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Após 15 artigos sobre a história da indústria automóvel e da sua nomenclatura e na sequência do último artigo, centrado exclusivamente nas novas marcas americanas que se perfilam como vanguarda da mobilidade eléctrica (ver Tesla, Rivian, Lucid: Serão estas marcas o futuro da mobilidade eléctrica?), impõe-se um artigo que pretende reflectir sobre o ponto em que a indústria automóvel se encontra hoje. O motor de combustão interna teve uma longa história de domínio ininterrupto e incontestado, mas hoje há electricidade no ar e multiplicam-se as profecias e especulações sobre como se encaixará o automóvel numa sociedade que se diz empenhada na “descarbonização” e na “sustentabilidade”.

As 15 partes da série sobre a história da indústria automóvel podem ser lidas aqui:

Breve panorâmica do mercado

Quem esteja a par do entusiasmo em torno dos carros eléctricos que fervilha nos media do mundo Ocidental talvez não se aperceba de que, por enquanto, estes veículos representam menos de 1% do parque mundial de automóveis ligeiros de passageiros (dados de 2021, tal como no resto deste capítulo). As vendas globais de carros eléctricos (neste artigo esta designação refere apenas veículos 100% eléctricos, deixando de fora híbridos plug-in) têm registado taxas de crescimento extraordinárias nos últimos cinco anos e as vendas de 2021 duplicaram as de 2020 (que tinham sido, como as dos automóveis em geral, prejudicadas pela pandemia de covid-19), mas como o ponto de partida era muito modesto, é natural que os automóveis convencionais continuem a representar a maior parte das vendas durante mais alguns anos. Porém, esse domínio acabará, o mais tardar, em 2035, o ano que a  União Europeia definiu como termo da comercialização de automóveis com motor de combustão interna – o que, todavia, enfrenta a resistência de alguns construtores e de alguns países, como se verá abaixo.

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De qualquer modo, a presente média global resulta de situações muito diversas de país para país. A China leva um considerável avanço na mobilidade eléctrica: é campeã de vendas (e de fabrico) desde o advento do carro eléctrico e em 2021 registou a venda de 3.33 milhões de unidades (15% do total de automóveis vendidos no país) e o seu parque eléctrico perfazia 7.84 milhões de unidades (2.6% do parque automóvel do país).

BYD Qin EV (versão de 2019): O 2.º modelo de carro eléctrico mais vendido na China em 2021 tem uma potência de 218 HP e uma autonomia de 300 Km

A excitação mediática nos EUA em torno do carro eléctrico não teve, até agora, a correspondência no mundo real que seria de esperar: em 2021 venderam-se 607.000 unidades (4% das vendas) e o parque automóvel eléctrico é de 2.32 milhões de unidades (0.7% do parque automóvel do país).

A Europa (que nesta contabilização estatística compreende União Europeia + Reino Unido + Islândia + Noruega + Suíça) registou 2.33 milhões de unidades vendidas em 2021 (19% do total de vendas, superando a China em termos de quota de mercado) e um parque eléctrico com 5.67 milhões de unidades (apenas 1.1% do parque automóvel europeu). Dentro da Europa, o campeão, em termos de quota eléctrica, é a Noruega, onde, em 2021, se venderam 168.000 unidades (86% das vendas) e o parque automóvel eléctrico ascende a 647.000 unidades (22.1% do parque automóvel do país). Outros países europeus com elevadas quotas de vendas de carros eléctricos em 2021 foram a Suécia (45%), a Holanda (30%), a Alemanha (26%), o Reino Unido (19%) e a França (18%). Em Portugal, as vendas de carros eléctricos foram de 13.400 unidades (10% das vendas).

Inesperadamente, o Japão, um país que se associa automaticamente a inovações tecnológicas e que costuma ser rápido a adoptá-las, teve vendas em 2021 de apenas 44.000 unidades (1% das vendas totais e apenas ¼ das vendas da Noruega, embora o Japão tenha 24 vezes a população da Noruega ) e o seu parque eléctrico é de 341.000 veículos (0.5% do parque automóvel do país). Deve ressalvar-se que esta estatística não inclui kei cars (designação japonesa dos micro-carros), mas, no Japão, a presença de modelos eléctricos neste segmento é residual (ver abaixo).

A (até agora) pequena penetração dos carros eléctricos no mercado dos EUA pode ter várias explicações. Por um lado temos a “ansiedade da autonomia” (“range anxiety”: o receio de ficar a meio do caminho por esgotamento das baterias), um temor que terá maior intensidade nos EUA, onde o número médio de quilómetros percorridos diariamente por automobilista é maior do que na Europa ou na China e onde a densidade de postos de carregamento é baixa. Por outro lado, algumas deslocações nos EUA fazem-se através de grandes espaços inóspitos, onde a eventualidade de ficar sem carga pode ter consequências desagradáveis ou até fatais. Por outro lado, desde (pelo menos) o pós-II Guerra Mundial que o consumidor americano revela muito maior apetência que o consumidor europeu ou asiático por carros volumosos, pesados e potentes – nas últimas quatro décadas sob a forma de SUVs e pickups –, cuja glutonice energética só recentemente começou a poder ser satisfeita pelos progressos na tecnologia de baterias.

Pickup Ford F-150, na versão de 1977: A primeira versão de um popularíssimo modelo cuja vida se prolongou até aos nossos dias

Os reis do asfalto (e, de quando em vez, da terra batida)

A preferência dos compradores de automóveis pelo formato SUV, uma voga que teve (como tantas outras) origem nos EUA e alastrou a todo o mundo, é uma inclinação que merece estudo, pois diz-nos muito sobre a psicologia dos consumidores (ver A caminho do Inferno, ao volante de um SUV).

Os SUVs representaram em 2021 45% das vendas globais de automóveis de passageiros, quando eram apenas 18% em 2010. E nenhum país está mais apaixonado pelos SUVs do que nos EUA, onde, em 2021, o segmento lá designado como “utility vehicles” (não confundir com os “utilitários” no sentido europeu do termo) e que é constituído por SUVs, crossovers (cuja distinção para os SUVs é pouco clara), pickups e vans, representou em 2021 77.6% das vendas de veículos de passageiros. Apesar de os modelos de SUVs e pickups que dominam o mercado americano terem elevados consumos de combustível e o preço dos combustíveis ter estado em lenta ascensão ao longo de 2021 e ter sofrido uma brusca aceleração em 2022, em resultado da invasão da Ucrânia, as vendas deste tipo de veículos nos EUA nos primeiros quatro meses de 2022 mantiveram a tendência de subida: os SUVs representaram 54% das vendas, as pickups 19%. A marcha ascendente da quota da dupla SUVs + pickups tem sido imparável: 63% em 2019, 68% em 2020, 70% em 2021 e 73% nos primeiros quatro meses de 2022.

É revelador averiguar quais os modelos de automóveis mais vendidos em cada estado dos EUA: segundo os dados de 2021, em todos os estados o lugar n.º 1 do top de vendas foi ocupado por uma pickup ou um SUV, com excepção da Califórnia, onde triunfou o Honda Civic, e da Florida, onde prevaleceu o Toyota Corolla.

Modelos de automóveis mais vendidos em 2021 em cada estado dos EUA; vendas a particulares, excluindo portanto frotas de empresas e veículos do Estado; a azul-claro, Ford F-150, a verde-claro, Chevrolet Silverado; a violeta, Dodge Ram; a amarelo-torrado, Toyota RAV4; a laranja, Honda CR-V; a vermelho, Toyota Tacoma; a verde-escuro, Honda Civic; a bordeaux, Toyota Corolla

A paixão americana por SUVs e pickups tem, em parte, uma origem calculista e comezinha: em 1978, na ressaca do “choque petrolífero” de 1973, o Governo dos EUA aprovou a Energy Tax Act, que dava incentivos fiscais para a produção particular de energias renováveis (décadas antes de tal chegar a Portugal) e, através, da Gas-Guzzler Act, penalizava os modelos de veículos com elevados consumos de combustível. Porém, como tantas vezes acontece com legislação aparentemente bem-intencionada, o Gas-Guzzler Act deixava um “buraco” imenso, para o qual se precipitaram construtores automóveis e consumidores: isentava os “utility vehicles”. Os grande automóveis familiares e “muscle cars” típicos do mercado americano das décadas de 1960 e 1970 foram perdendo relevância, sob o duplo assalto da taxação da ineficiência energética e da concorrência de carros asiáticos pequenos, baratos e pouco gulosos. Todavia, uma parte substancial dos condutores não conseguia (nem consegue) ver os citadinos da Toyota, da Honda ou da Suzuki como condizentes com o “American lifestyle” e os construtores americanos corresponderam aos seus apetites com alternativas que tiravam partido da lacuna no Gas-Guzzler Act: SUVs e pickups foram, a partir de meados da década de 1980, tomando o lugar dos antigos “gas-guzzlers”.

