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Nelson Garrido

Nelson Garrido

São Lourenço do Barrocal, o monte alentejano de cinco estrelas

Foi uma das herdades mais prósperas do Alentejo até à nacionalização pós 25 de abril. Agora, a 8ª geração decidiu: ou o Barrocal morria ou era repensado. Ganhou a segunda opção. Nasceu um hotel rural.

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Um trabalho de pesquisa arqueológico e pessoal

Apesar do que dizem os papéis, o São Lourenço do Barrocal nunca foi só uma herdade. Durante quase dois séculos, com capela própria, padaria, praça de touros, vinhas, campos de cereais, casas, oficinas, cavalariças, carpintaria e escola, o monte alentejano era como uma aldeia onde viviam mais de 50 famílias. Só se ia uma vez por ano a Reguengos de Monsaraz, comprar tecidos na feira. De resto não era preciso nada, vinha tudo da terra e do gado.

José António Uva nasceu no mesmo ano em que o Barrocal foi nacionalizado. Era o início da reforma agrária e do PREC (Processo Revolucionário em Curso), que se seguiu ao 25 de abril. “O meu contacto inicial é apenas de ouvir contar histórias”, diz o agora administrador da herdade que também já não é só uma herdade — desde a primavera é um hotel de cinco estrelas com piscina, spa, restaurante, loja, horta biológica, passeios a cavalo e piqueniques à beira de lagos, a cinco minutos do Alqueva.

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Uva faz parte da oitava geração da família proprietária, que recuperou o monte nos anos 90, depois de década e meia de ocupação. Em 2002, depois de se formar em gestão e de trabalhar na banca de investimento em Londres, mudou-se para a antiga casa do hortelão, uma das poucas que não estava em declínio, e nos seus 20 metros quadrados olhou de frente para a encruzilhada: “Havia dois caminhos. Ou o Barrocal sofria uma morte lenta, inevitável, ou tinha de se repensar a herdade no seu todo.”

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A partir da casa do hortelão, José António Uva montou um trabalho de pesquisa “sério”, ao mesmo tempo arqueológico e pessoal. Primeiro com uma historiadora, arquitetos e paisagistas, para perceber “qual era a ocupação total do território, desde o neolítico até hoje”. Depois com o antropólogo José Cutileiro, que o ajudou a decifrar os termos da sua tese de doutoramento, Ricos e Pobres no Alentejo: Uma Sociedade Rural Portuguesa “a herdade número 1 é o Barrocal, a aldeia número 1 é Monsaraz, o latifundiário número 1 é o meu bisavô, e por aí fora”, diz Uva. Finalmente, foi preciso vasculhar noutra casa de família em Reguengos de Monsaraz, “onde nunca se deita nada fora”, à procura da história das várias gerações à frente da herdade e a tentar perceber “o que é que cada um viveu, o que é que fez”.

Durante muito tempo, José António Uva olhou para esta paisagem de azinheiras, sobreiros e oliveiras, a tentar perceber o que podia fazer com a herdade. © Nelson Garrido

Nelson Garrido

No meio da papelada, houve um documento decisivo: um artigo publicado no Diário de Notícias a 1 de agosto de 1927 que contava “como era a herdade no seu pico produtivo” e “qual era a finalidade de cada edifício”. O artigo estava rasgado ao meio, mas ao escavar nos arquivos do jornal, na Avenida da Liberdade, chegou-se à outra metade. O título dizia: “Uma visita ao monte do Barrocal, propriedade do rico lavrador Sr. Jaime Fernandes Leal”, e o relato do “enviado especial” ao Alentejo incluía longas descrições da “rua do Monte” com as suas “casas de um lado e outro”, as oficinas, as cocheiras, as cavalariças, o “casão das máquinas”, os celeiros “abarrotados da colheita”, a padaria, a casa dos queijos, as forjas, as vacarias e os camponeses a regressar dos campos, “chapéus bragueses, safões de couro e de pele de carneiro”.

