele tinha aspirações intelectuais. (Para convencer Evans, Bart tinha dito a Coppola para não ser tão “cerebral”, para falar sobre “merdas italianas”).

Só que tinha mesmo necessidade do dinheiro. E foi George Lucas, que o acompanhara na aventura da American Zoetrope, a lembrá-lo desse facto e a instá-lo a aceitar o trabalho. Ele que encontrasse no livro alguma coisa de que gostasse. Sim, se conseguisse encontrar um ângulo que lhe permitisse fazer o filme sem vender a alma ao diabo seria ótimo. Fosse como fosse, teria de conseguir porque, entretanto, aceitara a proposta da Paramount e o seu nome foi anunciado como realizador de “O Padrinho” numa conferência de imprensa a 29 de setembro de 1970.

Escolhas difíceis

Coppola ganhou ânimo quando conheceu Puzo. Por essa altura, já tinha ultrapassado o revestimento sensacionalista do livro e tinha chegado ao que lhe interessava: a história da sucessão de um grande rei, um rei com três filhos muito diferentes entre si. Era um romance popular mas podia ser o Rei Lear ou, já que Dostoievski era tão importante para Puzo, Os Irmãos Karamázov. Apesar de Coppola achar que o guião que Puzo tinha escrito era fraco, que se limitara a seguir as indicações do estúdio, escritor e realizador entenderam-se na perfeição. Uma história de amor, nas palavras de Talia Shire, irmã de Coppola e a futura Connie Corleone do filme. Eternamente grato a Puzo, Coppola insistiu para que o filme tivesse o título de “O Padrinho de Mario Puzo”.

Nem o próprio Pacino acreditava que fosse possível. As primeiras audições correram-lhe tão mal que até os seus defensores meteram as mãos à cabeça. Pacino só tinha um grande ponto a seu favor, era a escolha do realizador. Coppola seria capaz de matar para ter Pacino no papel de Michael, mas não era ele que mandava.

Mas o pior estava para vir e começou logo com a escolha dos atores, um processo que o estúdio já iniciara antes da contratação de Coppola. Os nomes que o realizador tinha na cabeça desde o início eram claros: Al Pacino, James Caan e Robert Duvall. Mas o estúdio torcia o nariz. Sim, os produtores queriam gastar pouco dinheiro e a ideia de recorrer a atores pouco conhecidos do grande público era uma bela forma de poupança, mas podiam ser desconhecidos que tivessem a aura de futuras estrelas e isso, no entender de Evans e dos outros responsáveis pela Paramount, era coisa que Al Pacino não tinha.

Os outros, como Caan, ainda passavam, mas Pacino, no papel de Michael Corleone, teria de ser o centro do filme. Como é que aquele sujeito baixinho (Evans chamava-lhe o “anãozinho” e preferia os bonitões Ryan O’Neal ou Alain Delon para o papel de Michael) que ninguém conhecia de lado nenhum, um ator de teatro de Nova Iorque, ia carregar um filme como “O Padrinho” às costas? Verdade seja dita, nem o próprio Pacino acreditava que fosse possível. As primeiras audições correram-lhe tão mal que até os seus defensores meteram as mãos à cabeça. Pacino só tinha um grande ponto a seu favor, era a escolha do realizador. Coppola seria capaz de matar para ter Pacino no papel de Michael, mas não era ele que mandava.

[imagens da audição de Al Pacino para o papel de Michael Corleone:]

Coppola era uma personalidade magnética que, de uma forma que aos outros parecia mágica, conseguia arranjar financiamento para os seus projetos convencendo toda a gente da sua genialidade, mas agora encontrava-se numa posição subalterna: era um magnata obrigado a vestir a farda do paquete. Mais: queria ser magnata e artista. Artista porque era assim que se sentia e magnata porque, embora não fosse essa a vocação, era a única maneira para financiar a sua visão artística. Como realizador de “O Padrinho”, não era nem uma coisa nem outra. Tinha o pior dos dois mundos: não mandava, nem era artista. Visto de outra maneira, podia ser uma oportunidade de ouro para infiltrar as suas ideias artísticas num projeto financiado por um grande estúdio. Mas a luta ia ser terrível.