Este enviesamento ajuda a explicar o domínio de 44 anos da pickup Ford F-150, lançada em 1975, que, entre 1977 e 2021 (e em sucessivas actualizações) foi não só a pickup mais vendida nos EUA, como foi (por larga margem) o modelo automóvel mais vendido dos EUA, considerando todos os segmentos, só sendo destronada em 2021, por… uma pickup de características similares, a Chevrolet Silverado.

Ao mesmo tempo, os SUVs e pickups foram também tornando-se cada vez mais pesados, potentes e ávidos de combustível. Enquanto a pickup Ford F-150 de 1975 tinha 145 HP, a versão mais recente, surgida em 2021, tem 250-430 HP. O Jeep Cherokee, lançado em 1984 e que é usualmente visto como sendo “o primeiro SUV”, pesava tonelada e meia e tinha motor de 105 HP; em 2021, 37 anos depois do lançamento do Cherokee, o entendimento da Jeep sobre o que é um SUV evoluíra para o Wagoneer Series III, com um peso de cerca de três toneladas e motor a combustão interna de 392 HP e um motor eléctrico de 16 HP (o dobro do peso e o quádruplo da potência do seu avoengo).

Jeep Cherokee de 1984

Não é de descurar também uma motivação psicológica para o apetite americano por SUVs e pickups imponentes: a sociedade americana não só é, por larga margem, a mais violenta dos países desenvolvidos (a taxa de homicídios é de 6.3 por 100.000 habitantes, enquanto, por exemplo, Portugal, Espanha, Grécia, Alemanha e Irlanda se ficam por 0.71), como essa violência é empolada e espectacularizada pelos media, quer sob a forma de notícias quer sob a forma de filmes e séries televisivas, o que fomenta um clima de insegurança que predispõe os cidadãos a adquirir veículos com o aspecto de carros de combate.

Estando o consumidor americano “viciado”, há mais de três décadas, em SUVs e pickups, na Era da Transição Energética, quando a indústria automóvel está a reorientar o seu paradigma do motor de combustão interna para o motor eléctrico, é para aqueles dois formatos que marcas tradicionais e novas marcas “100% eléctricas” têm dirigido os seus esforços, a que se soma uma forte aposta nos desportivos de luxo, seguindo o trilho de sucesso aberto pela Tesla. E se, na era dos motores de combustão interna, SUVs e pickups poderiam causar problemas de consciência ambiental a alguns condutores, na era eléctrica tal problema foi eliminado – ou, pelo menos, é isso que os fabricantes de automóveis querem que pensemos.

Jeep Wagoneer Series III de 2021: Num carro em que tudo é excessivo e abrutalhado, não se estranha que o sistema de som tenha 23 altifalantes e 1375 watts de potência

“Um futuro em que os céus são azuis”

Antes do advento da Era da Pós-Verdade, dizia-se que “mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo”, mas hoje o ludíbrio move-se com rapidez fulgurante – no caso do hype em torno da “mobilidade sustentável”, pode dizer-se que conduz um bólide capaz de acelerar de 0 a 100 Km/h em 3 segundos.

Quando se lê algo como “Hoje, estamos a viver à custa de centenas de milhões de anos de carbono acumulado por plantas e animais. A prosseguir por este caminho, esgotaremos completamente esta energia armazenada e, ao mesmo tempo, carbonizaremos [sic] a nossa atmosfera a tal ponto que a vida como a conhecemos se tornará impossível. Se queremos que o planeta continue a sustentar vida e a encantar as gerações futuras, temos de mudar”, é legítimo que se creia estar perante um lancinante apelo público à salvação do planeta saído da boca de António Guterres ou Greta Thunberg. Mas não, este é o “manifesto” que abre o website da Rivian Automotive.

[Rivian Motors: não fabricamos automóveis, “damos às pessoas a capacidade de fazer aquilo de que gostam”:]

No website da Fisker Inc. o tom é menos sombrio e mais optimista, mas o sentido geral é similar: “é tempo de colocar as pessoas e o planeta em primeiro lugar […] Vemos um futuro em que os céus são azuis, o ar é puro e a sua consciência fica limpa de cada vez que dá uma volta no seu Fisker. A nossa missão é criar os veículos mais sustentáveis da Terra”. E para que não a acusem de fazer promessas vagas, a Fisker compromete-se a criar um veículo “neutro em carbono” até 2027.

[Fisker: “Não estava nada à espera disto, pois não? Muito bem, não o censuramos por só nos ter descoberto agora. Sabe, nós não somos como os outros”:]

Já a Faraday Future coloca mais ênfase nas “pessoas”: pretende “criar um ecossistema de mobilidade inteligente partilhada que empodere todos para mover-se, conectar-se, respirar e viver em liberdade”, o que também não ficaria mal num prospecto de uma academia de yoga e mindfulness. A referência à defesa dos valores ambientais é menos explícita e passa pelo emprego (deslocado) do termo “ecossistema” e pela menção à liberdade para respirar, que pressupõe uma atmosfera sem gases de escape. A missão de “empoderamento” universal que a marca proclama como sua suscita uma dúvida: como o único modelo da marca, o FF 91, terá um preço de 200.000 a 300.000 dólares, deveremos interpretar o significado de “todos” na frase acima como “todos os multimilionários”?

[Faraday Future: Os nossos automóveis são “criados para elevar a experiência humana e tornar a nossa visão colectiva do futuro uma realidade”:]

O website da Lucid Motors garante que “o nosso incansável foco em inovação, luxo e sustentabilidade impele-nos para um futuro em que já não é preciso escolher entre fazer grandes coisas e fazer as coisas certas”, o que anula a tensão dilacerante que atormenta o cidadão ambientalmente consciente: como posso eu continuar a desfrutar de cada vez mais luxos e mordomias (fazer grandes coisas) e, ao mesmo tempo, preservar o planeta para as gerações futuras (fazer as coisas certas)?

[Lucid Motors: Afirmamos o nosso “compromisso com um mundo limpo e sustentável e consagramo-nos à nossa paixão ao mesmo tempo que proporcionamos um benefício substancial para a Humanidade”]

O que está implícito no marketing destas empresas (para além de uma presunção tão insuflada que chega a ser hilariante) e já foi assimilado pela maioria dos cidadãos que se imaginam ambientalmente conscientes é 1) O carro particular é a mais nobre e elevada expressão da personalidade e aspirações de um indivíduo; 2) Desde que o carro seja movido a energia eléctrica, todos os luxos e extravagâncias são permitidos, pois o seu impacto no ambiente é nulo. O raciocínio do ponto 1) é grotesco, o do ponto 2) enferma de múltiplas falácias, que examinaremos a seguir.

O mito da electricidade “limpa”

Comecemos pela fonte da electricidade: actualmente e, previsivelmente, ainda durante as próximas décadas, apenas uma fracção da electricidade provirá de fontes renováveis. Ou seja, o automóvel eléctrico não emite CO2 e outros poluentes pelo tubo de escape (que não possui), mas emite-os indirectamente através de centrais térmicas movidas a combustíveis fósseis que alimentam a rede eléctrica.

A quota renovável da electricidade no mundo é de cerca de 1/3, mas varia muito consoante os países. Por exemplo, segundo dados de 2021, a Noruega tem um desempenho exemplar, com 98.4% da electricidade a provir de fontes renováveis (90% desta quota corresponde a hidro-electricidade), Portugal até se porta razoavelmente bem, com 60% de quota renovável, mas a República Checa fica-se por 14%. Nos países grandes podem registar-se grandes diferenças entre regiões: nos EUA, o 2.º maior consumidor mundial de energia, a percentagem de fontes renováveis é de 20%, mas esta média inclui cenários que vão da West Virginia, onde 88% da electricidade provém de carvão e 5% de petróleo (93% de combustíveis fósseis), ao Vermont, onde 58% provém de barragens, 16% do vento, 18% de biomassa (0.1% de combustíveis fósseis). Há ainda que considerar que estas proporções dependem das circunstâncias, nomeadamente da meteorologia: um ano de chuva escassa fará cair a quota renovável de um país/região cuja electricidade provenha sobretudo de barragens.