Se a herdade estava viva num pedaço de papel com 89 anos, porque não haveria de estar nos seus 780 hectares?

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O artigo publicado no DN no verão de 1927, que descreve a herdade “no seu pico produtivo”.

A história de respeito por um lugar. E a horta desenhada por um Pritzker

Quem passeia pelo São Lourenço do Barrocal agora não vê o que está escrito no Diário de Notícias, mas quase. Os camponeses podem ter sido substituídos por funcionários de camisa branca e um dos celeiros pode ter sido transformado em restaurante, mas a “rua do Monte” continua com edifícios de um lado e outro, arcadas brancas onde pousam andorinhas à procura de sombra e portas numeradas, que marcam não as casas dos trabalhadores, como antigamente, mas os quartos do hotel. Toda a obra foi feita para não se notar, o que parece um contrassenso mas é antes a maior prova do enorme respeito pelo lugar.

“Decidimos não redesenhar nenhuma volumetria nem nenhuma estrutura de base que não fosse original”, diz José António Uva, que desafiou o arquiteto Eduardo Souto Moura, Prémio Pritzker em 2011, a “mostrar a sua destreza de fazer sem alterar”.

Os espaços onde Souto Moura acabou por ter um desenho mais marcado foram três: a adega, a horta biológica, ainda em desenvolvimento, e a piscina mesmo ao lado, atravessada por uma enorme pedra de calcário a que se chama, precisamente, de barrocal.

A piscina foi desenhada pelo arquiteto Souto Moura e é invadida por uma enorme pedra a que se chama barrocal. Na herdade há também antas e um menir. © Jorge Vieira

Jorge Vieira

Dos esboços para a obra, todos os materiais usados na reconstrução foram os mesmos de origem, garante José António Uva, o que se revelou muitas vezes complicado, a começar pelos telhados. “Aquela telha já não se faz, já não se coze em forno de azinho com aquela consistência”, diz o administrador. Solução? Durante três anos, um senhor andou de camião de Mértola a Portalegre, à procura de telhas para as “comprar pelo Alentejo fora”. Foram 300 mil peças em três anos, a juntar aos rebocos de areia (e não de cimento), ao tijolo burro (e não perfurado), à calçada irregular (e não partida), ao chão de tijoleira feito à mão na localidade vizinha de São Pedro do Corval. “Em todo o processo procurámos trabalhar e aprender com as pessoas locais”, diz José António Uva, que ainda recentemente voltou a perceber o tesouro que tinha nas pessoas do campo. “Fizemos sondagens para os furos da água digitais — não funcionaram. Agora estamos com o senhor do pêndulo e da vara, e foi à primeira.”

“Nunca daria para recuperar a herdade como casa pessoal. O Barrocal não tem nada de pessoal. O espaço foi concebido para muitas famílias e para uma exploração agrícola já industrial, e era preciso voltar a abri-lo a uma comunidade que pudesse também criar as suas próprias raízes e memórias.”
José António Uva, administrador

Numa região onde o termómetro ultrapassa facilmente os 30 graus no verão, a questão da água é importante. E também aí José António Uva foi surpreendido pelo engenho dos seus antepassados. Onde está agora um laranjal em crescimento, com espreguiçadeiras espalhadas pelas sombras, contíguas à piscina e à horta, “foi construído um sistema de rega de inspiração árabe com três noras que, pela lei da gravidade, distribuem água por três hectares”. “Esse é um projeto equivalente a uma central fotovoltaica nos dias que correm”, considera Uva, “uma grande empreitada com cisternas de enormes abóbadas e 150 metros quadrados por baixo de terra” que o fez perceber, ainda na casa do hortelão, “que nunca daria para recuperar a herdade como moradia pessoal”. “O Barrocal não tem nada de pessoal. O espaço foi concebido para muitas famílias e para uma exploração agrícola já industrial. Havia uma ambição enorme, rara, e não fazia sentido viver um espaço desta escala como se fosse uma quinta ou uma coisa do género. Era preciso voltar a abri-lo a uma comunidade que pudesse também criar as suas próprias raízes e memórias, as suas próprias histórias.”

