Foram as maiores negociações para libertar prisioneiros entre o Ocidente e a Rússia de sempre. A complexa e delicada operação diplomática juntou sete países numas negociações secretas que culminaram esta quinta-feira. O jornalista do Wall Street Journal Evan Gershkovich, o antigo sargento da marinha norte-americana Paul Whelan e ainda os opositores contra o regime Vladimir Kara-Murza e Ilya Yashin são quatro dos 16 detidos em prisões russas libertados. Como moeda de troca, o Kremlin consegue que Vadim Krasikov, antigo membro dos serviços secretos condenado à prisão perpétua na Alemanha, regresse a solo russo, juntamente com outros nove prisioneiros, entre hackers e espiões.
Vadim Krasikov, que trabalhou para o Serviço Federal de Segurança (FSB) — um dos ramos dos serviços secretos russos — foi a chave destas negociações, segundo apurou o Wall Street Journal. O homem recebeu, em 2019, a ordem para matar o comandante checheno Zelimkhan Khangoshvili, que tinha lutado na guerra na Chechénia, era um inimigo declarado do regime de Vladimir Putin e tinha obtido asilo na Alemanha. Foi apanhado e, em 2021, a justiça germânica condenou-o à prisão perpétua.
Moscovo tentou sempre negociar para que o “assassino preferido de Vladimir Putin” — como lhe chama a revista Der Spiegel — fosse libertado e terá acenado com várias trocas de prisioneiros com a Alemanha. Mas Berlim mantinha-se irredutível, em particular a ministra dos Negócios Estrangeiros alemã, Annalena Baerbock, que rejeitava por completo essa possibilidade. Depois do início da guerra na Ucrânia, tornou-se mais difícil a libertação de Vadim Krasikov, devido ao acentuar das tensões entre a Rússia e o Ocidente.
Who Russia Received:
Vadim Krasikov, an FSB operative and notorious assassin, was a key figure in the exchange. He's known for several contract killings, including the assassination of Zelimkhan Khangoshvili in Berlin. /1 pic.twitter.com/VpTd8DoyyD
— Volodymyr Tretyak ???????? (@VolodyaTretyak) August 1, 2024
Porém, em março de 2023, a Rússia prendeu o jornalista Evan Gershkovich, que foi condenado há cerca de duas semanas a 16 anos de prisão por espionagem. Estas acusações foram não só completamente rejeitadas pelo jornal em que trabalhava, o Wall Street Journal, como também pelo próprio, algo que a Rússia ignorou, tendo mesmo feito um julgamento à porta fechada. Entrando em ação, a administração Biden multiplicava-se em apelos de modo a que fosse libertado, iniciando uma jornada diplomática com o objetivo de que o jornalista regressasse aos Estados Unidos.
Diplomatas norte-americanos e membros da CIA viajaram pela Europa e pelo Médio Oriente, no último ano e meio, para tentar convencer aliados e parceiros a colaborar nesta missão de libertar Evan Gershkovich. Para isso, persuadiram certos países a libertarem espiões russos detidos para os trocar por norte-americanos.
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Havia uma difícil contrapartida nas negociações. O jornal Der Spiegel apurou que o Chefe de Estado russo, Vladimir Putin, apenas aceitava libertar Evan Gershkovich se em troca Vadim Krasikov regressasse à Rússia. Por várias vezes durante o ano passado, Washington apelou a Berlim que aceitasse negociar com Moscovo, mas a Alemanha ia resistindo, dado que considerava os crimes cometidos pelo antigo membro do FSB particularmente graves. Numa reunião do G7 em abril de 2023, o secretário de Estado, Antony Blinken, abordou pela primeira vez com a homóloga alemã a hipótese de Vadim Krasikov regressar à Rússia, em troca de outros prisioneiros, soube a CNN internacional. Annalena Baerbock rejeitou essa hipótese.
A pressão norte-americana apenas deu frutos em janeiro de 2024, ainda que no final do ano passado já houvesse sinais de que iria acontecer uma troca de prisioneiros. Ficou praticamente fechada num encontro na Casa Branca entre Joe Biden e Olaf Scholz em fevereiro. Os termos do acordos eram, não obstante, diferentes — e havia um nome em cima da mesa que acabou por morrer entretanto: Alexei Navalny.
Navalny, a peça fundamental que acabou por morrer na prisão
Março de 2024. O Presidente russo celebrava a sua reeleição com 87% dos votos em clima de festa no quartel-general do seu partido, o Rússia Unida. Sem que nada fizesse prever, Vladimir Putin menciona o nome de Alexei Navalny, algo que tinha feito apenas uma vez enquanto o seu maior rival — que tinha morrido numa colónia penal no Ártico a 16 de fevereiro — estava vivo.