Mount Storm Generation Station, uma das 10 centrais eléctricas alimentadas a carvão que fornecem a rede da West Virginia. Tem uma potência de 1600 MW e consome diariamente 15.000 toneladas de carvão

Tome-se agora o caso de dois americanos que vivem num estado “médio” e percorrem anualmente a mesma quilometragem no seu carro: um conduz um Volkswagen Up! com motor de combustão interna de 75 HP – o seu uso tem uma “pegada ambiental” directa correspondente aos poluentes resultantes da queima de combustível fóssil necessários para gerar esses 75 HP. Outro conduz o mais “económico” dos Tesla, o Model 3, com motor eléctrico de 340 HP; como nos EUA apenas 20% da energia eléctrica provém de energia renovável, podemos concluir, através de uma aproximação grosseira e simplista, que apenas 68 dos 340 HP do Model 3 são “limpos” e os restantes 262 HP são “sujos”, resultando daqui que o uso do pretensamente “ecológico” Tesla Model 3 gera 3.6 vezes mais poluição do que o Volkswagen Up! (sublinhe-se: a aproximação é grosseira e simplista, até porque, para começar, potência não equivale a consumo).

Model 3, o mais acessível dos Tesla e o automóvel eléctrico mais vendido do mundo

Haverá quem argumente que a tendência é para que a quota de energias renováveis na produção de electricidade aumente, mas tal não é garantido (ver capítulo “O cavaleiro verde (murcho) da descarbonização”, em As alterações climáticas e a conferência das Nações Unidas: O Grande Circo Carbónico). A manter-se a presente tendência de diminuição de precipitação na Europa meridional e de ocorrência generalizada de secas (ver capítulo “Em busca da nascente do Tamisa” em Temperaturas recorde, fenómenos extremos, seca global: Seremos capazes de mudar o nosso comportamento?) é previsível que a produção de energia hidroeléctrica diminua ou se torne menos regular. Assinale-se que a seca de 2022 não poupou sequer a Noruega, país onde a precipitação costuma ser copiosa e homogeneamente distribuída ao longo do ano e a topografia é favorável à construção de aproveitamentos hidro-eléctricos – o que faz com que existam hoje no país cerca de 940, que asseguram a parte de leão do consumo de electricidade. Na Noruega, as albufeiras costumam estar, no final do Verão, a 3/4 de capacidade máxima mas este ano quedam-se pelos 50%, o que levou o Governo norueguês a anunciar que poderá restringir a exportação de energia eléctrica para os países vizinhos e a alertar para a possibilidade de cortes no fornecimento de energia eléctrica a consumidores industriais na próxima Primavera.

Albufeira de Blåsjø, no complexo hidro-eléctrico de Ulla-Førre, na Noruega, que tem uma capacidade instalada de 2100 MW

Se do lado da produção o panorama é inquietante, do lado do consumo não faltam motivos para apreensão. A fracção do consumo de energia eléctrica na União Europeia correspondente ao recarregamento de veículos, que era de apenas 0.03% em 2014, irá subir, segundo estimativas da Agência Europeia de Ambiente, para 4-5% em 2030 (assumindo uma electrificação do parque automóvel europeu de 30%, nessa data), e de 9.5% em 2050 (assumindo uma electrificação do parque automóvel europeu de 80%). A este incremento na procura de electricidade deverão somar-se outros, nomeadamente os que resultam da necessidade acrescida de climatização e do facto de estar previsto que o aquecimento deixará, progressivamente, de recorrer a combustíveis fósseis (ver capítulo “A solução: A dessalinização” em Temperaturas recorde, fenómenos extremos, seca global: Seremos capazes de mudar o nosso comportamento?).

É improvável que as energias renováveis sejam capazes de suprir, simultaneamente, o previsível acréscimo de consumo de electricidade e a programada desactivação das centrais eléctricas alimentadas com combustíveis fósseis, de que resultará que, ou o preço da electricidade sobe, ou será preciso construir novas centrais nucleares.

O lado cinzento da “electricidade verde”

Mesmo que toda a energia consumida por um veículo eléctrico tivesse origem renovável, tal não significaria que a pegada ecológica dessa energia seria zero. As energias renováveis têm, face às energias fóssil e nuclear, as grandes vantagens de a) serem, como indica a sua designação, renováveis e de b) serem menos lesivas para o ambiente, em particular no que respeita a emissões de CO2.

Porém, não há “almoços grátis”: as turbinas eólicas são construídas em alumínio ou fibra de vidro ou outros materiais compósitos, cujo fabrico consome recursos e energia, muitas aves morrem ao chocar contra elas e o seu impacto paisagístico é elevado. As centrais fotovoltaicas são ainda mais desagradáveis à vista e mais lesivas para os ecossistemas onde são implantadas. O facto de a energia solar ser extremamente diluída requer a cobertura de grandes áreas, muitas vezes destruindo habitats naturais e ocupando terrenos agrícolas e o fabrico de painéis fotovoltaicos consome grande quantidade de energia e recursos: as células fotovoltaicas são construídas à base de silício, que é abundante, mas, consoante o tipo de células, podem também empregar elementos raros como índio, gálio, selénio ou telúrio; a parte estrutural do painel é feita de alumínio e vidro – e ainda ninguém conseguiu pensou a sério no destino a dar aos painéis quando o seu tempo útil de vida chegar ao fim. Sem dúvida que a geração de electricidade por via eólica e solar emite muito menos gramas de CO2 por KWh, mesmo quando se considera todo o ciclo de vida, do que a geração de electricidade por queima de combustíveis fósseis, mas também têm impactos ambientais.

Imagem de satélite da central fotovoltaica de Bahdla, na Índia. Ocupa 5700 hectares e tem uma potência de 2245 MW, o que faz dela – por enquanto – a maior central fotovoltaica do mundo

As barragens bloqueiam a circulação de espécies aquáticas, perturbam o fluxo de água para os ecossistemas ribeirinhos a jusante, submergem ecossistemas ribeirinhos e terrenos agrícolas férteis a montante, retêm sedimentos necessários à realimentação das zonas costeiras e a sua construção requer grandes quantidades de cimento, cuja produção é muito dispendiosa do ponto de vista energético. Se a área da albufeira não for limpa de vegetação antes do enchimento, a decomposição da matéria orgânica submersa vai libertar metano (CH4), gás cujo efeito de estufa é 25 vezes mais poderoso do que o do CO2.

A electricidade gerada pela queima de biomassa tem impactos ambientais que variam muito consoante a natureza da biomassa (resíduos urbanos, resíduos de limpeza florestal, pellets, madeira, etc.), o valor natural das áreas de onde a biomassa provém e a gestão, mais ou menos sustentável, dessas áreas. Embora seja classificada acriticamente como energia “verde” e subsidiada pelos Estados, nos cenários mais desfavoráveis este tipo de geração eléctrica pode não só gerar emissões de CO2 superiores às da que é produzida pela queima de combustíveis fósseis, como redundar em perda de biodiversidade, erosão e empobrecimento dos solos em larga escala (e melhor será nem falar da plantação de cana-de-açúcar, milho e palmeira-de-óleo para produção de biocombustíveis, um crime ecológico travestido de energia “verde”).

O rótulo “renovável” não é sinónimo de “inócuo” ou sequer de “neutro em carbono”. A energia renovável está para a energia fóssil como, do ponto de vista de quem está a fazer dieta, um iogurte light está para um iogurte “normal”: tem menos gordura e menos calorias, mas seria insensato crer que trocar o “normal” pelo light permite que se comam quatro lights de uma assentada.

Sim, é sensato investir em energias renováveis e reduzir a queima de combustíveis fósseis, mas é igualmente importante (senão mais) apostar na eficiência energética e na substituição, sempre que possível, do automóvel individual por transportes públicos e “mobilidade suave” (andar a pé e de bicicleta). Se queremos realmente um mundo sustentável, o consumo de energia per capita tem de diminuir significativamente, o que não será possível se todos começarmos a conduzir automóveis eléctricos de centenas de cavalos de potência.

