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Romance contemporâneo, banda-desenhada e um pouco de arquitetura: os livros que mais gostámos de ler em 2022

Os jornalistas e colaboradores da secção de Cultura do Observador passaram o ano em revista e escolheram os melhores livros que leram em 2022. Da ficção à não-ficção, há obras para todos os gostos.

    Índice

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Este ano não foi possível chegar a um consenso. As escolhas de 2022 dos jornalistas e colaboradores da secção de Cultura do Observador são tão diversificadas quanto a própria literatura: a lista dos melhores livros publicados no ano que agora termina inclui diferentes vozes, geografias, abordagens e conceitos, por vezes em verso, mas sobretudo em prosa. A ficção reina, mas a NÃO ficção também se encontra contemplada, com biografias, ensaios, arquitetura e fotografia.

Numa altura em que a guerra e as crises sociais e económicas são protagonistas, vale a pena pensar sobre aquilo que nos torna tão diferentes, mas tão iguais, um exercício em que a literatura — e as artes de uma maneira geral — pode e deve desempenhar um papel fundamental. As escolhas de 2022 são um convite a essa reflexão. São também a sugestão de um desejo: que 2023 seja um ano de encontros e não de desencontros.

Ana Bárbara Pedrosa

Mr. Loverman
Bernardine Evaristo (tradução de Miguel Romeira)
(Elsinore)

O sentido de humor ácido agarra qualquer um, e ali o temos em Barrington. Gentleman e bon vivant, é um machista à antiga, bem vestido, que cita Shakespeare a torto e a direito. Casado há 50 anos com Carmel, tem um amante quase desde que se lembra. Todo o romance é batalha interior: por um lado, parece impossível sair do armário; por outro, parece impensável lá ficar. Aos 74 anos, já parece farto daquela vida, mas ainda não encontrou a fórmula para ter outra abertamente. O traço de Bernardine Evaristo é firme e, em meia dúzia de parágrafos, a autora já dá o âmago do livro. Para quem lê, é impossível que Barrington não seja gente a sério. Tem demasiadas contradições, falta-lhe uma certa capacidade de ver dentro o que até quem está fora vê.

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A Trilogia de Copenhaga
Tove Ditlevsen (Tradução de João Reis)
(Dom Quixote)

Ditlevsen é hoje considerada umas das vozes literárias mais importantes da literatura dinamarquesa do século passado. Neste livro, temos três textos que olham para a sua vida: Infância conta a história de uma criança que queria ser poeta; Juventude pega na descoberta do trabalho e do sexo; Relações tóxicas conta a vida adulta de quem se meteu no trilho errado e se perdeu num vício. A escrita de Ditlevsen é simples, e com simplicidade dá para se ver em pleno as camadas profundas da vida. O tom é seco, incisivo, dá o que quer dar. O leitor, sem dificuldades, mete-se dentro de outra cabeça, vê por outros olhos. Olhando para a própria vida, a autora, em vez de pegar nos pontos-chaves da vida, pega nas emoções-chave. Ditlevsen não precisou de floreados para ser bruta.

Oh, William
Elizabeth Strout (tradução de Tânia Ganho)
(Alfaguara)

É o regresso de Lucy Barton, protagonista de romances anteriores. A extensão das personagens, num ponto em que a história já parece estar fechada, já faz parte do estilo de Strout. Aqui, temos Lucy já com a vida bem avançada, e a figura de William, o seu primeiro marido, no centro, numa altura em que Lucy fica viúva do segundo. Partindo de uma mistura entre rememoração e cogitação, a autora alcança o impacto através da crueza da prosa. O leitor nunca se apanha muito tempo sozinho, tem quase sempre gente à frente. Como não há contemplações por parte da autora, o leitor leva com a ação em cima, cabendo-lhe fazer sentido do que vê. Um dos grandes trunfos de Strout é mesmo esse: explora a caracterização e não perde tempo a explicá-la.

Bábi Iar
Anatóli Kuznetsov (tradução de Jorge Rosa)
(Livros do Brasil)

É um documento, mas tem ar de romance. A partir da memória da infância, Kuznetsov mostra o massacre de Bábi Iar, uma ravina em Kiev. A vida que ali se levava levou um abalo sísmico, já que o lugar foi palco de um dos maiores massacres de judeus do leste. Sem artifícios, o autor relata um dos maiores assassinatos em massa do Holocausto. O livro tem mais peso sabendo o leitor o que se passou a seguir, ou até o que se passava então, o que contrasta com o cinzentismo em que as vítimas viviam: ao serem chamados, os judeus julgavam que era possível, chegando à ravina, apanharem comboios para irem para a Palestina. Kuznetsov usou um olho clínico, aliando-o a técnicas literárias. Ao invés do registo frio da História, reduz-se a distância entre autor e vida, mostrando-se a vivência de um massacre que não se esquece.

