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Quando o "ilusionista" enfrentou “Pentes” e perderam os dois para o “homem-borracha”

Em 2000, Santana tentou derrubar Durão, Mendes meteu-se na luta e perderam ambos. O duelo, que era pessoal, foi feio. 20 anos depois, os dois vão testando as águas presidenciais. Haverá novo embate?

Não havia jeito de arrumar a casa. Cinco anos depois do fim do cavaquismo, os sociais-democratas continuavam órfãos de um líder forte que fosse capaz de devolver o partido ao caminho das vitórias. Fernando Nogueira, traído pelo tabu presidencial do criador, e Marcelo Rebelo Sousa, empurrado pelo divórcio com Paulo Portas, já se tinham tornado vítimas do apetite da máquina de triturar líderes em que se transformaria o PSD – seriam nove em 15 anos, até Pedro Passos Coelho chegar ao poder. Nos primeiros dias de 2000, Durão Barroso era o alvo a abater. Sucedera a Marcelo, perdera as legislativas de 1999 por números redondos e desesperava agora com as presidenciais. Muitos barões conspiravam nas sombras. E dois homens emergiam como adversários.

A 19 de janeiro de 2000, o “Público” titulava: “Freitas abala o PSD – Durão Barroso sem candidato e cercado por Santana e Portas”. O texto que alimentava a manchete do jornal era todo um tratado sobre política palaciana: “Durão Barroso não tem candidato presidencial e dificilmente aceitará o pacto proposto por Freitas do Amaral. Cavaco Silva continua a perseguir o delfim. Santana avançará com o nome de Freitas, mas boa parte do partido não canta ‘hossanas’ ao professor. Aparentemente, Pinto Balsemão desistiu, irritado com as hesitações do líder do PSD. Resta a solução de dizer ‘o candidato, naturalmente, sou eu’ ou pedir a Marcelo que, por favor, avance”.

O líder do PSD estava “cercado”. O mau resultado nas legislativas era motivo bastante para cortar a cabeça à liderança do partido, atiçavam os críticos. O psicodrama das presidenciais era só um pretexto. Além de Pedro Santana Lopes, havia outra figura a ser insistentemente apontada à liderança: Luís Marques Mendes, que, depois de se ter afirmado como figura do cavaquismo, tinha feito o seu próprio caminho como líder parlamentar de Marcelo Rebelo de Sousa. Mas estava longe de gozar da popularidade de que hoje goza. Era, para todos os efeitos, apenas um respeitável underdog. Para piorar a situação de Barroso, 20 anos antes de Pedro Nuno Santos ser notícia por regressar ao Parlamento para fazer sombra a António Costa, já Pedro Santana Lopes, vindo da Figueira da Foz para assumir o lugar de deputado, iniciava a prática dos regressos com grande estrondo.

“A sua entrada no plenário foi fotografada, falada e registada. Quando entrou no hemiciclo, correu as bancadas a apertar as mãos. (…) A meio da tarde, já era com um ar maçado que Pedro Santana Lopes aguentava a sessão. No corredor do PSD, uma aglomeração de jornalistas aguardava o presidente do partido. Durão saiu da sala do grupo parlamentar, mas ao mesmo tempo também saiu Santana do plenário. A confusão foi tão grande que os dois homens nem se viram”, escrevia o mesmo Público. A eventual disputa pela liderança do PSD já dominava todas as conversas. Se Santana mantinha o tabu, os jornais tratavam de especular sobre a candidatura de Mendes. Santana não perdoava e tentava tirar os adversários da toca com uma “declaração brutal”: “‘Toda a gente sabe que quem lançou o nome do dr. Marques Mendes é quem quer ser candidato, o prof. Marcelo Rebelo de Sousa’.”

