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Ruy d’Athouguia. O arquitecto moderno que continua por descobrir

Um dos autores do projeto para o edifício da Fundação Gulbenkian é o protagonista de um novo documentário, de Nuno Costa Santos e Ricardo Clara Couto. O primeiro recorda a história do arquitecto.

Há nomes que deixam uma marca mas que se mantêm na sombra durante muito tempo, por motivos uns mais, outros menos explicáveis. Ruy d’Athouguia é um desses nomes, autor de uma obra arquitectónica superior, que, entre 1947 e 1967, esteve envolvido no desenho e na construção de alguns dos edifícios mais significativos em Portugal. Com a sua morte, em 2006, deixou um legado de grande coerência, modernista, e ao mesmo tempo profundamente ligado ao local, capaz ainda de abrir caminhos para a novíssima arquitectura portuguesa.

Apesar de, como lembra a arquitecta Graça Correia Ragazzi, cuja tese de doutoramento se intitula “Ruy Jervis d’Athouguia – a Modernidade em Aberto”, haver cada vez mais estudantes da área interessados no seu percurso, não é ainda uma figura conhecida e reconhecida. Seguramente, acredita, porque faltava distanciamento histórico à crítica, em cuja agenda a sua obra não “encaixava”. E para isso muito contribui o facto de, como lembra Eduardo Souto de Moura, admirador há longa data do seu trabalho, neste documentário exibido na RTP 2, os seus projectos terem a dada altura sidos recusados numa bienal onde se optou pela divulgação dos autores ligados ao movimento neovernacular. Assim, Ruy d’Athouguia, que sempre esteve presente nas selecções internacionais de Arquitectura Portuguesa Contemporânea, deixou de estar representado. E a sua obra de deixou de estar integrada nas diversas leituras, quer na crítica, quer no ensino da Arquitectura Moderna portuguesa.

A identificação do Colégio Militar

Há, na verdade, desde aí, várias gerações de arquitectos que fizeram os seus cursos sem nunca ter ouvido sequer falar no seu nome. E, hoje, quando nele se fala, mesmo entre pessoas interessadas em cultura e em História, ainda é, muitas vezes, necessário associá-lo ao edifício-sede da Fundação Calouste Gulbenkian para haver uma reacção. “Ah, é o da Gulbenkian”. E por aí se fica.

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O filme, só possível por causa da investigação feita ao longo dos anos por Graça Correia Ragazzi, que nele assume também o papel de consultora, tem o objectivo de minorar a injustiça desse desconhecimento e contribuir para o integrar, definitivamente, na História da Arquitectura Portuguesa. E de permitir que mais gente o descubra pelas obras construídas, a maior parte delas em Lisboa, cidade na qual, após um olhar mais demorado, se percebe que os seus edifícios, além de terem tido um papel decisivo na sua transformação, são determinantes na sua imagem urbana, ou da sua expansão, para usar as palavras de Graça Correia Ragazzi: “A mais significativa após a construção da Baixa Pombalina, levada a cabo em meados do século XX”.

Os bairros e os projectos

No seu trabalho na capital sobressaem o “Bairro das Estacas”, projectado em parceria com Formosinho Sanchez e Maurício de Vasconcelos, as Escolas Primárias do Bairro de São Miguel e Teixeira de Pascoaes e a Escola Secundária (antigo Liceu) Padre António Vieira, bem como parte dos edifícios circundantes da praça de Alvalade.

Em Cascais realizou inúmeros projectos de habitação durante a década de 50, bem com a Torre do Infante; ou o belíssimo Bairro das Caixas” na Parede. E em Abrantes projectou o Cine-Teatro São Pedro de Abrantes (1949). A memória descritiva da Torre do Infante é reveladora do tipo de arquitectura que perseguia: “A Arquitectura é simples e directa de expressão; os materiais são empregues sem artifícios. As estruturas de betão armado, fortemente marcadas, não serão revestidas nos seus elementos essenciais. As caixilharias serão metálicas, contrastando na sua leveza com a robustez do conjunto”.

Diferentes projectos trabalhados por Ruy d’Athouguia. Ao centro, o Bairro das Estacas, em Lisboa, que projectou com Sebastião Formosinho Sanchez.

Em “Um Moderno por Descobrir” acompanhamos a viagem de Graça Correia Ragazzi e de Duarte Jervis Athouguia Pinto Coelho, neto do arquitecto, pelos edifícios do avô deste. É nesta road trip, sempre complementada por imagens de arquivo e depoimentos de conhecedores da sua obra, como a arquitecta e docente Ana Tostões, e testemunhos do filho, de amigos da família e proprietários das casas por si desenhadas, que se vai percebendo a força tão poderosa como discreta das obras de Athouguia, muito interessadas na importância da luz e sempre pensadas para a escala humana, preocupadas com o dia-a-dia das pessoas que iriam habitar os espaços. Souto de Moura vê nele uma especificidade, uma identidade própria, recusando a ideia de importação: “O Athouguia era português e filtrou as vanguardas. A maneira como ele liga ao local não é muito característica do Movimento Moderno”. Ana Tostões define-o com estas palavras: “Sem linhas programáticas muito rígidas, ele fez a sua própria síntese”.