A Mais Secreta Memória dos Homens
Mohamed Mbougar Sarr (tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra)
Quetzal

É uma mistura entre viagem interior, através de um interior alheio, e um ensaio sobre literatura. Ao seguirmos Diégane Latyr Fayer, jovem senegalês aspirante a escritor, somos escritores com ele. Ele vagueia por Paris e nós também. Ele pensa no papel dos autores africanos na produção francófona e, ao ouvi-lo, dialogamos com ele. É uma espécie de epopeia geográfica, mas, mais do que isso, olha-se para a tradição literária para se pensar no que é a literatura para alguém que, pegando nela, lhe quer acrescentar um livro, sendo seu herdeiro e seu agente. Nota-se, em tudo o que se lê, um exímio amor à literatura e, por intelectualizado que seja, que o é, é emoção em bruto.

As escolhas de Ana Bárbara Pedrosa

Carlos Maria Bobone

Viti, Vini, Vici
Thomaz Vieira da Cruz
(Edição do Autor)

A ideia é surpreendente e o livro não lhe fica atrás. O autor chama-lhe, com justiça, um “romance técnico”: um tratado sobre viticultura e enofilia, misturado com uma história cultural do vinho e pequenas histórias de vários tipos. Entre a enciclopédia e a ficção, entre o Atlas do Corpo e da Imaginação e o Danúbio de Magris, é um livro bem curioso.

A Arquitectura dos Portugueses em Marrocos
Pedro Dias
(Caminhos Romanos)

Vinte anos depois da primeira edição, é reeditado este livro fundamental para conhecer a presença portuguesa no Norte de África. Do estudo da tomada e da perda de praças às relações luso-magrebinas, este livro junta a precisão técnica e o pormenor descritivo a uma contextualização histórica muito elucidativa.

Orgulhosamente Sós
Bernardo Futscher Pereira
(Dom Quixote)

O livro que continua a série de Futscher Pereira sobre a diplomacia no Estado Novo é desta vez dedicado ao modo como a diplomacia portuguesa procurou defender a sua posição a respeito do problema ultramarino. Mostra a multiplicidade de palcos e estratégias a que se dedicou a diplomacia de Salazar, num tempo em que Portugal esteve no centro das atenções da agenda internacional.

1822 – Das Américas Portuguesas ao Brasil
Roberta Stumpf e Nuno Gonçalo Monteiro
(Casa das Letras)

Esta obra reúne uma série de ensaios de historiadores portugueses e brasileiros sobre o momento histórico em que Portugal e Brasil se separaram politicamente. É interessante porque explora os dois lados do problema – não “trauma” que a perda do Brasil causou na organização financeira e política portuguesa, mas também os esforços de um Império recém-formado para construir o seu aparelho político e social independente.

As escolhas de Carlos Maria Bonone

Cláudia Marques Santos

O Outro Nome. Septologia I-II
Jon Fosse (tradução de Liliete Martins)
(Cavalo de Ferro)

Um livro portentoso que consegue elevar a nossa condição de meros existentes a estádios vários de espiritualidade, quer seja através da forma (que usa a repetição enquanto criadora de sentidos ou a fluidez sintática que se estende por um mar de vírgulas), quer da tipificação das personagens, como se todas elas fossem uma variação do protagonista. Asle é um pintor, viúvo, que tem dificuldade em pintar um quadro muito específico: cruzar duas linhas em forma de cruz. Este é o primeiro de uma trilogia, a que o autor norueguês chamou de Septologia.

A Zona
Diogo Simões
(Pierre von Kleist)

Um álbum tão bom que se torna num clássico imediato da fotografia. Este primeiro livro de Diogo Simões traduz um olhar sobre a margem a sul do Tejo tão profundo, tão conhecedor da realidade, que traz à visibilidade as sensações mais íntimas daquelas pessoas e daqueles lugares retratados. Do rasto de vazio deixado pelo passado industrial da zona às respirações dadas a cada objeto ou pormenor, as narrativas aqui contadas têm o privilégio do tempo que lhes foi dedicado: 12 anos de trabalho.