Um carro tem pegada ecológica antes de sair do stand

Mas o consumo de energia nas deslocações é apenas uma parte da pegada ecológica de um veículo: para esta contam também as matérias-primas, a energia e as horas de trabalho humano necessárias ao seu fabrico, bem como a poluição gerada ao longo de toda a cadeia produtiva e de toda a vida útil do veículo (incluindo o seu destino final, que pode, eventualmente, ser a reciclagem). A regra “não há almoços grátis” também se aplica aqui e é válida para todos os domínios: todos os desempenhos extraordinários (potência, aceleração, binário, autonomia) e todos os confortos e mordomias num automóvel têm, não só um preço monetário, como um preço ambiental. E nem o trabalho humano é excluído desta contabilidade: no segmento de luxo há quem se gabe de que certos componentes e fases do trabalho são feitos à mão – ora, uma vez que os operários que executam tais tarefas têm eles mesmos uma pegada ambiental, uma fracção dessa pegada, proporcional às horas de trabalho, terá de ser somada à pegada ambiental do fabrico do automóvel.

Se os potenciais clientes se pusessem a matutar na dissipação de recursos subjacente à longa cadeia de fabrico que desemboca num automóvel de gama alta, poderiam ser atormentados por problemas de consciência, mas os marqueteiros já dominam na perfeição a farsa da “sustentabilidade”: omitem as grandes parcelas da factura ambiental e publicitam os detalhes que revelam preocupação com o planeta e as criaturas sencientes. Em vez de usar no revestimento do compartimento do motor plásticos convencionais, produzidos a partir de petróleo, recorre-se a materiais UBQ, obtidos “a partir da conversão de resíduos domésticos mistos [como] resíduos alimentares, plásticos mistos, papelão e fraldas de bebé”; em vez de se usar couro nos revestimentos do habitáculo, emprega-se uma réplica artificial à base de “fibras de cactos em pó”; e como há clientes que não prescindem da “pele genuína”, há que assegurar que esta cumpre as “Cinco liberdades do bem-estar animal” na criação de gado (ou seja, que o couro proveio de vacas e bois que viveram vidas felizes antes de serem abatidos) e que a sua curtição só empregou agentes vegetais (nada disto é inventado, é a cartilha do “luxo sustentável” [sic] que pode ser consultada no website da Mercedes). É como alguém, a uma refeição, deglutir um bife com três dedos de espessura, acompanhado por uma generosa dose de batatas fritas, mas fazer questão de tomar café com adoçante artificial, em vez de açúcar, por estar “de dieta”.

Interior do Mercedes EQE: “Luxo sustentável”

O custo ambiental (e geopolítico) das baterias

No caso dos veículos eléctricos e do ponto de vista da sustentabilidade, o “bife” são as baterias, que requerem imensas quantidades de níquel, cobalto e lítio, cuja mineração e processamento tem fortes impactos ambientais, e também envolvem delicadas considerações geopolíticas.

As reservas mundiais de níquel, cobalto e lítio não são abundantes e têm distribuição muito desigual. O níquel concentra-se em sete países: Austrália (21 milhões de toneladas), Indonésia (21 milhões), Brasil (16 milhões), Rússia (7 milhões), Filipinas (5 milhões), China (3 milhões), Canadá (2 milhões). O cobalto é ainda menos abundante e mais desigualmente distribuído: a República Democrática do Congo (3.6 milhões de toneladas), representa 50% das reservas mundiais; seguem-se Austrália (1.4 milhões de toneladas), Cuba (500.000 toneladas), Filipinas (260.000), Rússia (250.000), Canadá (220.000).

A exploração de cobalto na República Democrática do Congo não só não costuma cumprir requisitos de preservação ambiental, como está associada a trabalho infantil, violência, extorsão e corrupção e é detida, em 70% por empresas chinesas. Acresce que a China detém 80% da refinação de cobalto a nível mundial.

O reverso do mundo cintilante da Tesla, da Apple e da Samsung: Mineração artesanal de cobalto no Katanga, República Democrática do Congo

A situação do lítio é similar: um único país, o Chile, detém quase metade do total (9.2 milhões de toneladas), seguindo-se Austrália (5.7 milhões), Argentina (2.2 milhões), China (1.5 milhões), EUA (750.000), Zimbabwe (220.000) e Brasil (220.000). Portugal surge em 8.º lugar, mas é preciso colocar as suas 60.000 toneladas em perspectiva, pois representam apenas 0.3% das reservas mundiais; de qualquer modo, é possível que as pressões de populações e autarquias locais e organizações ambientalistas consigam impedir a extracção de uma tonelada sequer. A China detém mais de 50% da capacidade mundial de processamento e refinação de lítio e 75% das fábricas de baterias de lítio a nível global.

É previsível que a procura e o preço do lítio (e, possivelmente, também os do níquel e cobalto) aumentem vertiginosamente, não só em resultado da transição para a mobilidade eléctrica como pela multiplicação de mega-centrais de baterias destinadas a compensar as flutuações de produção inerentes à energia solar e eólica, uma área de negócio em que a Tesla está a investir maciçamente e que Elon Musk prevê que irá tornar-se tão grande quanto a indústria automóvel. A proliferação exponencial na nossa vida quotidiana de dispositivos que empregam baterias de lítio– telemóveis, computadores portáteis, tablets, e-readers, smartwatches, controladores de vídeojogos, auscultadores bluetooth, câmaras de vídeo, escovas de dentes eléctricas, electrodomésticos e ferramentas sem fio – vai também contribuir para aumentar a procura por metais para o fabrico de baterias. Sem surpresa, o preço do lítio aumentou 150% entre 2019 e 2022, apesar da quebra da produção industrial em 2020 em resultado da pandemia de covid-19, e a cotação de algumas empresas produtoras de lítio registaram aumentos ainda maiores – a australiana Piedmont Lithium viu a cotação das suas acções aumentar 500% entre Setembro de 2020 e Janeiro de 2022.

O desenvolvimento de novos tipos de baterias, utilizando outras matérias-primas, e a implementação generalizada da reciclagem de baterias poderá aliviar a procura de lítio, níquel e cobalto, mas este tipo de mudanças requer tempo e está dependente de avanços tecnológicos que estão no domínio do imprevisível.

Se já é preocupante que as reservas destes três metais cruciais para a descarbonização dos sistemas de energia estejam concentradas num “clube” restrito e em que alguns membros são ditaduras de facto (mesmo que realizem eleições regularmente) ou são politicamente instáveis e podem facilmente deslizar para o autoritarismo e têm escasso respeito pelos direitos humanos, o facto de ¾ do processamento industrial dos minérios que contêm estes três metais cruciais estar nas mãos da China deveria ser motivo de inquietação no Ocidente, pois minério enterrado no solo é uma coisa, dispor de maquinaria, know how e infra-estruturas logísticas que permitam o seu processamento e a entrega regular dos metais refinados aos clientes é outra completamente diversa – e entre as duas coisas podem mediar anos ou até décadas. Mas a China detém igualmente uma posição dominante noutra parte do processo: representa 79% da produção de baterias para veículos eléctricos (dados de 2021), uma quota que resulta de o país ter apostado fortemente na mobilidade eléctrica antes dos seus rivais. Estes estão agora a investir também na produção de baterias, mas as previsões para 2025 indicam que a China continuará a dominar o fabrico de baterias, com 65%, seguida pela Alemanha, com 11% de quota, e os EUA, com 6% de quota.

Do ponto de vista da segurança energética do Ocidente, é pertinente perguntar: irá a mobilidade eléctrica libertar-nos da dependência dos países, quase todos pouco recomendáveis, que detêm as grandes reservas de petróleo e colocar-nos na dependência de um conjunto de países ainda mais restrito e igualmente pouco recomendável, que controla a extracção, produção e refinação de níquel, cobalto, lítio e terras raras e o fabrico de baterias?