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Marques Mendes não lhe perdoaria a afronta. Os jornais que acompanharam a guerra fratricida alinharam todos na tese: não fosse o “desdém” de Santana – “candidato qualquer um pode ser, mas, por exemplo, eu não me vou candidatar a ministro da Agricultura, nem a líder dos TSD”, diria Santana sobre o rival – e talvez Mendes não tivesse levado a candidatura até ao fim. “Se Pedro Santana Lopes quer passar a ser levado a sério a primeira coisa que tem de fazer é respeitar as pessoas”, devolver-lhe-ia Marques Mendes. Era o arranque daquela que viria a ser uma das mais duras campanhas internas da história do PSD. Durão Barroso ia tentar, de uma vez por todas, neutralizar os adversários que lhe atormentavam a vida. Os outros dois – Santana e Mendes – iam tentar decepar a liderança social-democrata.

Apesar de contemporâneos, a eleição de 2000 foi a primeira e única vez que Santana Lopes e Marques Mendes mediram forças. O duelo acabou por ser indireto dada a presença do verdadeiro favorito e líder em funções, Durão Barroso. Mesmo assim, dessa vez, Santana superou Marques Mendes por mais do dobro dos votos. Hoje, no PSD, há muita gente que vai assumindo como natural que haja uma ou mais candidaturas presidenciais a nascer a partir do universo PSD. A acontecer, seria o segundo embate entre Santana e Mendes. E, desta vez, um para um, pelo lugar de candidato presidencial da direita

“Finalmente, o azeite veio de cima”

Com Durão Barroso a espernear com a questão presidencial, Santana Lopes antecipa-se e faz chegar à sede do partido, em Lisboa, as três mil assinaturas necessárias para convocar um congresso extraordinário (mas não-eletivo). Barroso vai aos arames, diz-se sem “paciência para aturar certas situações”, fala em “terrorismo político” e queixa-se dos ataques feitos “às escuras e às claras”. Decide exigir uma clarificação e dispõe-se a ir a votos. Se Santana era o rosto público das críticas a Barroso, Mendes era o tal que manobrava nas sombras. Até que a 21 de janeiro surgiam finalmente as notícias.

“Marques Mendes avança”, titulava o Público. “Mendes sai da sombra”, escrevia o Expresso. O semanário Independente, ainda sem a confirmação formal, antecipava as motivações do novo candidato: “Mendes, sabe quem o conhece, não avançará sem ponderar todos os prós e os contras e,  mais ainda, sem sentir ventos a seu favor. A luta fratricida entre Durão e Santana (…) pode capitalizar a favor de Mendes o cansaço de um partido que ama o combate político, mas detesta eternizar-se fora do poder”.

Mendes, claro, jogaria tudo nesta ideia de ser uma terceira via, o adulto na sala, o único capaz de apartar dois irmãos desavindos – Durão e Santana – e devolver dignidade ao PSD. “É insustentável que o maior partido da oposição esteja todos os dias a perder a credibilidade devido a uma guerra fratricida e pessoal”, apresentava-se Mendes.

Contam os jornais que terá sido pressionado a avançar por figuras como Azevedo Soares, Torres Pereira e um tal de Pedro Passos Coelho, agora já na qualidade de antigo líder da JSD e respeitado quadro do partido, que não pouparia elogios a Mendes, um “homem combativo” que trazia “muita esperança” – Passos seria mesmo o candidato de Mendes ao cargo de secretário-geral do PSD. Miguel Relvas, o seu braço direito de sempre, estava do outro lado da barricada, junto do líder em funções.

Barroso reagiria ao avanço de Mendes vitimizando-se e provocando os adversários. “É difícil conduzir um automóvel em que tem de se passar o tempo todo a olhar para os retrovisores. [Mas] venham mais. Quantos mais melhor. Aliás, há outros que eu gostaria que se apresentassem, que em vez de continuarem a conspirar às escuras o fizessem às claras”, desafiava o então líder social-democrata. Pedro Santana Lopes, ultrapassado nos timmings por Mendes, agarrava-se à ironia para comentar o avanço do rival. “Estou muito feliz. Finalmente, o azeite veio de cima.”

"[Marques Mendes] percebeu que não tinha muito a ver com Santana e Durão”, escrevia o Independente. “Estes faziam capelinha e não escondiam a cumplicidade de muitos anos. ‘Elitistas, sulistas e liberais’, olhavam Mendes com ironia, troçavam dos fatos às riscas e da pose do jovem nortenho.” Mas Mendes continuaria a insuflar a partir do centro nevrálgico do cavaquismo e chegaria a ministro-adjunto do primeiro-ministro. Santana e Durão têm destinos diferentes

Belém. As primárias da direita estão escritas nas estrelas?