No fim do processo de casting, a Paramount tinha gastado quase meio milhão de euros só para não seguir as sugestões de Coppola e a escolha acabou por recair nos nomes que o realizador tinha apresentado de início: Pacino (o único filme em que tinha participado, Pânico em Needle Park, pode ter ajudado a convencer os executivos), Caan, Duvall e Diane Keaton. E noutro que tinha estado desde sempre na cabeça de Puzo: o Padrinho, Don Vito Corleone, tinha de ser Marlon Brando, que também era a escolha de Coppola. Puzo escreveu mesmo uma carta a Brando para o convencer a aceitar o papel: “Caro sr. Brando, escrevi um livro chamado O Padrinho que teve algum sucesso e acho que é o único ator que pode fazer de Padrinho com a força silenciosa e a ironia (o livro é um comentário irónico sobre a sociedade americana) que o papel exige.” O estúdio é que não concordava. Para o papel de Don Vito, os diretores tinham pensado em Laurence Olivier (se não conseguisse Brando, Coppola ficaria com Olivier), Anthony Quinn, Ernest Borgnine e, por sugestão de Evans, em Carlo Ponti, o célebre produtor italiano casado com Sophia Loren. Até tinham pensado em Charles Bronson (uma ideia de Bluhdorn).

Brando & Duvall In 'The Godfather'

Todas as dúvidas ficaram dissipadas quando Coppola enviou para a Paramount as primeiras gravações de Brando na pele de Vito Corleone. O momento, testemunhado por uns quantos sortudos, foi mágico

Getty Images

Mesmo na mó de baixo, Brando ainda era o maior ator do mundo. O último filme tinha sido um fracasso (“Queimada”, de Gillo Pontecorvo, o realizador de “A Batalha de Argel”) mas a sua simples presença trazia a autoridade e o carisma do homem que tinha sido Stan Kowalski e Terry Malloy no grande ecrã. Para a Paramount, bem vistas as coisas, não era uma má escolha mesmo com os fracos resultados de bilheteira nos últimos anos porque isso significava que poderiam contratar o melhor ator do mundo a preço de saldos. Mas também havia dúvidas: Marlon Brando não era italo-americano, tinha 47 anos, tinha recuperado a forma física – como é que iria desempenhar o papel de um patriarca italiano envelhecido? Além disso, tinha fama de ser difícil no set, de não respeitar horários e de atrasar as produções devido aos seus caprichos. (A este respeito, o estúdio tomou precauções: se houvesse atrasos da responsabilidade pessoal de Brando, seria ele a pagá-los do próprio bolso.)

Todas as dúvidas ficaram dissipadas quando Coppola enviou para a Paramount as primeiras gravações de Brando na pele de Vito Corleone. O momento, testemunhado por uns quantos sortudos, foi mágico. Em poucos minutos, a celebridade desaparecia para dar lugar ao chefe de uma poderosa família do submundo. Vito Corleone estava vivo! Quando Bluhdorn, que não queria contratar o “maluco”, viu as gravações de Brando, ficou rendido. Coppola conseguia outra vitória.

Guerra nos Bastidores

Porém, foi uma vitória de Pirro. Ao fim daquela primeira etapa, a relação entre Coppola e a Paramount estava tão degradada que o realizador achava que seria despedido a qualquer momento e pensou mesmo em desistir. Os advogados aconselharam-no a não cometer esse erro. Eles que o despedissem. Mas não despediram. E Coppola tentou passar à prática a ideia que tinha na cabeça: “O Padrinho” seria um filme operático.