Unidade de processamento de minério da Norilsk Nickel em Nikel, no Oblast de Murmansk. A região de Nikel foi atribuída em 1920 à Finlândia pela URSS, mediante o Tratado de Tartu; na década de 1930 foram descobertas nela vastas reservas de níquel e a sua mineração deu origem a uma localidade baptizada com o nome do metal; a região foi anexada em 1945 pela URSS

Podemos ver um episódio sintomático dessa nova dependência na atitude tomada pela União Europeia nas sanções impostas à Rússia na sequência da invasão da Ucrânia: não houve hesitação em aplicar sanções aos oligarcas na órbita do Kremlin ligados a empresas de combustíveis fósseis (os “oiligarcas”), mas poupou-se Vladimir Potanin, amigo fiel de Putin, pois é o CEO e o maior accionista da Norilsk Nickel, a maior produtora mundial de níquel refinado (ver Vladimir Potanin, o oligarca russo amigo de Putin que escapou a sanções). Compreende-se: enquanto no mercado de petróleo e gás natural existem alternativas à Rússia, mesmo que com custo superior, com rotas de fornecimento mais longas e complexas e que obrigam a que se volte a ter de ser amável com os líderes do Irão, da Venezuela e dos Estados do Golfo Pérsico, já os fabricantes de baterias e automóveis eléctricos do mundo ocidental não podem, nos próximos anos, passar sem a Norilsk Nickel.

A “ansiedade da autonomia”

O fenómeno é descrito em inglês por “range anxiety” e consiste no receio dos automobilistas de ficarem parados na estrada por falta de carga na bateria – o fenómeno afecta também os carros com motor de combustão interna, mas ataca mais os condutores de carros eléctricos, dado que a autonomia dos primeiros modelos era modesta e os postos de carregamento ainda são poucos e desigualmente distribuídos – nos EUA, por exemplo, existiam, em 2021, 5400 pontos de carregamento, contra 150.000 bombas de gasolina. Este receio tem funcionado como barreira psicológica à adopção maciça do carro eléctrico e, compreensivelmente, os construtores têm vindo a investir fortemente na dilatação da autonomia.

Maior potência tem, como vimos, um custo em termos de pegada carbónica, mas uma maior autonomia é uma vantagem sem inconvenientes ambientais, certo? Infelizmente, a regra “não há almoços grátis” volta a aplicar-se aqui: maior autonomia requer baterias de maior capacidade, cujo fabrico requer mais metais e maior dispêndio de energia e maiores emissões de CO2 – 1-5 toneladas de CO2 para uma bateria de 30 KWh (como a dos Nissan Leaf de 1.ª geração), 6-17-5 toneladas para uma bateria de 100 KWh (como a dos Tesla Model S e X). E as baterias têm um sério inconveniente em relação aos combustíveis fósseis: à medida que um carro a gasolina consome combustível, vai ficando mais leve, mas as baterias de um carro eléctrico pesam o mesmo (500 Kg num Tesla Model 3) quer a sua carga seja 100% ou 0%. Ou seja, um carro eléctrico com baterias de grande capacidade tem sempre de carregar esse fardo, mesmo que o condutor não utilize a potência e autonomia excepcionais que tem à sua disposição. Em média, o automobilista português percorre 46 Km por dia e apenas faz por ano 8 viagens superiores a 400 Km, portanto, se comprar um Tesla Model 3, um Polestar 2 ou um Rivian RT1 estará a sub-aproveitá-los flagrantemente e a gerar emissões de CO2 desproporcionadas para as suas reais necessidades de deslocação.

A alternativa hidrogénio

Há quem, preocupado com a excessiva dependência externa que a mobilidade eléctrica poderá criar ao Ocidente em termos de matérias-primas, advogue que as células de combustível alimentadas por hidrogénio “verde” seriam alternativa preferível para motorizar o sector dos transportes. Acontece que um dos elementos fulcrais das células de combustível é o paládio (também usado nos conversores catalíticos nos escapes dos automóveis “convencionais”), um metal ainda mais raro do que os acima mencionados e com distribuição geográfica ainda mais caprichosa: as suas reservas estão concentradas na África do Sul (63.000 toneladas, 90% do total global), Rússia (4500 toneladas, 6%), Zimbabwe (1200 toneladas, 2%) e EUA (1%). E o que é ainda menos tranquilizador é que 40% da produção actual de paládio provém de uma única empresa – a Norilsk Nickel do Sr. Potanin.

Mina de paládio e platina em Stillwater, Colorado, EUA

Transição energética sim, mas não tão depressa

No final de Junho de 2022, o Governo de Portugal aliou-se aos de Itália, Bulgária, Roménia e Eslováquia para propor à Comissão Europeia o adiamento em cinco anos da meta de 2035 como término da venda de veículos com motor de combustão interna (ver “Não é falta de ambição, é prudência: Costa justifica proposta para adiar fim dos carros de combustão), uma medida que já tinha sido aprovada pelo Parlamento Europeu no início desse mesmo mês. Compreende-se este passo do Governo português, que tem menos a ver com “prudência” do que com “inércia”: as fábricas automóveis em Portugal estão a ficar para trás na “transição energética” e continuam a estar direccionadas para modelos de combustão interna, embora muitas das fábricas das mesmas marcas noutros países já estejam a ser reconvertidas para modelos eléctricos. Despertando, tardiamente, para a perspectiva de, em 2035, as fábricas dos grupos Volkswagen e PSA em Portugal ficarem sem modelos para produzir, arrastando a ruína de um sector que representa 5.2% do PIB português, 9.1% do emprego na indústria transformadora e 16.1% das exportações de bens transaccionáveis (dados de 2021), António Costa tenta agora adiar este previsível desfecho, esperando, que, entretanto, Nossa Senhora de Fátima interceda junto dos CEOs da Volkswagen e PSA (ou, melhor ainda, junto do TechnoKing Elon Musk).

A proposta de adiamento da meta de 2035 suscitou, como seria expectável, reacções negativas das associações ambientalistas, que a classificaram como “uma machadada no Pacto Ecológico Europeu”. A associação Zero defende que é “crucial […] acelerar a produção em massa de carros eléctricos, o que conduzirá mais rapidamente a que estes se tornem mais baratos do que os equivalentes com motor de combustão”. Em abstracto, o argumento da Zero é perfeitamente razoável, mas passa ao lado da realidade: os carros eléctricos já estão a ser produzidos em massa, acontece é que a produção é dominada pelos modelos “errados” para o objectivo de diminuir a pegada ecológica do sector dos transportes. Isto é comprovado por a) O Tesla Model 3 ser o automóvel eléctrico mais vendido de sempre (1.5 milhões de unidades) e de se perspectivar que as suas vendas continuem em alta; b) Hoje rodarem nas estradas de todo o mundo 2.6 milhões de Tesla, entre Model 3, Y, S, X e Roadster; c) Boa parte dos modelos eléctricos que têm vindo a ser anunciados e promovidos pelas outras marcas visam rivalizar com a Tesla em potência, desempenho, luxo, e, em última análise, ostentação e dissipação.

Assimetrias sociais da mobilidade

Veículos pesados, potentes e com grande autonomia requerem baterias de maior capacidade, que, por sua vez, incrementam o peso do veículo e aumentam o seu consumo de energia, portanto, comprar um Cybertruck dificilmente será uma solução “ecológica”, mesmo que o use parcimoniosamente e pratique uma “condução económica”. Na verdade, mesmo que nunca saia da garagem, a mera existência de tal veículo já representa uma enorme pegada ecológica devido aos recursos incorporados na sua massa de três toneladas.

Avançar para a mobilidade sustentável requereria uma abordagem oposta na concepção dos veículos: o mais leves possíveis e com potências abaixo de 100 HP, que são mais do que suficientes para a esmagadora maioria das utilizações quotidianas da esmagadora maioria dos condutores.

Se a tendência nos veículos eléctricos continuar a incidir em carros pesados e potentes, corre-se o risco de o aumento da procura de níquel, cobalto e lítio aumentar substancialmente o preço destes metais, bloqueando a tão propalada “transição energética”: teremos uma elite com espaventosos veículos eléctricos de topo de gama, uma fracção da classe média-alta com veículos eléctricos citadinos e utilitários com preços em torno dos 30.000 euros e uma grande massa de condutores cujos rendimentos os obrigam a ficar amarrados a veículos baratos com motor de combustão interna. Na verdade, há muitas pessoas que não podem passar sem um automóvel particular – sobretudo fora dos centros urbanos servidos por redes densas de transportes públicos – mas cujos rendimentos as impedem de comprar automóveis novos, sejam eles eléctricos ou de combustão interna; quantos anos terão de passar até que o mercado de segunda mão de veículos eléctricos ofereça preços acessíveis às classes de baixos rendimentos?

Interior do Tesla Roadster de 2.ª geração

O desprezo pela gama baixa

O deslumbramento em torno dos modelos eléctricos de gamas altas contrasta com a escassez generalizada de oferta de modelos eléctricos nas gamas baixas.