Mais de 20 anos depois, Luís Marques Mendes voltou a antecipar-se a Pedro Santana Lopes e anunciou a proto-candidatura presidencial antes do autarca da Figueira da Foz, que há muito vem dando sinais de querer entrar na corrida à sucessão de Marcelo Rebelo de Sousa. E, mais de 20 anos depois, Pedro Santana Lopes voltou a recorrer às metáforas gastronómicas para se referir ao avanço do rival: “[A candidatura de Marques Mendes] é  como a pescada: antes de o ser já o era”. Sem a acidez de outros tempos, o mesmo Santana, perfeitamente conhecedor das ambições presidenciais de Mendes, não deixou de defender o quão melhor é do que o seu putativo adversário. “Não vejo ninguém com melhor currículo do que eu.”

Mas muita coisa mudou desde os longínquos primeiros dias de 2000. Desde logo, a forma como eram vistos os protagonistas. Pedro Santana Lopes, Luís Marques Mendes e Durão Barroso ainda eram retratados como “jovens turcos” (Independente) do cavaquismo – tal como Pedro Nuno Santos e companhia são hoje tratados no PS de António Costa, apesar de já não serem nem assim tão jovens, nem assim tão turcos.

Passaram-se quase duas décadas. Santana foi presidente da Câmara Municipal de Lisboa, líder do PSD e primeiro-ministro (graças ao êxodo europeu de Durão) de um governo que durou apenas cinco meses e teve momentos delirantes. Mas nunca desistiu. Perdeu duas eleições internas (2008 e 2018), passou pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, fundou finalmente um partido rival (que falhou) e conquistou, de novo, a Câmara da Figueira da Foz, numa reencarnação que muitos julgavam impossível.

Luís Marques Mendes teve um percurso diferente. Depois de tentar uma primeira vez em 2000, chegou finalmente à liderança do PSD ante a derrocada do “governo dos cinco meses”, precisamente para romper com a imagem deixada pelo santanismo – Santana nunca lhe perdoaria as críticas. As coisas também não lhe correram nada bem. Perdido como líder de oposição de um maioritário José Sócrates, perturbado pelos críticos e perseguido pelos barões que deixou de fora das autárquicas (Isaltino Morais, Valentim Loureiro, por questões judiciais, ou o próprio Santana, por escolha política), acabaria por perder a liderança para Luís Filipe Menezes, numa das disputas internas mais sangrentas de sempre, que teve direito a  subornos, caça de votos e até pirataria informática.

Depois disso, Marques Mendes afastou-se da vida política ativa, afirmou-se no comentário televisivo, primeiro na sombra de Marcelo Rebelo de Sousa (na então TVI24) e depois como seu sucessor natural, com horário nobre e em canal aberto na SIC. A sua influência é inegável: alimenta fontes, dá notícias em direto, molda acontecimentos e cria factos políticos num espaço com mais de 900 mil espectadores.

Apesar de contemporâneos, a eleição de 2000 foi a primeira e única vez que os dois mediram forças. O duelo acabou por ser indireto dada a presença do verdadeiro favorito e líder em funções, Durão Barroso, que derrotou ambos por mais de 50% dos votos, depois de três dias muito tensos. Mesmo assim, dessa vez, Santana superou Mendes por mais do dobro dos votos, 33,6% contra 16,1%. Em 2023, quando ambos vão testando as águas de uma eventual sucessão de Marcelo Rebelo de Sousa, os papéis parecem ter-se invertido: independentemente das oscilações, Mendes surge invariavelmente à frente de Santana nas sondagens.

Acontece que depois de todos os outros (Pedro Passos Coelho, Durão Barroso ou Rui Rio) terem dado sinais de que não estariam interessados na corrida, a tentativa de Mendes em condicionar a corrida presidencial à direita não atemorizou Santana, que continua sem excluir uma eventual candidatura a Belém. No PSD, há muita gente que vai assumindo como natural (ainda que não necessariamente desejável) que haja uma ou mais candidaturas presidenciais a nascer a partir do universo social-democrata.