Vejam Como Dançamos
Leïla Slimani (tradução de Tânia Ganho)
(Alfaguara)

A pena de Leïla Slimani é tão leve e fluida que nos faz percorrer a vida intergeracional de uma família com a sagacidade de quem está a viver aquela diáspora decorrida entre Marrocos e França. No seguimento do primeiro livro da trilogia, O País dos Outros, neste segundo volume a outrora jovem alsaciana que no final da II Guerra Mundial se apaixona e casa com um oficial marroquino a combater no exército francês, Mathilde, depara-se agora com o conservadorismo da vida no seio da sociedade rural – abastada – marroquina.

Como Poeira ao Vento
Leonardo Padura (tradução de Helena Pitta)
(Porto Editora)

O cubano Leonardo Padura faz-nos mergulhar nas estruturas profundas daquilo que é ser-se cubano, o que implica necessariamente um olhar sobre
os vetores da sua diáspora: o norte-americano e o europeu. Um grupo de amigos viu-se confrontado com a necessidade de emigrar depois de acontecer a revolução cubana. Uns ficaram, outros partiram. Dessa altura perduram alguns mistérios com que um jovem casal de ascendência cubana a viver nos arredores de Miami se vai confrontar.

O Olhar Diagonal das Coisas
Ana Luísa Amaral
(Assírio & Alvim)

A poeta morreu em agosto, esta edição datada de maio reúne os 17 livros que publicou, do primeiro Minha Senhora de Quê (1990) ao mais recente Mundo (2021). Para atentar da importância da obra desta poeta laureada com o prémio PEN de Ficção, prémio Vergílio Ferreira ou o prémio Rainha Sofia de Poesia Iberoamericana, esta frase no posfácio, da autoria da professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Maria Irene Ramalho: “A verdade é que qualquer novo poema, ou conjunto de poemas, altera o todo-em-curso. E todos os poemas exigem nova leitura”.

As escolhas de Cláudia Marques Santos

Guilherme P. Henriques

Mortal e Rosa
Francisco Umbral
(Tinta-da-China)

Através de um longo monólogo, o narrador conta a morte do filho a partir da descrição e análise de objetos, episódios e pensamentos a princípio alheios àquela tragédia. A ligação que é feita entre a observação do mundo exterior e o sentimento interior de perda é ao mesmo tempo digressiva e poética. Este romance de 1976, que agora ressurge em Portugal com notas e tradução de Carlos Vaz Marques, é um exemplo de como a boa literatura pode nascer da capacidade de associação: Francisco Umbral escreve sobre uma coisa escrevendo sobre outras coisas. E escreve maravilhosamente.

Nadar Num Lago à Chuva
George Saunders
(Relogio d’Água)

A partir da análise de contos de Tchékhov, Turgénev, Tólstoi e Gogol, George Saunders demonstra que o ato de leitura pode (e deve) ser tão ou mais criativo do que o ato de escrita. Em cada um dos textos, correspondentes aos seus ensinamentos na Universidade de Syracuse, o autor vai interpretando e desconstruindo os parágrafos dos contos, fazendo-o de forma menos académica do que apaixonada. George Saunders é meticuloso, pertinente e brilhante.

O Diabo
Gonçalo M. Tavares
(Bertrand)

Gonçalo M. Tavares regressa ao universo das Mitologias, desta vez com a construção de uma sociedade distópica controlada pelo diabo. Ao serviço de uma escrita adequadamente sucinta, quase oral, o narrador percorre um conjunto de episódios alegóricos que chocam e estimulam o pensamento, sobretudo sobre as várias dimensões do mal — a origem, o estabelecimento e a banalização. Simultaneamente preciso e abstrato, o autor prova, uma vez mais, que um murro no estômago pode valer muito a pena.

Melancolia em Tempos de Perturbação
Joke J. Hermsen
(Quetzal)

Com um equilíbrio primoroso entre a profundidade digressiva, o rigor científico e a simplificação do discurso, Joke J. Hermsen investiga o conceito de melancolia: recua à sua origem, estabelece as suas distinções (desde logo, da palavra depressão) e propõe uma nova abordagem. Numa época, como a nossa, cada vez mais obcecada pela felicidade, é fundamental haver quem defenda a melancolia como um estado necessário, natural, e espantosamente criativo.