Curiosamente, alguns dos primeiros automóveis 100% eléctricos a serem comercializados foram quadriciclos, geralmente com peso de 400-500 Kg e conhecidos nos EUA como NEV, Neighborhood Electric Vehicles. Em 2011 foram lançados o Renault Twizy, um híbrido de carro e scooter (ou, noutra perspectiva, um tuk-tuk chique e modernaço) que conseguiu ser o veículo eléctrico mais vendido em 2012, numa altura em que quase não existia concorrência, e o REVAi, produzido na Índia entre 2011 e 2019 e comercializado como G-Wiz no Reino Unido. Mais recentemente, surgiram o Microlino, lançado em 2018 pelo fabricante italiano Micro Mobility Systems e cujo design retro se inspira nos carros-bolha da década de 1950, e o Citroën Ami, lançado em 2020 e que retoma o nome de um modelo produzido entre 1961 e 1978 e ao qual não tem qualquer vínculo.

Mas quando se confronta o que os quadriciclos oferecem – prestações modestíssimas, espaço para passageiros e bagagem acanhado, equipamento minimalista e impossibilidade de circular em auto-estradas e vias rápidas – com o seu preço – 7700 euros para o Ami, 13.000 euros para o Twizy (que nem portas tem) – é previsível que o seu contributo para a mobilidade eléctrica seja limitado, estando vocacionados apenas para curtas deslocações em meio urbano ou como meio de diversão para adolescentes (já que, nalguns países, estes quadriciclos dispensam carta de condução e podem ser conduzidos a partir dos 14 anos).

Citroën Ami de 2020: potência de 8 HP, velocidade máxima de 45 Km/h

Já é mais difícil perceber porque, com excepção da China, tem sido praticamente nula a oferta de micro-carros (geralmente com peso compreendido entre 500 e 1000 Kg) movidos a electricidade. Este desinteresse é ainda mais inexplicável no Japão, onde os kei cars (designação japonesa dos micro-carros, com motores de combustão interna limitados a 660 cm3) chegaram a ter uma quota de 40% do mercado de automóveis de passageiros. A partir de 2013, após o Governo ter limitado as vantagens do ponto de vista fiscal que conferiam atractividade aos kei cars, esta quota sofreu algum declínio, mas em 2021 era ainda de 35% e há várias marcas com larga experiência no seu fabrico – a Daihatsu (que também comercializa o seus kei cars sob as marcas Toyota e Subaru), a Honda, a Mitsubishi e a Suzuki.

Uma vez que os kei cars estão particularmente vocacionados para percursos urbanos (embora possuam habilitação para percursos em vias rápidas e auto-estradas), onde a) não existe necessidade de grandes potências, autonomias, velocidades e acelerações, b) há grande densidade de postos de recarga e c) a escassez de lugares de estacionamento é favorável às suas pequenas dimensões, seriam o segmento em que a motorização eléctrica teria mais facilidade em impor-se. Na verdade, a racionalidade ditaria que fosse este o primeiro segmento de mercado a ser alvo de electrificação maciça.

Todavia, só em 2022 foram apresentados os primeiros kei cars eléctricos de grandes fabricantes japoneses, o Mitsubishi eK X EV e o Nissan Sakura, que foram desenvolvidos em conjunto, têm aspecto e desempenho similares e partilham numerosos componentes. O Sakura tem um motor de 64 HP e uma velocidade máxima de 130 Km/h, o que deveria ser mais que suficiente para satisfazer as necessidades de uma fracção apreciável dos condutores; porém, há que admitir que o preço – 14.000-15.000 euros – não é muito competitivo, já que por uma quantia similar ou até inferior é possível adquirir-se um carro com motor de combustão interna de dimensões menos acanhadas, como o Toyota Aygo, o Kia Picanto, o Peugeot 108, ou o Renault Twingo (que usualmente são classificados no segmento acima, o dos mini-carros). A Honda só prevê apresentar o seu primeiro kei car eléctrico em 2024 e a Toyota, a Suzuki e a Daihatsu só irão fazê-lo em 2025.

Apresentação oficial do Nissan Sakura, a 20 de Maio de 2022

As marcas americanas – pelas razões já explanadas – sempre encararam os micro-carros como anedotas com rodas e as marcas europeias desinteressaram-se deles há décadas – os minúsculos e económicos Mini e Fiat 500 ressurgiram no século XXI, mas sob forma musculada e dirigidos para clientela abastada em busca de um “carrinho giro” para ir às compras na baixa, onde é difícil arranjar lugar para estacionar.

Já na China o micro-carro eléctrico Wuling Hongguang Mini EV (disponível em versões de 27 e 40 HP), foi o automóvel mais vendido (consideradas todas as categorias e tipos de motor) em 2021 (ver Do riquexó aos SUVs de luxo: Como a China se tornou no maior fabricante de automóveis do mundo), o que suscitou respostas imediatas da concorrência, nomeadamente do grupo Dongfeng, com o FenGuang Mini EV, e do grupo Changan, com o Lumin Corn, ao mesmo tempo que o consórcio SAIC-GM-Wuling Automobile relançou o Baojun E300 como Baojun KiWi EV.

Edição Gameboy do Wuling Hongguang Mini EV, lançada em Março de 2022

O segmento dos mini-carros, também designado como segmento A ou citadinos (“city cars”), situa-se acima dos micro-carros (embora a distinção entre as duas categorias nem sempre seja clara). Têm pesos à volta de 1000 Kg, potências de 60-70 HP e são relativamente populares na Europa, onde têm representado 6-7% do mercado, mas, até hoje, os fabricantes têm mostrado pouco interesse na sua “electrificação”.

É mesmo desejável que todos adoptem o carro eléctrico?

É fácil demonstrar que um Tesla Cybertruck não só não é “sustentável” como é um caso extremo de dissipação de recursos, mas a contabilização atenta de todo o ciclo de vida de vida dos automóveis pode levar a concluir que, em certas condições, até carros eléctricos modestos (utilitários de gama média-baixa) podem, no estado actual da tecnologia de baterias e da produção de energia eléctrica, revelar-se tão lesivos do ambiente (nomeadamente no que respeita a emissões de CO2) quanto um carro de combustão interna.

Considerando todo o ciclo de vida do fabrico das baterias e dos veículos e uma extensão média de vida de 300.000 Km, os carros eléctricos, ainda antes de terem percorrido um único quilómetro, já emitiram 12 toneladas de CO2, o dobro do que custa construir um carro de combustão interna similar. Assumindo que, globalmente, 2/3 da electricidade provém da queima de combustíveis fósseis, um carro eléctrico só supera o seu handicap de 6 toneladas de CO2 ao fim de 130.000-145.000 Km; porém, este cálculo pressupõe que o carro eléctrico tem uma autonomia de 200 Km, se tiver uma autonomia de 650 Km (como acontece já com as mais recentes versões de eléctricos de luxo, como o Tesla Model S ou o Mercedes EQE, e tenderá a ser oferecido também nas gamas inferiores), irá requerer baterias de maior capacidade e terá uma pegada carbónica no quilómetro zero de 25 toneladas de CO2, o que faz com que as suas emissões totais irão, no final dos 300.000 Km, continuar acima das de um modelo equivalente de combustão interna. Estes números são aproximações grosseiras, que dependem de pressupostos sobre os quais os especialistas divergem, e poderão variar muito de modelo para modelo, de utilizador para utilizador e também de país para país e de ano para ano (consoante a proporção de energia renovável na produção de electricidade). Há estudos comparativos que chegam a resultados muito diferentes dos acima apresentados, indicando que bastam 18 meses para que um carro eléctrico se revele “carbonicamente” superior a um carro convencional, e que mesmo um carro eléctrico com baterias de grande capacidade ultrapassa o carro convencional após cinco anos e meio de utilização.

A evolução tecnológica das baterias e o incremento da proporção renovável da produção de electricidade tenderão a deslocar este cenário de emissões em favor dos carros eléctricos, mas, no estado actual das coisas – e, quem sabe, durante mais uma década – a ideia, largamente implantada, de que “trocar um carro a gasolina por um carro eléctrico é contribuir para salvar o planeta” não é necessariamente verdadeira.