Recentemente, em entrevista ao Observador, Luís Filipe Menezes – que desempenhou um papel importante nesse congresso de 2000 –, lançou os dados para cima da mesa. “Santana ou Mendes? Não me repugna rigorosamente nada, aliás tenho uma formação bastante francófona, de que nos diferentes espectros políticos, numa primeira volta, existam dois ou três candidatos e que depois haja uma solidariedade clara à volta daquele que obtenha melhor votação”, relativizou. A acontecer, seria o segundo embate entre Santana e Mendes. E, desta vez, um para um, pelo lugar de candidato presidencial da direita.

No estertor do cavaquismo, em 1995, Mendes apoia Fernando Nogueira, Durão vai a votos e Santana Lopes, que já aí ameaçava sair do PSD para formar um partido com o amigo Paulo Portas, aparece no congresso do Coliseu dos Recreios “apaixonado, só [no partido], apesar de [ter] um país rendido aos encantos de uma voz que zurzia tudo e todos”. Mendes (via Nogueira) ganha, Durão, que disputa a eleição taco a taco, afirma-se como nome inevitável para o futuro e Santana consolida-se como um dos quadros mais carismáticos do PSD

Quando Santana e Barroso troçavam dos fatos às riscas de Mendes

A rivalidade entre os dois vem de trás e tem muito de pessoal. A 4 de fevereiro de 2000, o semanário Independente traçava o perfil cruzado de Durão Barroso, Santana Lopes e Marques Mendes que ajudava a explicar a origem de tudo isto. “Os delfins de Cavaco odeiam-se”, assinava a batídissima jornalista de política Áurea Sampaio. O texto contava como os “três rapazes do 6.º andar da presidência do Conselho de Ministros” tinham chegado até ali, dos primeiros dias do cavaquismo até ao momento em que mediam forças pelo controlo do PSD.

Pedro Santana Lopes, que fizera a campanha de 1985 lado a lado com Cavaco Silva, foi convidado para ser secretário de Estado da Presidência nesse primeiro governo (1985-1987). É ele quem convence o futuro primeiro-ministro a desafiar um “aturdido” Durão Barroso, seu amigo desde os tempos da faculdade e relativamente afastado da vida interna do partido, a deixar os Estados Unidos, regressar a Portugal e integrar o executivo como secretário de Estado adjunto do ministro da Administração Interna.

Com Mendes, uma “‘jovem promessa’ que debutara para a política como assessor de Eurico de Melo no Governo Civil de Braga”, foi diferente. Membro da direção alargada de Cavaco Silva no PSD, “lidava tu cá e tu lá com o aparelho” social-democrata de Braga (desde sempre uma poderosa distrital do partido) e era bastante apreciado pelo então secretário-geral do PSD, Manuel Dias Loureiro. Partiu dele o primeiro telefonema para o convencer a integrar o governo. Mendes rejeitou. Dias Loureiro insistiu e marcou um encontro com o primeiro-ministro recém-eleito para o dia seguinte. Cavaco Silva formalizou o convite, Mendes rejeitou uma segunda vez e só à terceira tentativa acedeu integrar o executivo como secretário de Estado para a comunicação social.

“No 6.º andar da Gomes Teixeira [Marques Mendes] percebeu que não tinha muito a ver com Santana e Durão”, escrevia Áurea Sampaio. “Estes faziam capelinha e não escondiam a cumplicidade de muitos anos. ‘Elitistas, sulistas e liberais’, olhavam Mendes com ironia, troçavam dos fatos às riscas e da pose do jovem nortenho.” Mas Mendes continuaria a insuflar a partir do centro nevrálgico do cavaquismo e chegaria a ministro-adjunto do primeiro-ministro. Santana e Durão têm destinos diferentes: o primeiro chateia-se e perde a confiança de Cavaco, acaba fora do segundo governo e recebe um bilhete dourado para a Europa; Barroso vê-se promovido a ministro dos Negócios Estrangeiros, corta com Santana (por questões pessoais) e mantém uma distância higiénica em relação a Mendes.

