É certo e sabido que o mundo não é o que era. Mas e se o futuro também já não fosse? Patrik Ouředník acredita que o mundo deu tantas voltas que já não é possível imaginar o que aí vem nos moldes de antigamente, sejam eles pessimistas ou otimistas. Estes estão gastos, ultrapassados. Todas as teorias estão obsoletas e, como tal, é preciso olhar para as coisas com frontalidade: “Isto vai acabar mal”. Em que é que esse “mal” se concretizará é uma questão em relação à qual os principais observadores ainda não conseguiram concordar, mas há pelo menos um ponto em que “todas as pessoas dotadas de um certo sentido das realidades” estão totalmente de acordo: o que era até agora “inconcebível”, aconteceu — “o embrutecimento (…) da Humanidade”.

Para o escritor checo, estas duas realidades estão inevitável e tragicamente ligadas — o embrutecimento da humanidade levou ao fim dessa mesma humanidade. Ou melhor: explica o fim da humanidade. Porque, para o autor de Europeana. Uma Breve História do Século XX, o fim do mundo já aconteceu — só que ninguém deu por isso. “O fim do mundo é não haver mais nada depois. O fim de um mundo é a aurora de um mundo novo. Isto mexe, avança, compreende? Tudo avança”, explica o editor do narrador de O Fim do Mundo Não Terá Acontecido, livro originalmente editado em 2017, em França, e agora disponibilizado em Portugal pela editora Antígona. O problema é que o mundo deixou de avançar — esgotou-se –, o que significa que só pode ter acabado.


Título: O Fim do Mundo Não Terá Acontecido
Autor: Patrik Ouředník
Tradutor: Júlio Henriques
Editora: Antígona
Páginas: 176
Preço: 15€

A constatação desse fim é relatada de forma fragmentária e livre por Ouředník em O Fim do Mundo Não Terá Acontecido a partir da história quase-absurda do tradutor francês Gaspard Boisvert. Gaspard nasceu a 13 de fevereiro de 1955, no dia do décimo aniversário dos bombardeamentos de Dresden. A coincidência não seria mais do que isso mesmo — uma mera coincidência — se não pairasse sobre o francês a sombra de um antigo inimigo da Europa — Adolf Hitler, seu possível bisavó. Uma complexa rede de contactos pessoais e íntimos explica a suspeita, mas não a esclarece. Talvez por isso Gaspard não perdesse muito tempo com isso — o eventual grau de parentesco que o une a Hitler não passava de um pormenor biográfico, de uma ironia, no meio de tantas outras que enchem a vida — até que, no final da vida, se abateu sobre o tradutor uma profunda depressão que o levou a tentar encontrar, sem sucesso, o pai biológico.

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São também os contactos pessoais que levaram Gaspard aos Estados Unidos da América, onde assumiu o cargo de conselheiro do “presidente americano mais estúpido da história do país”. “Gaspard não era mais estúpido do que quaisquer outros”, mas tinha uma atitude de complacência perante a vida (culpa da sua educação, explica o narrador) que o levava a fazer muito pouco em relação à estupidez que o rodeava. Isto porque “tinha o dom, ou a fraqueza, de às vezes fazer abstração das suas certezas; e então, durante umas horas, durante um dia, apoderava-se da sua pessoa um prudente otimismo”. No final da vida, este sumiu-se por completo, dando lugar a um desespero que nem o Prozac era capaz de aplacar. Até que, amnésico e cheirando ao tabaco que comprava no mercado negro, após sido interdito por causa dos seus malefícios para a saúde, teve uma vertigem e caiu da janela do hotel onde se tinha abeirado para fumar clandestinamente um último e fatal cigarro. Ficou empalado nas pontas do gradeamento.

Como é típico do escritor checo, a história de Gaspard vai sendo intercalada por estatísticas, curiosidades e anedotas, desafiando géneros e construindo uma narrativa atípica que serve para salientar a estupidez em que o mundo caiu. Nos pequenos capítulos que compõem O Fim do Mundo Não Terá Acontecido, Ouředník aborda de forma singular temas históricos e atuais — como os segredos de família, as guerras, a religião, os nacionalismos, as alterações climáticas, o vegetarianismo, as doenças do século XXI e as campanhas anti-tabágicas –, apresentando um retrato absurdo da humanidade, no qual o acumular de conhecimento e inteligência conduziu a um movimento contrário: “O abuso de inteligência impede que se compreenda a estupidez e, por conseguinte, que a ela se possa resistir. Deste modo, a partir de um certo grau, a inteligência torna-se suficientemente estúpida para considerar a estupidez tão inteligente como ela própria”.

O que Ouředník nos diz subversivamente e inteligentemente é que nunca soubemos tanto sobre o mundo como agora e, ao mesmo tempo, nunca fomos tão ignorantes. Sabemos quantas pessoas morreram nos bombardeamentos de Dresden (que aconteceram no dia em que Gaspard nasceu), quantas foram as vítimas do Holocausto e o que fez Hitler, mas esses dados são apenas números numa folha de papel. Nos anos 2020, a humanidade ganhou a capacidade, tal como Gaspard, de “fazer abstração das suas certezas” e, por isso, estagnou. Sem maneira de avançar, resta viver o fim do mundo. O Fim do Mundo Não Terá Acontecido é um livro escrito com humor, mas inquietante, que nos convida a questionar o absurdo que nos rodeia.