O Mercedes EQS é, entre os modelos eléctricos disponíveis no mercado europeu, o que oferece maior autonomia: 785 Km

Conforto a bordo

Deve realçar-se que os modelos emblemáticos da nova mobilidade eléctrica não se destacam apenas por serem extravagantemente potentes e pesados. Estão também recheados de écrans, sensores, câmaras, computadores, assistentes de voz, equipamentos de infotainement. Para lá desta manifestação conspícua, a electrónica está também presente na panóplia de dispositivos electrónicos que hoje gere o desempenho do veículo (controlo de tracção, travagem e estabilidade, monitorização da pressão dos pneus, diagnóstico de problemas), providencia segurança (activação de airbags, regulação de faróis e espelhos retrovisores, assistência à navegação, condução e estacionamento) e proporciona conforto e distracção aos ocupantes (ar condicionado, abertura e fecho de vidros e portas, posicionamento, climatização e massagem nos bancos, aquecimento do volante, ajustamento da iluminação interior e do sistema de som) e tudo isto requer uma enorme quantidade de microchips.

É claro que os microchips não são um exclusivo dos veículos eléctricos: eles tornaram-se omnipresentes em todos os tipos de automóveis ao longo do século XXI e são responsáveis por boa parte do aumento generalizado do custo dos automóveis – em 2000 representavam 18% do custo médio, em 2020 representavam já 40% e é previsível que esta proporção continue a aumentar. O número de microchips é muito variável, mas os veículos eléctricos tendem a usar mais microchips do que os veículos “convencionais” (quanto mais não fosse por, em geral, serem modelos recentes e de gama alta). Há quem indique que, genericamente, um veículo eléctrico requeira o dobro dos microchips de um veículo convencional; mas também há quem realce que um moderno Ford Fiesta com motor de combustão interna possui 300 microchips, enquanto o Ford Mustang Mach-E possui 3000.

Mustang Mach-E, reencarnação eléctrica de 2020 de um modelo “mítico” da Ford, lançado em 1964

E os microchips, por sua vez, requerem uma enorme quantidade de “terras raras”, isto é metais como o lantânio, o cério, o neodímio, o samário, o európio, o térbio e o disprósio, cujas reservas a grande lotaria geológica concentrou em apenas seis países, que detêm 96% do total global: China (44 milhões de toneladas, ou seja 35% do total), Vietnam (22 milhões, 18% do total), Brasil (21 milhões, 17% do total), Rússia (21 milhões, 17% do total), Índia (7 milhões, 6% do total) e Austrália (4 milhões, 3% do total). Sejam quais forem as voltas que se dêem, o futuro do automóvel parece ter de passar sempre pela China e pela Rússia, o que é pouco tranquilizador para o Ocidente.

O reverso do nosso conforto e conveniência

Para que o impacto ambiental dos gadgets electrónicos de que somos cada vez mais dependentes não se fique por uma mera abstracção, podemos dar-lhe um rosto, o rosto de dois primos nossos: o gorila-das-planícies orientais ou gorila-de-grauer (Gorilla beringei graueri) e o gorila-das-montanhas (Gorilla beringei beringei). As suas populações têm vindo a sofrer um declínio acelerado, estando reduzidas a 3800 gorilas-das-planícies orientais e 1000 gorilas-das-montanhas, que vivem em áreas florestais na República Democrática do Congo que estão sob crescente pressão em resultado da expansão da agricultura, da indústria madeireira e da mineração, já que a RDC não só contém as maiores reservas de cobalto do mundo como é o maior produtor mundial de tântalo, um metal raro indispensável ao fabrico de electrónica automóvel, telemóveis, computadores e câmaras.

Um rosto para as vítimas anónimas e remotas dos nossos brinquedos de luxo: Dois gorilas-das-planícies-orientais, um macho adulto (em primeiro plano) e um juvenil (atrás)

Subsídios perversos

Na maioria dos países desenvolvidos, o Estado tomou medidas para incentivar a aquisição de veículos eléctricos de passageiros, através de diversas abordagens: subsídio directo à aquisição, que, na Europa se situa, geralmente, entre 2000 (na Finlândia) e 9000 euros (na Alemanha, onde algumas autarquias concedem ainda um subsídio adicional de 1500 euros), e é de 4000 euros em Portugal; isenções e benefícios fiscais; isenções ou tarifas bonificadas em portagens, parques de estacionamento e ferries; tarifas bonificadas para carregamento eléctrico.

Os subsídios directos à compra de veículos eléctricos de passageiros costumam estar sujeitos a duas limitações: a) Apenas abrangem veículos até um certo preço: na Europa vão de 45.000 a 65.000 euros, sendo de 62.500 em Portugal; b) Têm como tecto a verba consagrada anualmente pelo Estado ao programa, que é, em Portugal, em 2022, de 5.2 milhões de euros.

É possível que, em Portugal como nos restantes países, os subsídios directos à compra de veículos eléctricos de passageiros tenham sido criados com boas intenções, mas, na prática, tais subsídios implicam que os impostos pagos pelos contribuintes que auferem o modestíssimo salário médio português e não têm meios para adquirir um carro eléctrico de gama baixa (com excepção do Dacia Spring, custam para cima de 23.000 euros, ou seja, quase o dobro dos modelos mais baratos com motor de combustão interna), irão ajudar os mais abastados a comprar um BMW i3 (42.100 euros), um Audi Q4 e-tron (44.500 euros), um Ford Mustang Mach-E (50.000 euros), um Polestar 2 (50.000 euros), um Lexus UX300e (53.500 euros), um Mercedes EQA 250 (53.500 euros), um Tesla Model 3 (55.000 euros), ou um Volvo XC40 Recharge (57.000 euros).

Dacia Spring Electric: com um preço-base de 18.800 euros (em Portugal), é o automóvel de passageiros eléctrico mais barato no mercado europeu (excluindo micro-carros)

A perversidade da subsidiação de veículos eléctricos até 50.000-65.000 euros torna-se flagrante quando examinamos o mercado automóvel europeu. Este costuma ser dominado por carros económicos – o top 5 de 2021, ainda dominado por motores de combustão interna, foi ocupado pelo Volkswagen Golf (29.000 euros), pelo Peugeot 208 (16.700 euros), pelo Dacia Sandero (11.000 euros), pelo Renault Clio (20.000 euros) e pelo Peugeot 2008 (20.000 euros), por esta ordem – mas o carro eléctrico mais vendido nesse mesmo ano foi o Tesla Model 3 (55.000 euros). Em Portugal, cujo top 5 de vendas em 2021 foi ocupado pelos modelos “convencionais” Peugeot 2008, Renault Clio, Renault Captur (23.000 euros), Peugeot 208 e Mercedes Class A (32.500 euros), também o Tesla Model 3 foi o carro eléctrico mais popular, vendendo 1140 unidades.

A justiça social e a sustentabilidade requereriam que a subsidiação da mobilidade eléctrica fosse restrita a modelos com preço inferior a 25.000 euros, o que forçaria os construtores a desenvolver carros eléctricos verdadeiramente económicos (que tardam em aparecer), em vez de concentrarem a atenção em brinquedos ostentatórios e dissipadores de recursos.

As novas bestas eléctricas em contexto

Há, finalmente, que evidenciar quão absurda é a escalada de potência e desempenho dos carros eléctricos das marcas “visionárias” que se arrogam como pioneiras da “nova mobilidade sustentável” e quão desconectada ela está das necessidades reais do condutor médio.

Para colocar em contexto as potências dos SUVs, pickups e desportivos de marcas eléctricas como a Tesla, Rivian ou Lucid (e os modelos rivais das marcas tradicionais) considere-se a potência de 340 HP do mais “débil” dos Teslas no mercado, o Model 3, é similar à do M-4 Sherman, o tanque americano mais produzido da II Guerra Mundial, que pesava 30 a 38 toneladas.

M-4 Shermann, 1945

Mesmo os modelos eléctricos concebidos para o mercado europeu, que privilegia carros mais pequenos e económicos do que o americano, oferecem potências descabidamente generosas: o Mercedes EQA 250, o mais modesto e maneirinho dos modelos da EQ, a “linha eléctrica” da marca alemã, debita cerca de 190 HP, a mesma potência do Matilda II, um dos tanques britânicos mais usados na II Guerra Mundial, que pesava 25 toneladas. O Tiger II (ou Königstiger), o mais formidável tanque a ter entrado em combate na II Guerra Mundial, pesava 70 toneladas e tinha uma potência de 690 HP.