No estertor do cavaquismo, em 1995, Mendes apoia Fernando Nogueira, Durão vai a votos e Santana Lopes, que já aí ameaçava sair do PSD para formar um partido com o amigo Paulo Portas, aparece no congresso do Coliseu dos Recreios “apaixonado, só [no partido], apesar de [ter] um país rendido aos encantos de uma voz que zurzia tudo e todos”. Como muitas vezes ao longo da sua vida política, ameaça avançar e retira-se. Mas cumpre o seu “papel favorito”, o de “um outsider truculento”. Ou o de enfant terrible do PSD. Mendes (via Nogueira) ganha, Durão, que disputa a eleição taco a taco, afirma-se como nome inevitável para o futuro e Santana consolida-se como um dos quadros mais carismáticos do PSD.

Seguiram-se meses alucinantes no PSD. Cavaco Silva, que, tal como António Costa hoje, manteve o tabu sobre se continuaria como líder do PSD para “limitar a luta de clãs“, tinha passado a tocha a Nogueira, mas mantinha-se a pairar como possível candidato à Presidência da República. Era o grande trunfo que Nogueira para as legislativas de 1995, mas Cavaco emite sinais contraditórios e dá a entender que não tem vontade de entrar na corrida.

O segundo tabu de Cavaco seria fatal para Nogueira, que perdeu as legislativas contra Guterres e nunca mais voltou à política. Vinte dias depois, Cavaco anunciou a candidatura às presidenciais de 1996 e Nogueira nunca lhe perdoou. Suceder-se-ia a era de Marcelo, que cumpriu a travessia do deserto da oposição mas saiu ainda antes de ir a votos em legislativas, tornando-se um parênteses na história do partido e de uma disputa que estava “escrita nas estrelas” (Santana dixit).

Em maio de 1999, no Congresso de Coimbra e na antecâmara das legislativas, Barroso conquista, sem qualquer oposição, um PSD em estado comatoso. Ao bom estilo da família social-democrata, o partido concedia-lhe a oportunidade de se estatelar ao comprido contra António Guterres nas eleições de outubro. Era um presente envenenado e Durão sabia disso. Nem um ano depois, e já com Santana e Mendes agarrados ao seu pescoço, o então líder social-democrata apontar-lhes-ia o dedo: “Saí de Coimbra com uma impressão algo amarga: ganhei contra quem? Ou não havia adversários ou estavam escondidos. Quero saber no fim deste Congresso quem ganha e quem perde”. Viseu, 25, 26 e 27 de fevereiro. Chegara o tempo de clarificar.

As crónicas daquele tempo não eram particularmente simpáticas para os sociais-democratas. “Reconheço que o PSD tem pelo menos este mérito de aproveitar os intervalos mortos da política para fazer congressos semestrais. As televisões e as rádios adoram os demagogos na tribuna, as conspirações de quarto de hotel, a barganha da compra das listas e a cena final dos abraços e dos hinos. É como o Benfica: não ganha campeonatos, mas consegue sempre ser notícia.” Mais de duas décadas depois, muito pouco mudou – a não ser objetivamente a capacidade de o Benfica ganhar campeonatos", escrevia Miguel Sousa Tavares

O “Homem-borracha”, o “Marques Pentes” e o “ilusionista” entram no Inatel

As crónicas daquele tempo não eram particularmente simpáticas para os sociais-democratas, que, mais uma vez e ao velho estilo do partido, iam lavando a roupa suja na praça pública. “De Mao a pior”, sentenciava o Independente, numa referência à origem política de Barroso. “O PSD está sem dono”, lamentava José Miguel Júdice. No Público, José Manuel Fernandes, então diretor e hoje publisher do Observador, provocava: “E porque não fechar o PSD?”.