Todos os Lugares São de Fala
Paulo Nogueira
(Guerra e Paz)

Um livro ideal para quem queira perceber as origens da cultura woke e de movimentos político-culturais por ela espoletados — como o “lugar de fala”. O autor expõe, sobre tudo isso, uma visão crítica e politicamente incorreta, centrando-se nas potenciais restrições que os tempos modernos podem estar a provocar à liberdade de expressão em geral e à arte em particular. Um livro contracorrente bem escrito, que merece atenção.

As escolhas de Guilherme P. Henriques

Joana Emídio Marques

Ensaios
Michel de Montaigne
(E-Primatur)

Com um atraso de séculos eis que os Ensaios de Montaigne, textos fundacionais da modernidade e do género “ensaio”, começam a ser publicados em Portugal. O gesto corajoso pertence à editora E-Primatur, que fez sair o primeiro volume de ensaios, estando os outros dois previstos para 2023 e 2024, respetivamente. Os textos do filósofo francês são um monumento de sabedoria, pensamento e humanismo. Tomando a sua experiência e a sua vida como ponto de partida para chegar ao âmago do ser humano, bebendo na herança dos estóicos, este livro é uma vitamina moral e ética para os espíritos que se inquietam e se questionam, para os que intuem que as respostas são difíceis, que tornar-se pessoa é o trabalho de uma vida. Contra a praga dos livros de auto-ajuda, eis um livro-desafio para aprender a viver.

Os Anormais
Michel Foucault
Edições 70

O ano que agora termina fica marcado pelo crescimento editorial do grupo Almedina e pelo reforço das Edições 70, que tantas alegrias já nos deram. Este ano a chancela continuou a apostar em força na publicação de filósofos fundamentais, como Nietzsche, Wittgenstein ou Foucault. Entre essas publicações saiu este ano a obra Os Anormais, de Michel Foucault, que se encontrava inédita em Portugal. Este livro, que reúne a lições que o autor deu no Collège de France, entre janeiro e março de 1975, aborda, mais uma vez, as questões do poder e do saber, neste caso a partir daquilo que eram/são considerados, desde o século XIX, os anormais, ou seja os loucos, os degenerados, os monstros, os incorrigíveis, os onanistas. Num tempo em que se fala tanto de saúde mental, em que se pretende colocar sob a capa de “doença” todos os comportamentos que perturbam as engrenagens do sistema, vale a pena voltar a Foucault para perceber que o que é classificado como “doença” é também uma questão da formação, pela via do poder, de um discurso que arruma, penaliza, considera “anormais” certos comportamentos humanos, discurso esse que aceitamos e integramos sem questionar.

As Malditas
Camilla Sosa Villada (tradução de Helena Pitta)
BCF

Não é uma obra-prima da literatura, não tem altos voos estilísticos, sintáticos, poéticos e, no entanto. é provavelmente o mais radical dos romances que se publicaram este ano. Radical não no tema nem na forma, mas na maneira como nos confronta com a violência e precariedade de tantas vidas que decorrem longe dos holofotes dos jornais, das televisões, das agendas políticas e jornalísticas e que passam por este mundo sob um sofrimento atroz. As Malditas (BCF editores) são, neste caso, as travestis que se prostituem num parque na cidade de Córdoba, na Argentina, mas poderiam ser os migrantes, os velhos, enfim, todos os incapacitados para viver segundo as regras impostas pela sociedade tecno-capitalista. Com pouquíssimas ferramentas, Sosa Villada consegue colocar-nos, impiedosamente, no lugar do outro; leva-nos a experimentar como um corpo, que não se reconhece na forma que tem, é abandonado às noites frias e violentas do parque Sarmiento, sob a total indiferença do mundo. Mas, mais do que questionar a forma como são tratadas as travestis, As Malditas dá-nos a exata medida das nossas vidas privilegiadas e da nossa própria indiferença face ao destino dos mais frágeis.