Foi isso que disse numa primeira reunião com Dean Tavoularis, o diretor artístico, Gordon Willis, o diretor de fotografia, e Anna Hill Johnstone, a responsável do guarda-roupa, em que discutiram qual seria o estilo visual do filme. Os problemas começaram depois. Se a relação com Puzo tinha sido um bálsamo, com outros colaboradores Coppola encontrou muito mais dificuldades. Isto além da pressão do estúdio, que nunca afrouxou. A Paramount destacou um homem, Jack Ballard, para acompanhar as filmagens e não demorou muito tempo até Coppola perceber que tinha a cabeça a prémio, que o estúdio continuava à espera de um pretexto para o substituir. Mas os inimigos estavam ainda mais perto.

O próprio Coppola convenceu-se de que “O Padrinho” seria o derradeiro prego na sua breve carreira de realizador. Isto se o chegasse a terminar. Mais tarde, diria mesmo que nem a acidentada produção de “Apocalypse Now” tinha sido pior porque nessa altura, pelo menos, já tinha poder, já era um realizador consagrado.

Coppola tinha contratado como montador Aram Avakian, com quem já trabalhara em “A Noite é Perversa”. Foi através de Avakian que Coppola chegou a Gordon Willis, “o príncipe das trevas”, diretor de fotografia conhecido pelas tonalidades escuras e sombrias dos filmes, e a outros nomes que escolheu. A relação com Willis deteriorou-se rapidamente e ficou célebre uma história que Coppola conta no comentário no DVD. Willis era, nas palavras do realizador, um “purista”, não gostava de planos rebuscados, a posição da câmara era o mais simples possível e corresponderia sempre ao ponto de vista de uma das personagens. Para a cena em que Vito Corleone é vítima de um atentado, Coppola queria um enquadramento de cima para que se vissem as laranjas a rolar pelo chão. Willis não aceitava. De quem era aquele ponto de vista, perguntou ao realizador. Irritado, Coppola respondeu-lhe: “é o meu, sei lá, é o de Orson Welles.” Apesar de tudo, Willis ficou até ao fim e Coppola sempre reconheceu o muito que aprendeu com ele.

[a cena do atentado a Don Corleone:]

https://youtu.be/QNuzgDrUXP0

Ao fim de algum tempo, Coppola apercebeu-se de que alguns elementos da equipa queriam afastá-lo para que Avakian ficasse com o seu lugar. Não encontrava maneira de passar as ideias claras que tinha no início e no set mostrava-se hesitante e confuso, para desespero de elementos mais experientes como Willis. Os técnicos falavam mal dele nas costas, diziam que não tinha estaleca para aquilo, que estava a perder o controlo. Ballard, o enviado do estúdio, queria Avakian no lugar de Coppola e disse-o aos chefes.

E isto ainda numa fase inicial. Nem o Óscar para melhor argumento, que ganhou por “Patton”, o animou. Ocupadíssimo e à beira de um colapso, Coppola nem sequer o foi receber. Mas havia um efeito positivo. Seria mais difícil ao estúdio justificar o seu despedimento. Vontade não lhes faltava, sobretudo quando começaram a ver as primeiras filmagens: tudo escuro, os atores mal se distinguiam, não se percebia o que Marlon Brando dizia, a secretária de Don Vito, que custara dez mil dólares ao estúdio, mal se via. Que sentido fazia gastar tanto dinheiro se esse dinheiro não se via no ecrã? Pouco lhes interessava que fosse intencional, artístico (Gordon Willis dizia que a gente dos estúdios só estava habituada à luminosidade dos filmes de Doris Day). Apesar do investimento moderado, o estúdio começava a achar que tinha um desastre nas mãos.