Miguel Sousa Tavares, no mesmíssimo Público, era particularmente cáustico. “Reconheço que o PSD tem pelo menos este mérito de aproveitar os intervalos mortos da política para fazer congressos semestrais. As televisões e as rádios adoram os demagogos na tribuna, as entradas encenadas dos protagonistas, as conspirações de quarto de hotel, a barganha da compra das listas e a cena final dos abraços e dos hinos. É como o Benfica: não ganha campeonatos, mas consegue sempre ser notícia.” Mais de duas décadas depois, muito pouco mudou – a não ser objetivamente a capacidade de o Benfica ganhar campeonatos.

As análises aos candidatos também não eram muito agradáveis. “Santana representa bem o populismo mediático que tende a dominar a visão política atual. (…) Marques Mendes mergulha profundamente na tradição de patrocinato e clientelismo. (…) Resta Durão Barroso”, refletia José Pacheco Pereira, no Público. José António Saraiva, então diretor do Expresso e depois fundador do semanário Sol, alimentava mais uma crónica da “Política à Portuguesa”, desta vez sobre os “Três da Vida Airada” – o texto seria tão violento com Pedro Santana Lopes que foi o único dos três candidatos a recusar o pedido de entrevista do Expresso.

“Durão Barroso é o favorito. É certo que, para muita gente, ele constituiu uma desilusão. Não fala bem, não apresenta ideias e tem uma imagem difusa (…) Como líder partidário mostrou-se frouxo, quezilento e hesitante. (…) Mas é uma espécie de homem-borracha – a quem os ataques não fazem mossa nem deixam sequelas. (…) O ‘Contra Informação’ popularizou Marques Mendes mas também o diminuiu. Para o país, Marques Mendes é o miúdo que, sempre que abre a boca, leva pauladas na cabeça do professor Marcelo. Ora, os miúdos podem dizer coisas, acertadas, sensatas, brilhantes – mas não são levados a sério pelos adultos. Marques Mendes precisa, assim, de qualquer coisa que lhe dê o estatuto de ‘político adulto’. (…) Santana Lopes é um ilusionista (…) Falta-lhe um pensamento consequente, falta-lhe persistência, estabilidade emocional (…) é errático, impulsivo, inconstante. (…) Seria uma calamidade como líder e é inverosímil como primeiro-ministro. Como líder, deixaria o PSD em cacos quando saísse (muito provavelmente a meio do mandato). Como primeiro-ministro, levaria os portugueses a pensar seriamente em emigrar.”

Os barões do partido multiplicavam-se em declarações de apoio pelos jornais. Francisco Pinto Balsemão, assumido apoiante de Barroso, lamentava o “irreparável desgaste de energias”. “Durão Barroso é o melhor dos três candidatos. É o melhor líder do PSD”, concordava Dias Loureiro. Ferreira Leite, Pacheco Pereira ou Álvaro Barreto pediam estabilidade. Até Aníbal Cavaco Silva se metia ao barulho: “Um partido não pode mudar de líder com frequência. Os líderes devem cumprir os mandatos até ao fim”.

Duarte Lima, por sua vez, tecia loas a Pedro Santana Lopes, dono e senhor de um “carisma político” incomparável e aquele que mais claramente entende o país e que mais claramente o país entende”. Outros, como Ângelo Correia ou Jorge Bacelar Gouveia, seguiam-lhe o exemplo. Joaquim Ferreira do Amaral fazia rasgados elogios a Luís Marques Mendes, “uma das vozes que, mesmo nos tempos mais difíceis, da ilusão coletiva, mais se fizeram ouvir, mais denunciaram o que se passava e mais corajosamente e lucidamente anteciparam tudo aquilo que hoje já começa a ser evidente”. Passos Coelho, Barbosa de Melo, Silva Peneda e, ironia das ironias, Luís Filipe Menezes, que se tornaria seu arqui-inimigo dali a cinco anos, estavam com Mendes. Era neste estado que o PSD ia a votos para decidir o seu futuro.