Vai, Carlos!
Carlos Drummond de Andrade
Tinta-da-China

“E vai ver as cidades do Egipto/ aprender com os que sabem muito”, escreveu Constantin Kavafis no poema “Ítaca”. Eis uma tarefa para a vida, que nos obriga a deixar de olhar para o próprio umbigo e a procurar os melhores entre os melhores para com eles aprender a ser, também, melhor. Por isso, é tão importante destacar esta iniciativa da Tinta-da-China de reunir alguma da obra do enorme poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade; é que ela permite mostrar aos leitores, poetas e candidatos a poetas e a escribas em geral, a dimensão que é preciso ter para se ser grande. Permite também dar a conhecer às novas gerações de leitores a poesia que tanta influência teve nos poetas portugueses dos anos 50 e 60, quando Drummond era o autor mais moderno que podiam ler. Drummond, que influenciou tanto Alexandre O’Neill como José Cardoso Pires, foi um “anjo torto” que brincava genialmente com a língua portuguesa, que a abriu a um mundo de experiências novas. Este Vai, Carlos! reúne os primeiros quatro livros do poeta, Alguma Poesia, Brejo das Almas, Sentimento do mundo e José. Este ano, a editora publicou também, na sua coleção de poesia, o livro Boitempo.

Os Poemas
Paul Celan (tradução de Maria Teresa Dias Furtado)
Assírio & Alvim

Quase trinta anos depois de ter sido publicado pela primeira vez em Portugal, num livro sombrio e cifrado, cheio de simbolismos obscuros e memórias dos campos de extermínio alemães, chamado Sete Rosas Mais Tarde (traduzido por João Barrento e Yvette Centeno e publicado na Cotovia), chega-nos finalmente a obra completa de Paul Celan, publicada pela Assírio & Alvim e traduzida por Maria Teresa Dias Furtado, num volume intitulado Poemas. Numa época em que a força das palavras se parece apagar face ao império da imagem, em que a poesia que faz sucesso é tendencialmente narrativa, quotidiana e literal, é quase suicidário publicar Celan, o poeta que vai ao lugar onde as palavras nascem, que reconhece luz onde o mundo só vê escuridão e falta de sentido. Só uma editora ancorada num grande grupo editorial nos pode dar um objeto de tal luxo. E, embora esta tradução não acentue tanto a estranheza da voz poética de Celan, como a de Barrento e Centeno, não deixa de merecer ser celebrada. Também este ano a Relógio d’Água publicou A Morte é uma Flor e Arte Poética do poeta judeu, que fundiu a sua herança linguística, imagética e cultural judaica com a língua alemã, uma união que procurava uma redenção que nunca (lhe) chegou.

As escolhas de Joana Emídio Marques

José Carlos Fernandes

Fome Vermelha: A guerra de Stalin contra a Ucrânia
Anne Applebaum
(Bertrand)

Num ano em que a atualidade foi dominada pela invasão da Ucrânia pela Rússia, chegou a Portugal um livro publicado originalmente em 2017 por uma das mais abalizadas e perspicazes especialistas na história da Rússia/URSS e da Europa de Leste no século XX e que tem o efeito de revelar afinidades entre as motivações e os métodos de Putin em 2022 e os de Stalin em 1932.

O Regresso de um Rei: A Batalha pelo Afeganistão
William Dalrymple
(D. Quixote)

Outro livro sobre um evento no passado – a desastrosa invasão britânica do Afeganistão em 1839 – que tem o poder de iluminar eventos recentes. Como os estadistas e generais leem pouco, ou não tiram do que leem as conclusões que se impõem, em 2021 o mundo assistiu, incrédulo, à atabalhoada e indigna retirada americana do Afeganistão (depois de, em 1989, os soviéticos terem passado por humilhação similar).

Trabalhos de Merda: Uma Teoria
David Graeber
(Edições 70)

Uma pertinente e desafiadora reflexão sobre o trabalho no século XXI e sobre os fatores que levam a que os trabalhos realmente úteis à sociedade sejam sistematicamente mal remunerados, enquanto proliferam “trabalhos de treta” bem pagos e supérfluos. Um livro que mereceria leitura atenta pelos membros do Conselho Económico e Social, representantes sindicais, empresários e políticos.

Uma História Diferente do Mundo
Fernando Trías de Bes
(Guerra & Paz)

A promessa contida no título é cumprida: depois de se ler este livro não se verá o mundo e a sua conturbada história da mesma forma. Fazendo prova de extraordinário poder de síntese e invulgar clareza, Trías de Bes mostra como os instintos básicos que subjazem ao comportamento humano determinaram as grandes invenções conceptuais e a evolução socio-económica da civilização.

O logro da arte contemporânea
Gianfranco Sanguinetti
(Barco Bêbado)

O livrito tem apenas 34 páginas, mas é um formidável projétil, capaz de fazer desmoronar o edifício da arte contemporânea, uma estrutura pomposa e fátua, cujas fundações assentam em fraude intelectual, especulação infrene, capitalismo selvagem, venalidade, descaramento, vaidade, prosápia e pura imbecilidade. Para levar no bolso e ler trechos em voz alta durante vernissages de “artistas na berra” em galerias de arte e centros culturais.