“Dias antes de o senhor Navalny morrer, alguns colegas disseram-me que havia uma ideia com o intuito de que houvesse uma troca [de prisioneiros] por algumas pessoas em prisões de países ocidentais”, referiu Vladimir Putin no seu discurso de vitória em março de 2024, acrescentando: “Acreditem ou não, a pessoa que me disse essa frase mal a acabou de dizer e eu disse ‘concordo’. Mas, infelizmente, as coisas aconteceram de forma diferente”.
Como escreve o Wall Street Journal, quando a Alemanha e os Estados Unidos concordaram com os termos do acordo para a libertação de prisioneiros, Alexei Navalny estava na lista — e era uma prioridade para Berlim. O opositor ao regime russo já tinha estado em solo alemão exilado (onde recuperou de um envenenamento pelas autoridades russas), mas, voluntariamente, em janeiro de 2021, decidiu regressar à Rússia. Foi imediatamente detido no aeroporto, foi preso e acabou por morrer.
Numa publicação no Telegram, Leonid Volkov, líder da Fundação Anticorrupção fundada por Alexei Navalny, confirmou, esta quinta-feira, que o opositor estaria na lista nesta massiva troca de prisioneiros, pelo menos na parte alemã e norte-americana. Contudo, o responsável salienta que Vladimir Putin “nunca iria desistir de Navalny” e que o “matou dias antes de a troca ter lugar”.
Quando Alexei Navalny é encontrado morto na prisão, os planos alteram-se de forma significativa. As negociações para libertar os prisioneiros de guerra ficam suspensas com a Rússia, vaticinando-se que falhariam. No entanto, à porta fechada, a CIA e os serviços secretos alemães, BND, mantiveram contactos e tentaram fechar um acordo. Em meados de julho, Evan Gershkovich é condenado pelo sistema judicial russo — e isso obrigou as autoridades norte-americanas a pressionar os alemães a libertar Vadim Krasikov.
Para conseguirem chegar a acordo com a Rússia e tendo recebido o aval alemão, os Estados Unidos procuraram um país neutro que pudesse servir como intermediário. A Turquia, membro da NATO que mantém boas relações com Moscovo, foi a escolhida. Na semana passada, o diretor da CIA, Williams J. Burns encontrou-se em Ancara com o seu homólogo russo, Sergey Naryshkin, para acertar os detalhes da troca de prisioneiros.
Foi precisamente em Ancara que os prisioneiros foram trocados esta quinta-feira com a ajuda dos serviços secretos turcos (MIT). Num comunicado, o organismo turco realçou que desempenharam um “papel importante de mediador” nesta operação.
As exigências alemãs e norte-americanas
Concordando em libertar Vadim Krasikov, a Alemanha também fez exigências, nomeadamente que alguns presos políticos detidos pelo regime de Vladimir Putin — como os dissidentes Vladimir Kara-Murza, Ilya Yashin e alguns aliados de Alexei Navalny — fossem libertados das prisões russas. Berlim tem acolhido vários opositores do governo e tem enveredado esforços para os libertar. Aliás, especula-se que Yulia Navalyna viva atualmente na Alemanha.
Havia também dois nomes que interessavam particularmente às autoridades germânicas. Um deles era o de Kevin Lik, um jovem de 19 anos com nacionalidade russa e alemã, que foi condenado a quatro anos de prisão por traição. Aos 16 anos, o estudante terá, de acordo com a justiça da Rússia, tirado fotografias a bases militares na cidade de Maykop e tê-las-á enviado a “representantes de estados estrangeiros”.
A par de Kevin Lik, Berlim queria que Rico Krieger, um homem de 30 anos com nacionalidade alemã, regressasse ao seu país natal. Recebeu a pena de morte pela justiça da Bielorrússia, que o condenou de forma tão severa por alegadamente trabalhar para os serviços secretos da Ucrânia, tendo sido contratado para levar a cabo atividades disruptivas em território bielorrusso. O alemão publicou mesmo um vídeo, transmitido no canal estatal bielorrusso, a suplicar o perdão ao Chefe de Estado bielorrusso, Alexander Lukashenko, que acabou por perdoar. Integra agora o lote de prisioneiros para regressar ao seu país natal.
Citado pelo Guardian, Steffen Hebestreit, porta-voz do chanceler alemão Olaf Scholz, destacou que os acordos foram realizados “em cooperação com os Estados Unidos e os parceiros europeus”, algo que assegurou a “troca de quinze pessoas que estavam detidas de forma injusta na Rússia e um cidadão alemão [Rico Krieger] que foi condenado à morte na Bielorrússia”.
Steffen Hebestreit referiu que a única forma de os libertar passava por “deportar cidadãos russos que estavam presos na Europa e enviá-los para a Rússia”. No entanto, o governo de Olaf Scholz não tomou esta decisão de forma “leviana”. “O interesse do Estado em absolver um criminoso [Vadim Krasikov]” apenas foi tomada porque estava em risco “a liberdade, o bem-estar físico e, em alguns casos, a vida de pessoas inocentes presas na Rússia e daqueles injustamente presos politicamente”.