Mendes não tinha assumidamente os talentos oratórios de Santana; nem especial vontade de malhar em Durão. Afirmara-se como terceira via e queria levar a estratégia até ao fim. “Não me considero uma pessoa extraordinária. Sou uma pessoa normal e acho que no partido há muitas pessoas extraordinárias. Mas eu estou um pouco cansado de pessoas extraordinárias a liderarem no partido e a perderem eleições"

“Um misto de Zandinga e Gabriel Alves”

Antes da instituição das eleições diretas no PSD, figura criada por Luís Marques Mendes, os congressos eram os verdadeiros palcos de disputa pela liderança do partido – hoje, servem apenas como consagração do líder eleito, espaço para o(s) derrotado(s) apelarem à unidade do partido e para os futuros candidatos a opositores se assumirem como sombras do presidente recém-eleito. Um longo e interminável bocejo, sobretudo se comparados com os congressos à moda antiga. E o congresso de Barroso, Santana e Mendes foi um congresso à moda antiga.

Os sociais-democratas chegavam a Viseu mergulhados até ao pescoço em pequenas e grandes tricas. As “golpadas” de Barroso (que tirou o tapete aos adversários numas tortuosas negociações sobre inerências e direito ao voto), os apelos emocionais de Santana Lopes (“Morte ou glória”), o drama do hotel de Marques Mendes (atrasou-se a reservar quartos e ficou a meia hora do pavilhão do Inatel, apesar de ter tentado de tudo para ficar no mesmo alojamento que os adversários), o reforço da cobertura da rede móvel (a EDP teve de acrescentar mais 300 amperes só para alimentar a instalação das quatro redes de televisão acreditadas e mesmo assim falhou)… tudo servia para divertir e muito os jornais.  Mas isso eram lateralidades. O tudo ou nada jogava-se em cima do palco.

E, no Inatel de Viseu, Durão joga tudo. “[Santana é] um candidato que, além de astrológico, a todos nos entusiasma com os seus comentários desportivos, o que quer com certeza dizer que teríamos um misto de Zandinga e Gabriel Alves”, atira o líder em funções. Um estouro de discurso que é recebido com gargalhas e vaias.  O choque é tal que, nos bastidores, figuras do barrosismo, como Miguel Relvas, José Luís Arnaut ou Nuno Morais Sarmento, ameaçam Durão e exigem que se modere ou ficaria sem partido. No Público, até Ilda, viúva de Zandinga, é metida ao barulho. “Ele não conheceu o Zandinga de lado nenhum e não precisa de abusar de um falecido para ganhar no congresso.”

Mas a intervenção de Durão teve o mérito de, pelo menos, acossar Santana. “Investindo-se do estatuto do homem providencial, que poderia conduzir o ‘povo laranja’ à terra prometida, o presidente da Câmara da Figueira da Foz subiu ao palco ao início da madrugada, para mostrar às bases que sabia ser o intérprete fiel da sua profunda desilusão em relação à liderança de Durão Barroso. Virando-se para o líder, tratando-o por tu, acusou: ‘A culpa não é nossa! Foste tu que foste uma desilusão para a grande maioria do eleitorado do PPD-PSD'”, narrava o Público. “O congresso irrompeu em vaias. Ouviram-se insultos, assobios, pateada. Um congressista berrou:  ‘Vai para casa, vai para a Figueira’. Apoiado apenas pelos seus, Santana perdeu o pé, e o presidente do congresso, o barrosista Dias Loureiro, foi lesto a rentabilizar as vaias. ‘Deixem o Pedro falar. Que diga o que tem a dizer porque é bom para o congresso e para o partido’, incitou, com voz macia.”

Atendendo ao incêndio provocado por Durão e Santana, Mendes é quase um soporífero. “Eram quase três da manhã e os congressistas bocejavam pelos corredores e tentavam manter-se despertos, rumando ao bar à procura de um café”, contava o Público, numa reportagem cujo título era especialmente bem conseguido: “A cigarra [Santana] e a formiga [Mendes]”.

Marques Mendes não tinha assumidamente os talentos oratórios de Santana; nem especial vontade de malhar em Durão. Afirmara-se como terceira via e queria levar a estratégia até ao fim. “‘Não me considero uma pessoa extraordinária. Sou uma pessoa normal e acho que no partido há muitas pessoas extraordinárias. Mas eu estou um pouco cansado de pessoas extraordinárias a liderarem no partido e a perderem eleições.’ Era o homem norma a pedir a sua oportunidade”, rematava o mesmo Público.