As escolhas de José Carlos Fernandes

Rita Cipriano

Trust
Hernán Diaz
(Pan Macmillan)

O segundo romance do argentino-americano Hernán Diaz tem a bolsa de Nova Iorque e a crise financeira de 1929 como pano de fundo. A personagem principal é, ou pretende ser, um dos principais protagonistas dos marcantes acontecimentos financeiros do final dos anos 20. Mas, em Trust, nada é o que parece ser. Romance de estrutura complexa, composto por quatro narrativas distintas e quatro narradores distintos que mexem livremente com os conceitos de “verdade” e “mentira”, Trust questiona os mitos calcificados da cultura norte-americana ao dar voz aos protagonistas que a história apagou. As múltiplas vozes do romance contrastam fortemente com o silêncio que rodeia as personagens, isolados numa das cidades mais movimentadas do mundo. Escrito com uma mestria narrativa rara, Trust anuncia um grande, grande escritor. O romance será publicado no próximo ano em Portugal.

The Colony
Audrey Magee
(Faber & Faber)

Um linguista francês que abraçou como missão a preservação do irlandês e um pintor inglês em busca de inspiração encontram-se numa pequena ilha irlandesa, onde uma família luta por sobreviver mantendo intactas as antigas tradições e maneiras de viver. Aparentemente interessados nos destinos dos indivíduos com que se cruzam, tanto o linguista francês como o pintor inglês são egoístas. Estão apenas interessados na sua própria realização pessoal e na fama que atingirão assim que o trabalho realizado na ilha atravesse o mar que os separa do mundo. Os ilhéus são, para eles, apenas um meio para atingir um fim, tal como a Irlanda foi, em tempos, para o Reino Unido. A dependência e influência britânica é o ponto central do romance (a que o título faz referência direta), que aborda ainda questões como a insularidade, a língua, o que significa ser irlandês, o modo de vida tradicional versus o contemporâneo, o dever familiar versus a necessidade de afirmação pessoal e a complexidade das relações familiares, sociais e, enfim, humanas. Misturando prosa e poesia, inglês e irlandês, The Colony é uma história de identidades e como essas, as nossas e as dos outros, influenciam e moldam as vidas individuais de cada um.

Pequenas Coisas Como Estas
Claire Keegan (tradução de Inês Dias)
(Relógio d’Água)

A mais recente novela da irlandesa Claire Keegan fala de um episódio negro da história da Irlanda, as chamadas Lavandarias de Madalena, instituições religiosas que acolhiam “mulheres caídas”, prostitutas ou mulheres que tinham tido relações sexuais sem serem casadas. A história passa-se numa pequena localidade irlandesa, dominada pelas freiras de um convento que mantém uma destas lavandarias. O herói é uma figura improvável, um comerciante de carvão, filho de uma mãe solteira que foi acolhida pela patroa protestante, que, nas vésperas do Natal de 1985, questiona a sua própria existência ao descobrir o que passa no interior do convento local. Uma história trágica, mas bela, Pequenas Coisas Como Estas é uma denúncia da hipocrisia da sociedade irlandesa e um hino aos pequenos heróis anónimos que, com pequenos gestos de rebeldia, conseguem insuflar esperança nos lugares onde aparentemente não existe.

O Santo Ilusionista
Cláudia Andrade
(Elsinore)

O novo romance de Cláudia Andrade acompanha as viagens do Santo Ilusionista, um vagabundo sem nome que atravessa a paisagem de um possível Portugal rural em busca e em fuga de um passado que o perturba e engana. Incapaz de se fixar num só sítio, vagueia sem eira nem beira, encontrando-se com personagens singulares e paisagens belas e transcendentes, mergulhando em aventuras surreais e assumindo diferentes papéis como um ator numa companhia itinerante. Escrito com uma crueza e uma negritude que são típicas de Cláudia Andrade, O Santo Ilusionista é o retrato de uma humanidade banal, que retoma a ideia, tão antiga quanto o próprio ser humano, de que este é um eterno viajante (homo viator), em busca, desde o nascimento até à morte, de um lugar, um significado ou uma vida. Um livro brilhante.