São contados acima de tudo os aspectos profissionais e artísticos deste arquitecto pertencente a uma geração de arquitectos modernos que, embora formados em contexto clássico, tinham o olhar na vanguarda. Também se abre a janela para um perfil recatado, pouco dado a convívios extensos ou tertúlias, de um homem nascido em 1917, em Macau. Conta Luís Athouguia, seu filho: “Nunca pertenceu a facções nenhumas, a nenhum partido. Foi sempre um marginal nesse sentido, mesmo quando era o antigo regime”. Também se fala da sua condição aristocrática, que vivenciou com convicção mas com elegância, sem alarde algum. Filho de Manuel Jervis de Athouguia Ferreira Pinto Basto e de Emília de Sequeira Manso Gomes Palma, teve uma infância viajada após a morte do pai, dada a opção da mãe de regressar a Portugal pelo Pacífico. Frequentou depois o Colégio Militar e nessa altura já se mostrava adepto de artistas como Cézanne e Picasso.

Foi também no Porto que mais conviveu com Sophia de Mello Breyner e com o seu irmão, João Andersen. O seu interesse por literatura – lia muito Fernando Pessoa e Almada Negreiros – também se revelava na escrita de poemas e, com Sophia, tinha o hábito de discutir os textos que cada um escrevia.

Apesar de ter deixado uma marca em Lisboa, foi na cidade do Porto que se formou – na Escola de Belas-Artes –, muito influenciado pelo mestre Carlos Ramos, num ambiente artístico interdisciplinar, de abertura à modernidade, centrado na prática, no qual os nomes de Mies van der Rohe, Marcel Breuer e Le Corbusier eram amiúde citados. Foi também no Porto que mais conviveu com Sophia de Mello Breyner e com o seu irmão, João Andersen. O seu interesse por literatura – lia muito Fernando Pessoa e Almada Negreiros – também se revelava na escrita de poemas e, com Sophia, tinha o hábito de discutir os textos que cada um escrevia. A cumplicidade era tal que Athouguia chegava a fazer-lhe algumas sugestões de escrita – conta isso, divertido, numa gravação reproduzida no documentário.

Em 1944, depois do curso, cumprido com notas muito altas, regressou a Lisboa. Casou-se com Maria Domingas Pepulim, com quem teve seis filhos. Deu início à sua actividade profissional no escritório de Veloso de Reis Camelo e mais tarde com Filipe Nobre de Figueiredo e Jorge Segurado, onde retomou uma importante amizade, cumplicidade e relação de trabalho com Sebastião Formosinho Sanchez. Dado o meio em que se movia, foi-lhe fácil ser requisitado para encomendas várias, algumas de grande escala. Uma das mais importantes, pela liberdade conferida, foi feita por Maria Amélia Burnay, mãe do seu amigo Manuel Sande e Castro, tendo o projecto da casa sido construído na Rua dos Bem Lembrados.

Com a mulher, Maria Domingas Cirilo de Carvalho Pepulim

Merece igual destaque a Casa Sande e Castro, obra de Athouguia pela qual Souto de Moura revela preferência. “É uma casa radical. Uma casa toda em vidro que não é comum existir em Portugal”. Foi assim nomeada por Graça Correia Ragazzi num livro de divulgação sobre o autor: “Com a Casa Sande e Castro, que projecta para um grande amigo, Ruy d’Athouguia sedimenta a mudança radical no modo de entender a construção”. Acrescenta mais à frente: “Os muros de pedra, os vidros e as cerâmicas são introduzidos conscientemente como meios estéticos, e resolvem, juntamente com os planos que os definem, a continuidade entre interior e exterior, enquanto que a imagem de rigidez aparente na geometria da planta se perde na articulação com a paisagem”.

No ano de 1955, houve uma importante distinção. Robert Winkler editou uma monografia em que fazia a compilação das casas que os arquitectos da época faziam para si próprios. E casa do arquitecto português escolhida foi a de Ruy d’Athouguia.

O edifício da Gulbenkian

O trabalho mais importante em que se empenhou foi o edifício-sede da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, projectado em parceria com os arquitectos Pedro Cid e Alberto Pessoa. Athouguia conta que os três não se conheciam mas que o entendimento, durante os dez anos, foi imediato. “Pocurávamos todos uma certa verdade”. E sinceridade. Quando havia discordâncias estas eram logo verbalizadas. Funcionaram a partilha e a camaradagem. Conta num depoimento dado na própria Fundação, encontrado no Arquivo da RTP: “Às vezes trazíamos de casa ideias pensadas durante a noite”. O grande objectivo comum foi o de fazer integrar o volume, imenso, no parque e na cidade de uma maneira o mais discreta possível.