Nas mesmas declarações, o porta-voz de Olaf Scholz sublinhou que o dever do governo é “proteger cidadãos alemães”. Mas destacou que esta troca de prisioneiros foi levada a cabo igualmente em “solidariedade com os Estados Unidos”.
Por seu turno, os Estados Unidos têm de volta os jornalistas Evan Gershkovich e também Alsu Kurmasheva, cidadã com nacionalidade russa e norte-americana que trabalhava em Praga para a Radio Free Europe, condenada a cinco anos por divulgar “informações falsas sobre o exército russo”. Também o antigo sargento da marinha norte-americana Paul Whelan, com uma pena de 16 anos por espionagem, saiu em liberdade.
Num discurso à nação esta quinta-feira, o Presidente norte-americano, Joe Biden, reconheceu estar “grato”, em particular ao chanceler alemão, Olaf Scholz. “É uma tarde muito, muito boa”, descreveu o Chefe de Estado, acrescentando que a “agonia” dos prisioneiros “terminou”. “É um enorme alívio para as famílias e colegas” que esperavam a libertação dos norte-americanos. “Muitos países ajudaram a que isto acontecesse.”
No discurso em que anunciava que “passava a tocha” à vice-presidente Kamala Harris na corrida à Casa Branca, o Presidente norte-americano tinha já enfatizado que estava a “trabalhar” para libertar todos “os norte-americanos injustamente detidos” em todo o mundo. Aliás, uma hora antes de anunciar ao mundo que ia desistir da corrida presidencial, Joe Biden estava empenhado nessa missão, apesar de toda a turbulência política. O Chefe de Estado ligou ao primeiro-ministro da Eslovénia, Robert Golob, para chegar a acordo para a libertação dos espiões russos, Artem Dultsev e Anna Dultseva, que estavam detidos naquele país.
Por tudo isto, Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional e um dos braços direitos de Joe Biden, indicou que nem “na Guerra Fria” tinha havido uma troca de prisioneiros assim. Aliás, o responsável vai mesmo mais longe: “Nunca houve uma troca que envolvesse tantos países com tantos parceiros dos Estados Unidos a trabalhar em conjunto”.
A não reação da presidência da Rússia e o lamento de Medvedev
Para além de ter trabalhado com a Alemanha, os Estados Unidos colaboraram com a Polónia, Noruega e a Eslovénia. Varsóvia aceitou libertar o jornalista Pavel Rubtsov (também conhecido por Pablo González), acusado de ser um espião russo com nacionalidade espanhola cujo julgamento ainda estava a decorrer. Já Oslo, entregou à Rússia o homem que se apresentou como um “estudante” da Universidade do Ártico, Mikhail Mikushin, e que foi detido pelas autoridades norueguesas por suspeitas de ser um espião do GRU, os serviços secretos pertencentes ao Ministério da Defesa russo.
Os Estados Unidos libertaram os hackers Roman Seleznev e Vadim Konoshchenok e ainda o empresário Vladislav Klyushin que espiou para a Rússia, estando envolvido na alegada interferência russa nas eleições presidenciais norte-americanas de 2016, que deram a vitória a Donald Trump.
Contrariamente a Joe Biden, Vladimir Putin manteve o silêncio sobre a troca de prisioneiros. Se bem que tivesse sinalizado nos últimos meses disponibilidade para um acordo, o Presidente russo ainda não comentou o assunto. O porta-voz do Kremlin, Dymtry Peskov, assinalou somente que serão prestadas declarações no “seu devido tempo”. Assim, até ao momento, foi apenas publicado um comunicado pelo FSB, que confirmou a troca.
Porém, uma das vozes mais destacadas do regime, Dmitri Medvedev, ex-Presidente e atual vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, escreveu no Telegram que gostava de ver os “traidores da Rússia a apodrecerem numa masmorra” ou que “morressem numa prisão”, como “muitas vezes aconteceu”. Ressalvou, não obstante, que era mais “útil” trazer “de volta” ao país “aqueles que trabalharam pelo bem da pátria”.
Perante esta troca história, será que as relações entre a Rússia e o Ocidente melhoraram? O jornalista da BBC, Gordon Corera, considera que não. Este acordo “não significa qualquer melhoria fundamental da relação conturbada” entre Moscovo e países europeus. “A Ucrânia e a Rússia continuam a trocar prisioneiros, apesar de continuarem em guerra. Tudo isto significa que ambos os lados sentiram que foram capazes de extrair algo que queriam deste acordo.”
Se Joe Biden conseguiu cumprir uma promessa (e quem sabe dar um trunfo eleitoral a Kamala Harris), Vladimir Putin teve de volta o seu “assassino favorito” e outros espiões que o podem ajudar a desestabilizar o Ocidente. Segundo o Presidente norte-americano, não houve qualquer contacto direto entre os dois líderes no decorrer destas negociações. Mas os esforços diplomáticos originaram que dois países em rota de colisão fizessem uma exceção e se entendessem momentaneamente.