O congresso de 2000 ficou marcado pelo ataque de Durão a Santana, um “misto de Zandinga e Gabriel Alves". Os homens do líder (Arnaut, Relvas e Morais Sarmentos) exigiram que se moderasse ou perderia o partido. Santana respondeu-lhe à altura e também acabou vaiado. Um congressista berrou-lhe:  "‘Vai para casa, vai para a Figueira’"

Uma última oportunidade

Para todos os efeitos, Santana e Mendes partiam em desvantagem quando subiram ao palco. Durão Barroso tinha os delegados e o congresso do lado dele. Mas ainda havia gente a tentar tirar um coelho da cartola. O ataque contra Santana também se vira contra Durão, com muitos congressistas insatisfeitos com os termos do líder. Pedro Duarte, então líder da JSD, declara apoio ao autarca da Figueira da Foz, num verdadeiro volte-face. À noite, Luís Filipe Menezes chama Santana para conversar e tenta convencê-lo a fazer uma aliança com Mendes e a integrá-lo nas listas. Há uma hipótese de derrotar Durão. Santana admite pensar, sem “mostrar grande entusiasmo”. Mendes chama a equipa, ouve os seus conselheiros, e rejeita o convite para uma lista de união. Quer uma oportunidade de mostrar o que vale. A aliança não sai do papel.

Barroso deixa Viseu com 50,3% dos votos contra dois candidatos. Seria de esperar que convencesse os mais céticos. Mas não: Santana (sobretudo) e Mendes tinham feito estragos. “PSD balcanizado – Durão ganha o congresso, mas sai fragilizado de Viseu”, titulava o Público, falando em “vitória de Pirro”. Elogiava-se o “instinto de sobrevivência de Santana Lopes”, que “podia ter morrido politicamente” em Viseu e “saiu de lá na categoria de reserva da liderança da nação laranja”; e assinalava-se a conquista da “maioridade política” de Marques Mendes e a promoção à “categoria de ‘barão do PSD’”. Até Manuela Ferreira Leite (“ascendeu ao estatuto dos idolatrados”) e Luís Filipe Menezes (“desta vez não chorou, mas não perdeu a oportunidade de se pôr em bicos dos pés”) eram considerados figuras vencedoras — e a seu tempo foram de facto. Mas Barroso não; era, mesmo depois de Coimbra e Viseu, um líder a prazo.

Não foi. O tal psicodrama presidencial é resolvido com a escolha de Ferreira do Amaral como candidato – nem Freitas, nem Balsemão, nem Marcelo, nem Daniel Proença de Carvalho, que também chegou a ser apontado ao lugar. As autárquicas de 2001 viram o país do avesso. Pedro Santana Lopes, o mesmo que era um “misto de Zandinga e Gabriel Alves”, é instrumental nessa vitória, conquistando Lisboa para Durão. Guterres demite-se. Barroso, o mesmo que menos de três anos antes tinha perdido por mais de 10 pontos percentuais, vence Eduardo Ferro Rodrigues por 7. Ele, um dos maiores adversários da Aliança Democrática de Marcelo Rebelo de Sousa e Paulo Portas, coliga-se com o mesmíssimo Portas e forma governo – onde Marques Mendes ocupa a pasta dos Assuntos Parlamentares.

Aliás, os meses que se seguiram ao congresso de Coimbra são a prova provada de que, na política, o que hoje é verdade, amanhã é mentira. Depois acontece a saída de Barroso, que exige como condição para aceitar o cargo que Pedro Santana Lopes, pessoa que desfizera três anos antes em cima de um palco, o substituta no lugar de primeiro-ministro. Metade do partido não concorda e Luís Marques Mendes abandona o governo. O resto da história é conhecido. Dos três rapazes do “6.º andar da presidência do Conselho de Ministros”, só Durão Barroso teve um percurso político de efetivo sucesso ao mais alto nível. Em 2026, Santana e Mendes têm a última oportunidade de voar tão alto como Durão.

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