Com a Máfia verdadeira, na pessoa de Joe Colombo, presidente da Liga Italo-Americana dos Direitos Civis, a dificultar a produção do filme até que o estúdio aceitou retirar qualquer referência à palavra “máfia”, as reações desmoralizadoras da Paramount às cenas que iam recebendo, a desconfiança dos elementos da equipa técnica, o atraso nas filmagens e os boatos da sua iminente substituição, o próprio Coppola convenceu-se de que “O Padrinho” seria o derradeiro prego na sua breve carreira de realizador. Isto se o chegasse a terminar. Mais tarde, diria mesmo que nem a acidentada produção de “Apocalypse Now” tinha sido pior porque nessa altura, pelo menos, já tinha poder, já era um realizador consagrado.

Godfather Gang

James Caan, Marlon Brando, Al Pacino e John Cazale na rodagem de "O Padrinho"

Getty Images

Porém, acossado por todos os lados, Coppola reagiu. E antes que lhe fizessem a folha, despediu os alegados conspiradores, com Aram Avakian e Steve Kesten, assistente de realização, à cabeça. Depois, a cena em que Pacino mata Solozzo e o polícia corrupto McCluskey convenceu Robert Evans: era a prova da transformação de Michael Corleone, a coluna vertebral do filme, e a prova da capacidade de Pacino. Já não haveria recuos: Coppola e Pacino eram para ficar. Coppola chamou então o seu amigo, o argumentista Robert Towne, para escrever uma cena que não constava do romance mas que seria essencial para o filme: a cena da sucessão propriamente dita, em que Don Vito passa o testemunho a Michael. A cena ficou tão perfeita que Coppola perguntou a Towne, a quem pagou três mil dólares, se ele queria ser creditado. O amigo disse-lhe que não, bastava que ele lhe agradecesse quando recebesse o Óscar. Quando, no ano seguinte, Coppola recebeu o seu segundo Óscar, não se esqueceu de agradecer a Towne.

A obra-prima inesperada

Com as filmagens nos Estados Unidos quase a terminar após setenta longos e penosos dias (ainda haveria filmagens na Sicília), Coppola duvidava que isso pudesse acontecer. Desanimado, deu três conselhos a um assistente de realização: ter um guião definitivo antes de começar as filmagens, trabalhar com pessoas em que se confia e dar segurança aos atores, reconhecendo que não tinha feito nenhuma das três coisas com “O Padrinho”.

Ainda pior foi quando Coppola apresentou a primeira versão do filme, com quase três horas. Existem múltiplas versões do que se terá passado depois desse visionamento, mas terá sido mais ou menos isto: Evans detestou e disse ao realizador que era preciso cortar até ficar com duas horas e quinze, no máximo, e que já não havia maneira de estrear o filme no Natal de 1971. Coppola, que não tinha direito à versão final, fez o que lhe mandaram e, semanas depois, apresentou a versão mais curta a Evans. “O filme é uma merda”, foi o que ouviu. “Filmaste um grande filme e onde é que ele está? Na cozinha com o esparguete?” Quando falou com o patrão, Bluhdorn, Evans foi ainda mais duro: “O gordo de merda fez um grande filme mas isso não se vê no ecrã.” Coppola voltou a pôr a meia-hora que Evans lhe tinha mandado tirar e, desta vez, Evans achou que era mesmo aquilo.

Ainda hoje, cinquenta anos depois, Coppola sente que o sucesso de “O Padrinho” foi um presente envenenado: “O filme arruinou-me no sentido em que foi um sucesso tão grande que tudo o que fiz depois passou a ser comparado com ele”, disse recentemente numa entrevista recente à GQ.

Esse período de pós-produção tornou-se lendário. Evans, que se dedicou exclusivamente ao filme enquanto a mulher, a atriz Ali McGraw, se entregava aos braços de Steve McQueen, acabou por reclamar para si uma parte significativa dos louros, dizendo que tinha dado o máximo de si para salvar o filme e que, no final, tudo o que ganhara fora um divórcio enquanto os outros, Coppola incluído, tinham enriquecido (Brando foi um dos que não enriqueceu; ainda antes de começar as filmagens, cedeu a percentagem dos lucros futuros que tinha no contrato para receber 100 mil dólares à cabeça. Dessa forma, perdeu mais de 11 milhões de dólares).