Houve um edifício seu que gostava muito de ter visto aprovado e construído: a Pousada da Nazaré. Chegou a fazer três versões do projecto mas foram todas chumbadas pelo Serviço Nacional de Informações. Sempre pelo mesmo motivo: por serem demasiado modernas. Segundo contou numa entrevista, terão mostrado o projecto a Salazar, que o rejeitou.

Graça Correia Ragazzi, que classifica a obra como um compromisso exemplar entre ética, estética e técnica, lembra-se de, desde há muito, ser confrontada com a referência muito positiva à Gulbenkian no estrangeiro e de as pessoas ficaram espantadas por não ser logo identificada a autoria. A arquitecta Teresa Nunes da Ponte, coordenadora das intervenções no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, qualifica, no documentário, os edifícios de Athouguia como “serenos”, tal como o próprio e, na qualidade de autora do projecto de requalificação da Escola Secundária Padre António Vieira, reconheceu, durante os trabalhos, uma grande semelhança, já identificada anteriormente por Graça, entre o edifício do liceu e o da Gulbenkian – pela implantação, pela distribuição, no uso do betão e na expressão clara do sistema construtivo, com as caixilharias interiores e nos corredores, que têm muita importância em ambos os espaços.

A maquete do edifício-sede da Gulbenkian

A reflexão, esclarecedora, é da arquitecta e professora Ana Tostões. “Hoje, na segunda década do século XXI, percebemos, em quadro internacional, que o edifício da Fundação Calouste Gulbenkian é uma obra eterna. Uma obra maior à escala internacional e uma referência da arquitectura no mundo”.

Apesar de não os valorizar muito, Athouguia recebeu vários prémios. Um deles foi o Prémio Valmor 1975, pelo conjunto arquitectónico Sede, Jardins e Museu Calouste Gulbenkian, que recebeu com Alberto Pessoa, Pedro Cid, Gonçalo Ribeiro Telles e António Viana Barreto. Outro foi o que recebeu em 1954 pelo Projecto do Bloco de Habitações de São João de Deus, o Bairro das Estacas, realizado em co-autoria com Sebastião Formosinho Sanches. Importante Prémio, na Exposição Internacional de Arquitectura da Bienal de São Paulo, até porque do júri faziam parte nomes como os de Le Corbusier, Alvar Aalto, José Luiz Sert e Rogers.

60 anos. As primeiras fotos da Fundação Gulbenkian

Houve um edifício seu que gostava muito de ter visto aprovado e construído: a Pousada da Nazaré. Chegou a fazer três versões do projecto mas foram todas chumbadas pelo Serviço Nacional de Informações. Sempre pelo mesmo motivo: por serem demasiado modernas. Segundo contou numa entrevista, terão mostrado o projecto a Salazar, que o rejeitou.

Já com 80 anos, transportando o peso de ter sido arquitecto da Gulbenkian, o que o terá feito perder trabalho, por ter sido colocado num patamar muito elevado, ainda ia todos os dias ao atelier trabalhar. A dada altura, o edifício, um velho palacete no Bairro Alto, desmoronou-se. O resgate do material é contado em “Um Moderno por Descobrir”.

Em Dezembro de 2003 a Ordem dos Arquitectos organizou em Lisboa, no Palácio Galveias, uma exposição retrospectiva sobre a sua obra, integrada na temática Arquitectos da Geração Moderna. A iniciativa ofereceu-lhe mais um reconhecimento entre pares. Esta exposição, comissariada pelos arquitectos Ricardo Carvalho e Joana Vilhena, deu-lhe o prémio da Associação Internacional dos Críticos de Arte/Ministério da Cultura.

Ruy d’Athouguia e Graça Correia Ragazzi, numa altura em que a arquitecta recolhia elementos para a sua tese de doutoramento.

Uma figura maior, livre e marcante da cultura portuguesa, que merece ser mais divulgada e percebida e a quem a comunidade deve gratidão. É esse o motivo primeiro para um filme sobre alguém que se definiu nestes termos numa entrevista: “Sou um arquitecto que gosta de uma arquitectura simples, verdadeira, expressiva, do jogo da luz e das formas, de formas abertas. Basicamente procuro isso. Não gosto que me baptizem”.

[O documentário “Ruy d’Athouguia – um Moderno por Descobrir” pode ser visto na Box ou então em RTP Play, aqui]

Nuno Costa Santos escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É um dos autores de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e deste “Ruy Jervis d’Athouguia – a Modernidade em Aberto” e de várias peças de teatro.

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