Por isso não há portão, por isso o restaurante onde se servem os pratos do chef José Júlio Vintém é aberto a não hóspedes, assim como a loja onde se vende o azeite do Barrocal ou o pão do Baldio, e por isso os passeios de bicicleta pela herdade, a cavalo ou até de balão, podem ser reservados por qualquer pessoa. Como resume Uva: “Isto é para passantes. Entrem.”

José António Uva

José António Uva nas vinhas do Barrocal.

Este senhor na parede trouxe o vinho para o Alentejo

Entra-se e, à chegada, é possível que nem se encontre o check in. Não há placas, como nos hotéis tradicionais, não há campainhas, como no turismo rural, e ao mesmo tempo é quase intuitivo que a entrada só se pode fazer pela “rua do Monte”, rodeada de paredes brancas de um lado e doutro e com a calçada feita a partir de pedras retiradas tal como estão, do campo.

Na "rua do Monte", que sempre funcionou como coração da herdade, fica a receção e alguns dos 24 quartos e 15 casas para alugar. © Jorge Vieira

Jorge Vieira

“Temos pessoas a trabalhar connosco que vieram do Ritz Four Seasons de Lisboa e sabemos o tipo de estrutura que queremos montar, mas ao mesmo tempo queremos que o hotel seja um pouco contraintuitivo”, diz José António Uva, para quem essa “contra-intuição” passa por “ficar 30 segundos a pensar, quando se sai do carro, onde é a receção”, ou ter a mínima iluminação necessária. “Queremos que as pessoas se sintam em casa, e quando estamos em casa de alguém não temos placas a dizer onde é a entrada ou a cozinha.”

Passar a soleira do restaurante, do bar ou da receção é de facto como entrar na casa de uma família. Nas estantes há fotografias antigas, livros, molhos de cartas, e nas mesas estão pousados os volumes encadernados da Contada de Monsaraz, onde se dá conta do nome dos trabalhadores e quanto ganharam “à jorna”. Todo o projeto de decoração ficou a cargo do estúdio Anahory-Almeida, responsável também pelos restaurantes do chef José Avillez, e a maior parte dos objetos expostos veio da casa de família em Reguengos de Monsaraz, a tal onde nunca se deita nada fora.

A melhor montra do que se encontrou depois de vasculhar em “todas as gavetas, todos os armários e todos os baús”, é mesmo a instalação que Joana Astolfi fez no restaurante. Ao centro está um veado embalsamado, um dos maiores exemplares da coleção de caça da família, à volta estão fisgas, sapatos, bules, chaves, alfinetes, ferraduras, uma máscara de apicultor, uma receita de perdiz de escabeche ou ainda uma dúzia de luvas brancas, que uma simpática funcionária se apressa a explicar que pertenciam a uma bisavó da família Uva que nunca saía de casa sem luvas, e as usava sempre brancas.

A instalação que Joana Astolfi fez no restaurante junta vários objetos da família. © Nelson Garrido

Imagem retirada do site do São Lourenço do Barrocal

A mesma funcionária aponta para a fotografia de um homem de cabelo branco e diz que é o fundador do São Lourenço do Barrocal. Mais tarde, José António Uva conta a história completa: o senhor na fotografia é Manuel Mendes Papança, presidente da Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz durante 20 anos. Formado em Direito em Coimbra, “bastante culto e com um interesse muito enraizado na região”, ainda no século XIX Papança resolve fazer um plano para criar uma região vitivinícola no Alentejo, “onde não havia essa tradição”.