A quem argumente que não é justo fazer comparações com tanques de há 80 anos, pode retorquir-se que a maior parte dos tanques russos T-72 que temos visto em operação na Ucrânia nos últimos meses e que pesam 41-44 toneladas, possuem motores de 840 HP, apenas mais 26 HP do que um Tesla Cybertruck.

Tanque T-72

Um moderno Fórmula 1 tem uma potência à volta de 850 HP, que pode chegar pontualmente a 1000 HP quando é accionado o sistema de recuperação de energia (ERS), e acelera de 0-100 Km/h em 2.6 segundos, aproximadamente o mesmo tempo requerido por um Tesla Model X ou um Lucid Air Dream Edition. No caso de um Fórmula 1, compreende-se a necessidade de tão fulgurante aceleração (mesmo que se considerem os desportos motorizados uma frioleira), mas a quem irá usar o seu Tesla ou o seu Lucid maioritariamente no pastoso trânsito citadino ou em estradas limitadas a 90 Km/h, é legítimo perguntar-se: qual é a pressa?

A estrada à nossa frente

O investimento das marcas automóveis em brinquedos ostentatórios e dissipadores de recursos é perfeitamente compreensível: elas têm de prestar contas no fim do ano aos seus accionistas, não estão comprometidas com o bem-estar de quem estiver vivo daqui a 30 ou 40 anos, muito menos com a preservação do gorila-das-planícies-orientais (“Será assim tão diferente dos outros gorilas? A mim os gorilas parecem-me todos iguais. Não temos já gorilas que cheguem?”).

Por outro lado, o lucro obtido com a venda de um único veículo de topo de gama, cuja margem de lucro é alta (e tanto maior quanto mais extras faraónicos se impingirem ao cliente), pode proporcionar um lucro similar ao obtido com a venda de uma vintena de veículos de gama baixa, cuja margem é muito reduzida.

Mas poderá haver uma razão ainda mais ponderosa para a aposta das marcas em modelos cada vez mais sofisticados, apetrechados e dispendiosos: a percepção, entre os próceres da indústria automóvel, de que a continuada erosão da remuneração do factor trabalho face ao factor capital e a concentração dos rendimentos e da riqueza numa elite cada vez mais restrita (ver capítulos “A financeirização da economia” e “A ascensão do capitalismo de casino” em Maus trabalhos: O que são, de onde vêm e que consequências têm?) irá levar, a breve prazo, a que a classe média-baixa deixe de ter capacidade financeira, por muitos sacrifícios que faça, para adquirir um automóvel particular de gama baixa (a não ser que seja de segunda mão). O sonho (concretizado) de Henry Ford de fabricar um automóvel tão barato que até os operários fabris, os pequenos agricultores e os empregados do comércio e escritórios poderiam adquirir um talvez esteja, um século depois, a chegar ao fim – aos fabricantes não compensará, portanto, investir muito num segmento que, a curto prazo, se tornará residual, e impõe-se focar a atenção na disputa dos segmentos superiores.

Um obstáculo que se põe em 2022 aos fabricantes de brinquedos ostentatórios e dissipadores de recursos é que os seus potenciais clientes pertencem a um estrato social minimamente instruído e informado e, ultimamente, andam meio intoxicados (“muito por culpa daquela serigaita sueca!”) com a ideia de que a capacidade de carga do planeta está a ser posta à prova e de que temos responsabilidades para com as gerações futuras, o que pode inibir a sua propensão para adquirir produtos sumptuários. O que vale é que a instrução e informação dos potenciais clientes não costuma ser profunda nem sólida, o seu raciocínio raramente é consequente e a sua pulsão para o consumo é fortíssima, pelo que bastam dois ou três artifícios retóricos para lhes apaziguar ou entorpecer a consciência.

O R1T é, garantem os marqueteiros da Rivian, a ferramenta de que precisa para dar largas à sua “vocação para explorar o mundo”. A publicidade a pickups e SUVs eléctricos das marcas americanas remete usualmente para os cenários do Oeste Selvagem, onde a natureza é prístina, os horizontes e os recursos são ilimitados, a vigilância e coerção do Estado e da sociedade não se fazem sentir e cada homem (e cada mulher) é senhor(a) do seu destino

Se os discursos de todas as marcas automóveis afinam hoje pelo diapasão da “sustentabilidade”, poucas vezes se encontra sofística tão refinada e oleosa quanto a da Rivian: “Para construir o futuro que os nossos filhos e os filhos dos nossos filhos merecem, têm de ser tomadas medidas extraordinárias para parar a carbonização da nossa atmosfera. Tal requer que indivíduos e indústrias se unam de forma inédita para promover a transição do mundo para a energia sustentável. É aqui que reside o potencial da Rivian: em criar soluções que alteram o quadro mental do consumidor e inspiram outras empresas a mudar de forma profunda a forma como funcionam. Por tremendo que isto possa soar e por complexo que seja o nosso objectivo, já dispomos de tudo o que é necessário para criar a mudança. Começa por tirar partido de algo com que todo o ser humano nasce: o espírito de aventura. Há uma razão para sermos inatamente dotados de curiosidade e capacidade para inventar formas mais eficazes de fazer coisas. A parte de nós vocacionada para explorar o mundo é o segredo para garantir que nos resta um mundo que vale a pena explorar. Para sempre”.

Os autores deste naco de pseudo-ecologismo marinado em filosofia de pacotilha conhecem bem o seu público, estão perfeitamente conscientes de que sofremos de uma dissonância cognitiva que faz com que aspiremos a desfrutar de um “lifestyle” (como agora se diz) cada vez mais opulento, ao mesmo tempo que cremos que está iminente o apocalipse ambiental anunciado pelos profetas carbónicos e exigimos que alguém faça algo para o suster – sendo “alguém” o Governo, a “indústria”, “as multinacionais”, não nós, pois temos um comportamento ambiental irrepreensível (ver Como a pequena Greta salvou o planeta e As alterações climáticas e a conferência das Nações Unidas: O Grande Circo Carbónico). Os marqueteiros nem sequer precisam de esforçar-se muito para nos persuadir de que comprar um Rivian R1T ou um Tesla Cybertruck é o melhor investimento que podemos fazer para assegurar que os nossos filhos e os filhos dos nossos filhos viverão sob céus azuis e respirarão ar puro – para mais, como possuem caixa aberta, é mesmo do que precisamos para levar uma pá, uma enxada, um ancinho e um carrinho de mão para a horta urbana onde, uma ou duas vezes por semana, vamos brincar ao “Regresso à Arcádia”, à “Agricultura Biodinâmica” e à “Permacultura” e de onde regressamos com dois nabos raquíticos, terra debaixo das unhas e a sensação de superioridade moral decorrente de se (julgar) estar a contribuir para a preservação do planeta.

Esqueleto e exemplar empalhado de gorila-das-planícies-orientais, no Museu de História Natural de Lille. É provável que estes sejam os único exemplares de gorila-das-planícies-orientais que as gerações vindouras poderão ver

E é deste modo que uma “transição energética” que deveria implicar uma maior parcimónia no nosso estilo de vida, se está a traduzir, pelo contrário, na ascensão a um patamar superior de luxo e esbanjamento – luxo e esbanjamento a que a retórica dos marqueteiros consegue não só remover qualquer sentimento de culpa, como até vestir com os trajes da virtude. O Homo sapiens tem mais jeito do que o gorila-das-planícies-orientais para construir e conduzir automóveis e para manusear écrans tácteis, mas a nossa propensão para o auto-ludíbrio está a empurrar-nos para uma crise ambiental que se torna tanto mais profunda e irreversível quanto mais “consciência ambiental” e “compromissos com a sustentabilidade” os cidadãos, empresas e políticos alardeiam publicamente.

Por outro lado, talvez a transição que se impõe levar a cabo não seja a do motor de combustão interna para o motor eléctrico. Fizemos da indústria automóvel o coração das maiores economias mundiais, escavámos crateras imensas para obter as matérias-primas necessárias ao fabrico de automóveis, desenhámos as nossas cidades à medida do automóvel, moldámos os nossos hábitos de lazer em função do automóvel, transferimos para o automóvel as funções de sala de concertos, cinema e salão de jogos, convertemos o automóvel em símbolo de estatuto social, independência e virilidade, fizemos do automóvel o meio privilegiado de projecção da nossa personalidade, cristalizámos no automóvel as nossas aspirações e os nossos sonhos. Não terá chegado a altura de repensar esta relação absorvente e doentia?