O Fim do Mundo Não Terá Acontecido
Patrik Ouředník (tradução de Júlio Henriques)
(Antígona)

O Fim do Mundo Não Terá Acontecido, do escritor checo subversivo Patrik Ouředník descreve de forma fragmentária e livre a vida e morte do tradutor francês Gaspard Boisvert, ex-conselheiro do “presidente americano mais estúpido da história do país” e possível bisneto de Adolf (Hitler), o Boche. A história quase-absurda de Boisvert serve a Ouředník para concluir que o fim do mundo, há muito anunciado, já aconteceu, porque, o mundo tal como está, não avança para lado nenhum. Apenas ninguém deu por isso. Irónico e mordaz, O Fim do Mundo Não Terá Acontecido é uma constatação bem humorada do absurdo da humanidade e da estupidez do ser humano, que convida a uma reflexão sobre aquilo que nos rodeia.

Susan Sontag — Vida e Obra
Benjamin Moser (tradução de José Geraldo Couto)
(Objectiva)

A biografia de Susan Sontag escrita por Benjamin Moser é o mais completo trabalho biográfico sobre a escritora e ativista norte-americana e provavelmente a sua biografia definitiva. Para a escrever, Moser teve acesso total ao Arquivo Sontag e a pessoas que conheceram e privaram de perto com a pensadora, uma personalidade polémica, contraditória e complexa, adorada e odiada pelos seus contemporâneos, e a representação máxima de uma época única na história dos Estados Unidos da América, que acompanha neste livro a vida e a obra de Sontag, exploradas ao pormenor com uma riqueza avassaladora.

As escolhas de Rita Cipriano

Susana Romana

A Bomba, vol. I e II
Didier Alcante, LF Bollée e Rodier (tradução de Isabel Lopes)
(Gradiva)

Publicado originalmente num só volume, a premiada novela gráfica A Bomba chegou este ano ao mercado português em dois tomos. O narrador desta História da bomba atómica que viria a mudar o mundo para sempre é o próprio urânio (até menciona onde e quando foi criado, e descreve a sua descoberta no século XVIII), iniciando-se o relato no entre-guerras mundiais, quando alguns cientistas descobrem o potencial destrutivo desta misteriosa fonte de energia. Além de descrever o processo investigativo das três potencias (USA, Alemanha e URSS), envolve também a vida comum de uma família em Hiroshima, da qual o fim será aquele que calculamos. Uma obra angustiante mas de grande brio histórico e narrativo, pautada por ótimas personagens (reais), com destaque para o militar Leslei Groves, coordenador de toda a logística associada à construção e investigação da bomba, uma espécie de Gouveia e Melo — mas mais bruto e menos presidenciável.

O Acontecimento 
Annie Ernaux (tradução de Maria Etelvina Santos)
(Livros do Brasil)

Nem sempre a chancela do Nobel da Literatura se transfere exatamente em leitores. Alguns são fenómenos da crítica especializada (e/ou da geopolítica dos galardões), mas ficam por aí, no hermético mundo dos galardões. Outros ultrapassam aquela corrida às livrarias logo pós anúncio de Estocolmo e permanecem de facto na nossa vida e nas prateleiras das nossas casas. Ernaux é um desses casos, uma autora com uma voz muito própria mas muito acessível, sem deixar de ser profundamente carnal. A autora francesa é uma das grandes mestres da descrição crua e humana, dos relatos na primeira pessoa que não interessa ao certo quão autobiográficos são. O Acontecimento é, talvez, o melhor livro já escrito sobre a complexa temática do aborto, mais concretamente do aborto ilegal (como era na Paris de 1963). O tomo é uma reflexão à posteriori, décadas depois, menos de 100 páginas que deixam um impacto profundo em quem as lê.

Les Portugais
Oliver Afonso (guião) e Chico (ilustrações)
(Edição Ala dos Livros)

Desde a mala de cartão de Linda de Suza que Portugal — e as suas artes e entretenimento – se debruça pouco sobre o grande êxodo migratório de portugueses para França (particularmente Paris e arredores) nos anos 60 e 70, fugindo da ditadura e da Guerra Colonial. Os nossos emigrantes servem apenas de pano de fundo a piadas algo boçais quando chegamos a Agosto e estes regressam às suas terras natais. Les Portugais não é uma biografia, mas é inspirado na história do pai de autor, Olivier Afonso (que já veio a nascer em França, em 1975), e retrata o percurso de muitos portugueses a tentar a sorte além fronteiras. Mário, de 18 anos, foge na bagageira de um carro. Conhece o compatriota Nel e juntos vão tentar uma nova vida, num bairro de lata nos arrabaldes da capital francesa. Les Portugais foi alvo de uma exposição no Amadora BD deste ano e é um livro muito necessário, num caminho curiosamente pouco trilhado.