“O Marquês de Pombal tinha definido de forma muito clara que o vinho e os projetos de vinho eram para o Douro”, diz José António Uva. “O Alentejo nessa altura eram terras de mato e de caça, não se fazia agricultura de todo, a ideia do celeiro de Portugal é do Salazar e é uma ideia recente de meados do século XX. Portanto, o Manuel Mendes Papança é de certa forma um pioneiro ao dizer: ‘A única forma de fazer uma região vitivinícola é dar poder ao pequeno agricultor’. E por isso resolve dar terras e propriedade plena a quem se comprometer a plantar cepas, ou seja, a plantar vinho”, continua o administrador. “Com isto se dá origem àquilo que é a maior adega cooperativa do país, a Carmim, e ao concelho que produz mais vinho de mesa em Portugal.” Não por acaso, passear pelo Barrocal é também encontrar (eno)turistas da Herdade do Esporão, a poucos quilómetros de distância.

Há várias fotografias de Manuel Mendes Papança no Barrocal. Na receção do hotel está uma delas: é o senhor de cima, à esquerda. © Jorge Vieira

Jorge Vieira

O apelido Papança perdeu-se no tempo — “houve gerações abaixo dele que acharam o nome pouco chique” –, mas o próprio Barrocal voltou a fazer vinho, agora com adega própria e o saber da enóloga Susana Esteban.

Ao contrário do vinho do século XIX, fortificado, as garrafas que agora levam o rótulo Barrocal — tinto, branco e reserva — são de lotes muito mais pequenos e com blends específicos. Optou-se também por não regar as vinhas, o que as obriga a criar raízes profundas, à procura de água. A opção vai contra o que faz a maioria dos produtores no Alentejo, com medo dos anos de seca e respetivas quedas na produção, mas pretende, como aliás tudo o resto, chegar a um produto “mais próximo da identidade do terreno”.

A adega desenhada por Souto Moura inclui lagares para pisa da uva a pé e depósitos não de inox mas de cimento "porque era assim que se fazia antigamente". © Nelson Garrido

Nelson Garrido

Em 14 anos, José António Uva não pode dizer que não teve dúvidas. Teve, e não foram poucas. “Será que vale a pena investir pessoal e financeiramente no repensar de toda uma herdade? Será que as pessoas vão querer fazer turismo no Alentejo? E passar férias aqui?” Enquanto as dúvidas apareciam, a paisagem de Monsaraz ia mudando, graças à barragem do Alqueva, cuja água chega quase à herdade (o Centro Náutico, onde se pode andar de barco, fica a cinco minutos de carro, e ainda antes encontra-se o Observatório Lago Alqueva, com várias atividades para ver as estrelas do famoso céu alentejano).

Com a água, e apesar dos prazos demorados — dois anos para o licenciamento, seis para o plano de pormenor –, crescia também o otimismo do administrador. E depois veio o financiamento do QREN (Quadro de Referência Estratégica Nacional), e uma daquelas coincidências felizes: “O dia em que estou a assinar o contrato de financiamento em Évora é o dia em que a minha mulher me liga a dizer que está a entrar em trabalho de parto em Lisboa”, conta José António Uva. “Não sou muito dado a ligações, mas é um momento coincidente de criar raízes familiares e ao mesmo tempo criar uma viabilização que faz com que as coisas sejam possíveis.”

Ter o hotel pouco iluminado permite apreciar o famoso céu alentejano e quem sabe conseguir tirar uma fotografia como esta. © Jorge Vieira

Jorge Vieira

Se em tempos o Barrocal albergava 50 famílias, hoje tem 58 funcionários, só no hotel. Para além desses há ainda todos os artesãos alentejanos que trabalham com madeira, cortiça, palha, barro ou pele, e que foram chamados a fazer o seu ofício para dar vida à herdade. “Se tivermos sido bem-sucedidos”, conclui Uva, “os quartos são um espelho disso tudo: dar o conforto de hoje, e tudo o que se quer num hotel, mas enraizado numa cultura.”

Nome: São Lourenço do Barrocal
Morada: São Lourenço do Barrocal, 7200-177 Monsaraz
Contactos: 266 247 140; reservations@barrocal.pt
Preços: Quartos duplos a partir de 148€/noite (época baixa), 162€ (época média) ou 177€ (época alta). Preço médio do restaurante (aberto todos os dias das 7h30 às 22h30): 40€.

O Observador ficou alojado a convite do São Lourenço do Barrocal.

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