Coppola sempre desmentiu esta versão dos acontecimentos, dizendo que a contribuição de Evans para “O Padrinho” tinha sido a de o obrigar a repor a tal meia-hora que o tinha obrigado a tirar. Num telegrama de 1983, farto da conversa de Evans, Coppola reagiu assim: “Tudo o que fizeste no Padrinho para além de me chateares foi atrasar o filme e por isso é que o Charlie [Bluhdorn] pôs no contrato do Padrinho II que não terias nada que ver com o filme.” Coppola acrescentava a batalha de Evans contra as escolhas de Brando e Pacino e até contra a banda sonora de Nino Rota (Evans queria música americana jovial que contrastasse com a tonalidade sombria do filme). Frank Yablans, um dos diretores da Paramount, corroborou a versão de Coppola: “O Evans portou-se muito mal. Convenceu toda a gente que o Coppola não tinha nada que ver com o filme. Criou o mito de que tinha sido ele a produzir “O Padrinho”. Ele nem sequer salvou “O Padrinho”, Evans não fez “O Padrinho”. É uma invenção da cabeça dele.”

[o trailer de “O Padrinho”:]

A maior prova da contribuição de Evans talvez tenha sido o estado de espírito de Coppola antes da estreia. Depois de ver o frenético “Os Incorruptíveis contra a Droga”, do seu amigo William Friedkin, Coppola ainda ficou mais desesperado e disse a um dos assistentes: “Acho que falhei. Peguei num romance popular, suculento e obsceno e transformei-o numa data de gajos à conversa em salas escuras.” Anos mais tarde, confirmou os seus sentimentos naquela altura: “Tinha a certeza de que as pessoas iam achar que eu tinha pegado num romance empolgante e de grande sucesso e que o tinha transformado num filme sombrio, pesado e aborrecido.” Sentia que tinha mesmo vendido à alma do Diabo e que, ainda por cima, iria receber em troca uma mão cheia de nada, um fracasso do tamanho da sua cedência.

Ainda hoje, cinquenta anos depois, Coppola sente que o sucesso de “O Padrinho” foi um presente envenenado: “O filme arruinou-me no sentido em que foi um sucesso tão grande que tudo o que fiz depois passou a ser comparado com ele”, disse recentemente numa entrevista recente à GQ. Já o tinha dito a Peter Biskind, autor de “Easy Riders, Raging Bulls”: “De certa forma, arruinou-me. Fez com que a minha carreira fosse numa direção que não era a que eu queria, que era a de fazer uma obra original enquanto argumentista e realizador. Basicamente, “O Padrinho” fez-me corromper muitas das ilusões que eu alimentava para mim mesmo naquela altura.” A ruína era apenas no sentido figurado. O filme que lhe deu uma fama e uma fortuna inimagináveis afastou-o ao mesmo tempo do caminho que planeara para si: o caminho de um artista, a fazer filmes pessoais.

Mas não só o resto do mundo não estava interessado na opinião de Francis Ford Coppola sobre o filme que fizera como, independentemente do romance que lhe deu origem, “O Padrinho” continua a ser o filme mais pessoal do realizador, o auge da sua arte. Quando o filme teve a antestreia em Nova Iorque a 14 de março de 1972, todas as histórias de bastidores desapareceram, o que ficara para trás não interessava perante aquilo que todo o mundo podia ver. Ninguém queria saber de Evans, dos conflitos internos, da luta pelo poder, do confronto de egos. No escuro do cinema, uma nova era anunciava-se na voz de Amerigo Bonasera: “Eu acredito na América.”

Para ler mais: “Easy Riders, Raging Bulls”, de Peter Biskind; “Leave the Gun, Take the Cannoli: The Epic Story of the Making of The Godfather”, de Mark Seal

 
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