A Pediatra
Andréa del Fuego
(Companhia das Letras)

Quem tem filhos saberá o quanto está em voga a trend da “maternidade real”. Das redes sociais à publicidade, estamos na era de assumir que ter filhos nem sempre é um mar de rosas. A Pediatra vai, lateralmente, um pouco mais longe nesta tendência e apresenta-nos Cecília, uma pediatra com zero vontade de ter filhos e que detesta crianças e despreza profundamente os paizinhos delas. Narrado na primeira pessoa, a pragmática Cecília encara as crianças como se fossem coisas, pequenos eletrodomésticos a precisar de serem reparados, sem qualquer ligação emocional. Mas tudo poderá mudar graças ao filho do seu amante. O ritmo do livro condiz com Santa Maria em hora de ponta e lê-se num sopro. A brasileira Andréa del Fuego ganhou o Prémio Saramago em 2010 e cimenta-se aqui como uma das vozes mais frescas da escrita em português.

Crying In H Mart
Michelle Zauner
(Pan Macmillan)

É, sem dúvida, um dos livros mais tristes do ano, mas também um dos mais crus e imperdíveis. A norte-americana Michelle Zauner (também conhecida pelo projeto musical Japanese Breakfast) faz o relato autobiográfico da doença e morte da mãe, uma mulher sul coreana com quem tem uma relação tensa. Mas aqui acresce um elemento essencial às memórias: o dos cheiros e sabores da culinária da Coreia do Sul, que a autora interliga com as narrações da sua infância, adolescência e vida adulta. Tradução urgente para português precisa-se.

As escolhas de Susana Romana

Vasco Rosa

J. H. Andresen. A família, a empresa e o tempo (1841-1942)
Gaspar Martins Pereira
Edições Afrontamento

Biografia do dinamarquês nascido na ilha de Föhr Jan Hinrich Andersen (1826-1894), bisavô de Sophia, e da empresa que por três gerações levou o seu nome, marcando a cidade do Porto e o Douro vinhateiro. Crónica instigante de como estrangeiros fixados entre nós, com outra mentalidade, podem ajudar a alavancar o nosso futuro. Assunto premente e atual.

«O Mais Sacana Possível». A revista «Almanaque» (1959-1961)
António Araújo
Tinta-da-China

Idolatrada pelos aficionados do design gráfico, a revista tem aqui — e pela primeira vez — uma abordagem de história cultural que é também, ou sobretudo, o retrato de uma geração complexa, de figuras fortes e carismáticas, em relevante contextualização política e social. A referência à K de Miguel Esteves Cardoso parece pertinente. Faltava fazer isto e António Araújo, atento, informado, generoso como poucos, saiu-se muito bem. Espero que ganhe um prémio!

A Quinta de Palmyra
Ramón Gómez de la Serna (tradução de Joana Morais Varela)
V.S. Editor

Livro quase centenário do enorme Ramón Goméz de la Serna, incompreensivelmente pela primeira vez publicado em Portugal e com uma maravilhosa tradução de Joana Morais Varela, finalmente levada a prelos. E, para mais, na chancela V.S., reativada e com livros sempre bem escolhidos, como se ela própria adotasse a divisa no portão da quinta do Estoril: “Segue o teu primeiro impulso sem deixar passar a hora” (pp. 89-90). Um glorioso acontecimento editorial que não merece passar despercebido.

Arquitetura Branca. Os sanatórios para a Tuberculose em Portugal
José Avelãs Nunes
By the Book

Tese de doutoramento passada a livro bastante ilustrado, que faz a história da resposta portuguesa a um dos mais devastadores tormentos pandémicos, como a variedade geográfica e estilística dos edifícios construídos (ou adaptados) bem demonstra, arquitetura e progresso da medicina seguindo a par e passo, ou um tanto desalinhados, ao longo de décadas. A ruína ou reabilitação de algumas destas fabulosas construções (Paredes de Coura, Caramulo, Penhas da Saúde, etc.) também é documentada.

A Obscena Senhora D e outras histórias
Hilda Hilst
Companhia das Letras

Prosas selvagens duma grande escritora brasileira sem meias-tintas. Que bom!

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